A palavra “golpe” hoje circula no Brasil em todos os ambientes. O tema tem alcance histórico. O moderno poder político é movido por golpes canhestros ou eficazes.
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| Luís XI da França |
O fascismo italiano foi uma série de golpes, o mesmo na Espanha.Na Alemanha e na Rússia do século XX, regimes virulentos dominaram o Estado à força de golpes.
No Brasil, temos os golpes do imperador,dos regentes,dos oficiais que derrubam a monarquia, de Getúlio, que instalou uma ditadura feroz,dos civis e militares erguidos contra a ordem estabelecida em 1961 e 1964. Depois, o golpe dentro do golpe no Ato Institucional n.º 5 (AI-5), o golpe do chamado Pacote de Abril,etc. Setores das esquerdas falam hoje da imprensa golpista, no mesmo passo em que as direitas bradam contra o revanchismo.
É preciso não banalizar a noção de golpe, cujo fim é impedir a força de adversários no Estado e nas sociedades. Eles são propositivos se buscam impor formas de pensamento e suspendemos mecanismos jurídicos das anteriores formas de poder. Por não terem origem nas urnas, os seus atores se legitimam invocando a urgência (o Estado estar-se-ia corrompendo) ou a necessidade.
Foi assim no AI-1: “A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução.Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma”. O golpe aposenta o voto, cassa mandatos, fecha partidos.
Importante estudo vem de Gabriel Naudé nas "Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado" (1640). Naudé situa o golpe no campo da prudência. Ele critica a divisão tríplice daquela virtude feita por Justo Lipsio: a leve – dissimulação e desconfiança na ordem política; a sórdida, que consiste “em adquirir amizades e serviços de uns enganando outros por falsas promessas e mentiras, presentes e outros meios”; e a virulenta, “que se afasta totalmente da virtude e das leis”.
Segundo Naudé, tal fracionamento é inútil, pois todas as prudências dependem de uma só, ilustrada por Luís XI, o“Rei Aranha”, cuja máxima era: “Quem não sabe dissimular não sabe governar”. A regra dos governos reside na desconfiança universal e na dissimulação, que consiste ou em omitir – pretender que nada foi visto pelos poderosos – ou “na ação e na comissão, o ganho de alguma vantagem para atingir alvos por meios encobertos”.
Omissões e comissões nutrem os poderosos e fornecem “os diversos meios, razões e conselhos usados pelos príncipes para manter sua autoridade e a situação do público” sem“parecer transgredir o direito comum e causar suspeita de fraude e injustiça”.
Um golpista indicado por Naudé é Dionísio, tirano de Siracusa. Querendo impedir as reuniões dos opositores,agendadas para a noite, ele afrouxava sem alarde as penas dos assaltantes... Golpes incluem o segredo das ações “extraordinárias que os príncipes são levados a executar nos assuntos difíceis e desesperados, contra o direito comum, sem mesmo guardar alguma ordem ou forma de justiça, prejudicando o interesse do particular em benefício público”. Rapidez,quebra de costumes e de jurisprudência integram os golpes.
Neles “ vemos cair a tempestade sem ter ouvido os trovões (...), as Matinas são entoadas antes de o sino tocar, a execução precede a sentença. Fulano recebe o golpe que pensava aplicar, sicrano morre, imaginando estar seguro”. Truque jurídico golpista: “O processo é instruído após a execução”. A nova ordem livra-se das “pequenas formalidades exigidas pela Justiça”.
Naudé profetiza os regimes sangrentos do século XX. O golpe (similar ao cometa e ao terremoto), afirma ele, deve ser tido como exceção. (Carl Schmitt tem muito a dizer sobre esse assunto.) Nele o político precisa ser visto “como o pai que cauteriza um membro do filho para salvar a sua vida”.O golpe justifica-se ao abolir “privilégios, direitos, franquias, usufruídos por alguns governados em prejuízo da autoridade principesca”.
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| Gabriel Naudé |
As guerras dinásticas e de religião na Europa.Mas o golpe, longe de sanar as guerras civis, as perpetua, levando-as ao plano internacional. Quem deseja o convívio político segue as “pequenas formalidades” jurídicas. Sem elas ninguém está seguro, nem mesmo os golpistas, pois os regimes não são eternos e o golpista de hoje é a vítima do golpe, amanhã.
A democracia exige simultaneidade irredutível das diferenças ideológicas,nela não existem inimigos, como propõe Carl Schmitt, somente adversários que merecem respeito e jamais ataques fratricidas. Qual o terreno fértil dos golpes? A desconfiança, a dissimulação, os ódios espalhados pelos golpistas que empesteiam e sufocam a vida política. Tais são os primeiros e últimos obstáculos a serem vencidos.
Por Roberto Romano (Unicamp), no jornal " O Estado de S. Paulo", edição de 29 de abril de 2012. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.



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