Os números, os personagens e as curiosas histórias do maior leilão de gado de corte do país, no interior do Mato Grosso.
Quarenta mil cabeças de 73 fazendas são levadas até a cidade de Água Boa .
Era o lote de número 82: 220 bois, todos jovens, da Fazenda Califórnia. O lance estava em quatro parcelas de R$ 225 por animal.
— Gadão! Gadão! Gadão! — gritava o locutor, em frenesi, enquanto 20 bois corriam assustados, de um lado para o outro, em cima do palco.
O valor subiu para R$ 230.
— Obrigado, obrigado, obrigado
— metralhou o leiloeiro.
Duzentos e trinta e cinco.
— É garrote! É garrotada pesada! — continuou.
Duzentos e quarenta.
— Vou bater o martelo! — disse, em tom de ameaça.
Quando o preço chegou a R$ 245, o médico Julio Palazzo de Mello, de 42 anos, empunhou sua caneta. Um auxiliar do leiloeiro percebeu o movimento
— prenúncio de quem vai subir o valor do lance —, aproximou- se e, apoiado sobre o tampo da mesa de Palazzo, quis saber, inquisitivo:
—Vai? Vai?
Os dois se encararam por alguns segundos. Palazzo fez um leve movimento com a caneta no ar — indicativo de que subira o valor. Martelo batido.
— Dr. Julio Palazzo, acompanhado do seu assistente, Bigode, e de sua mulher, Alcinéia, aproveita para mandar um abraço para o sogro
— anunciou o leiloeiro, pelo alto-falante.
Palazzo, que é médico ortomolecular no Paraná, arrematou cada boi por quatro parcelas de R$ 250, ou R$ 1 mil. Como o lote tinha 220 animais, acabara de gastar R$ 220 mil.
— É gado gordo, bonito. Em 90 dias está pronto para o corte — celebrou.
A cena ocorreu no penúltimo sábado, 21 de abril, quando um rebanho de pecuaristas se reuniu em Água Boa, cidade de 20 mil habitantes no Mato Grosso, para participar do 12º Megaleilão da Estância Bahia. O grupo estava atrás de 40.941 cabeças de gado, oriundas de 73 fazendas — o que faz, deste, o maior leilão em número de bovinos do país.
— Gasto R$ 2 milhões só na produção do evento — diz o empresário Maurício Tonhá, 49 anos, 1,87 metro de altura, 110 quilos após a redução de estômago — medidas que lhe outorgaram o apelido “Maurição”. Nascido em Santana, no interior da Bahia, Maurição morou em Brasília e Barra dos Garças (MT), antes de se mudar para Água Boa, há 28 anos, quando foi contratado pelo Banco do Brasil. Não tinha estudo universitário, não conhecia uma única pessoa no local, não nutria grande paixão pelo ramo da economia. Encarou o posto de bancário sonhando, um dia, em retornar à sua cidade natal.
— Imagina que bonito: o garoto que saiu de Santana aos 15 anos, que trabalhou de feirante em Brasília, que só tinha dinheiro para comer pão com ovo, voltando como empregado do Banco do Brasil — explicou.
Em pouco tempo, ele mesmo trataria de frustrar o próprio plano:
— O Banco do Brasil, na época, era totalmente voltado ao agronegócio. Comecei a me interessar. Comprava madeira na Bahia e revendia no Mato Grosso.
O investimento prosperou. Em 1991, já fora do banco, resolveu se arriscar no mundo dos leilões: vendeu 227 animais. Passadas duas décadas, diz ter multiplicado o número por mil (ele organiza mais de 120 eventos por ano, em diversas fazendas do Mato Grosso). Em 2011, o Megaleilão da Estância Bahia movimentou, num único dia, R$ 36 milhões. Como é a praxe no mercado, Maurição cobrou 8% de cada boi, vaca e novilho comercializado.
Hoje, além de plantar soja e criar gado em três fazendas, cumpre o segundo mandato como prefeito de Água Boa. É muito político no trato, e tem uma tirada pronta para cada um que encontra (“Ê, meu patrão!”, “Aê, autoridade!”, “Rapaz, você me abandonou?”, “Deixa eu dar um abraço no José Coelho Vitor, o homem que eu sonhava conhecer e que agora está na minha casa!”).
A exemplo de Pelé, fala de si na terceira pessoa (“Tem que ajudar o Maurição”). A exemplo de Paulo Maluf, decora o nome de todos.
— Tem coisa melhor do que chamar a pessoa pelo nome? — pergunta. — E comercialmente, é importante. É filiado ao PR, partido do senador Blairo Maggi, líder da bancada ruralista no Congresso. Diz sonhar com a presidência.
— Mas posso fazer um estágio antes, no governo do Mato Grosso — brinca, um tanto a sério.
No universo da pecuária, há dois tipos de leilão, para dois tipos de gado. O mais famoso, badalado — e um pouco familiar ao público leigo — é o que comercializa animais de elite. Nele, touros e vacas de alta casta — e seus descendentes — desfilam sozinhos pelo palco, enquanto o leiloeiro, qual uma socialite, dispara nomes de bovinos sobre a plateia, para afirmar a fina linhagem do animal.
Um exemplo, tomado a esmo de um leilão do Canal Rural, postado na internet:
— Atenção ao pedigree dessa vaca. Ela é filha do touro Fajardo com a vaca Estampa. Portanto, uma novilha aberta para o sangue do Ludi. E a Estampa é mãe da vaca Rinha, que é mãe da vaca Jotani, que é a mãe da vaca Parla. E a Parla tem tudo pra ser uma grande campeã nacional, todo mundo sabe disso.
Nesses leilões, o valor de um único animal passa, facilmente, da casa do milhão de reais (o gado de elite jamais é abatido; existe para gerar bois aos milhares — estes sim criados para virar carne). Em 2011, a vaca Parla AJJ teve 50% de seu “passe” negociado a R$ 2,5 milhões. Ao total, ela vale R$ 5 milhões — o que a torna o bovino mais caro do mercado. Ana Maria Braga, Fausto Silva e um sem número de cantores sertanejos costumam frequentar eventos do tipo.
A segunda forma de leilão — sem glamour, celebridade, mas igualmente regada a uísque e dinheiro — é a que fornece bois e vacas para o corte. Nela — o atacadão da pecuária — cerca de 20 animais (amostras de um lote dez vezes maior) se amontoam em pé numa baia minúscula, lamacenta, até o momento em que são levados ao palco, sob o “estímulo” de pauladas. Chegam exaustos, imundos e assustados — o que de nada incomoda os pecuaristas, para quem boi é carne, e carne é cifra.
À diferença do irmão de origem nobre, boi de corte não tem nome, pedigree ou linhagem. Carrega, no máximo, o número do lote, marcado a ferro nas ancas, e o registro do Sisbov (Serviço Brasileiro de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos), o RG da bovinocultura, preso à orelha. São esses bois e vacas que Maurição vende em seu megaleilão.
— Não gosto do mercado de elite; é muito subjetivo — justifica.
— Em leilão de elite, o nome do dono do touro importa no preço. Um gado de valor, se não for de uma pessoa conhecida, que não faz política, vende por muito menos. Gosto de pecuária de verdade, em que se vende o boi pelo preço da carne.
O pecuarista Abel Leopoldino, que colocou 5.700 dos seus 40 mil bovinos à venda no evento, resume:
— O que a gente imagina, quando insemina uma vaca, é o bife que o cara vai comer no Varanda Grill, em São Paulo.
De acordo com um levantamento feito pela revista “DBO”, especializada em pecuária, houve 943 leilões de gado de elite e de corte no país em 2011. Além de movimentar o mercado, serviram para botar fazendas no mapa da mídia.
— O leilão passa nos canais de TV fechada. O nome da fazenda é citado. Se o gado for bom, é marketing positivo — explica o leiloeiro Paulo Brasil, de 41 anos, que ganha, como comissão, até 1,5% de cada animal comercializado.
Para dar conta de comparecer aos 20 leilões que comanda por mês, Brasil comprou um avião, em sociedade com o também leiloeiro Adriano Barbosa — seu companheiro de microfone, há seis anos, no megaleilão da Estância Bahia.

O Brasil tem hoje 213 milhões de cabeças de gado, que dão, ao país, o título de maior rebanho bovino do mundo. O Mato Grosso é o estado com o plantel mais expressivo: 29 milhões.
Às 12h45m, teve início o leilão. Um grupo de 20 peões, responsável por organizar o gado nos bastidores, subiu ao palco, carregando uma bandeira do Brasil. Tocou-se o hino nacional.
— Essa é uma homenagem ao produtor! — apregoou o leiloeiro Adriano Barbosa, que prosseguiu, em tom apoteótico:
— Outro dia, tive a felicidade de ler, numa reportagem, que um banqueiro americano dizia: “Troque o seu carro por um trator.” Troque o seu carro por um trator! Acredite no dom que vocês têm, pecuaristas! Os senhores têm a profissão mais digna da humanidade! É a profissão mais próxima do Criador! Vocês produzem carne!
Vinte bezerros subiram ao palco, que foi iluminado por uma chuva de fogos de artifício, transmitida, ao vivo, pela TV Terra Viva (era possível dar lances pelo telefone). A trilha sonora ufanista deu lugar ao riff inicial de “Money for Nothing”, da banda inglesa Dire Straits. Os animais corriam, em pânico, de um lado para o outro, enquanto o lote, de 276 bovinos, era arrematado por um total de R$ 298 mil.
— Um lote excepcional, da fazenda Bartira, que acredita mais que ninguém na pecuária nacional! — vibrou o leiloeiro, antes que os bezerros fossem levados às coxias — e substituídos por um novo lote.
Para dar conta de aglutinar 40 mil bois de forma ordenada, Maurição pede que os animais sejam entregues com um mês de antecedência. Eles costumam chegar de caminhão (em grupos de 30) ou carreta (grupos de cem) embora haja quem, por economia, prefira trazê-los a pé.
— Tenho uma fazenda a 40 quilômetros daqui. Eles vieram em dois dias, caminhando: mil bois ao mesmo tempo, na estrada. É a coisa mais linda de se ver — contou o pecuarista Abel Leopoldino.
Uma vez na Estância, os animais são separados em lotes de 180 a 330 membros, divididos de acordo com origem, sexo, peso e idade. Na véspera, 20 bovinos são pinçados de cada lote e realocados numa baia, nos fundos do palco, à espera do evento. Um grupo formado por quatro pessoas — os dois leiloeiros, um filho de Maurição e um assistente do pecuarista Leopoldino — se encarrega de definir a ordem de entrada dos animais.
— Você tem que saber o que está vendendo. O leilão tem que começar num clima bom — ensina o leiloeiro Paulo Brasil.

Por contrato, a organização se encarrega de alimentar os bovinos, com 400 toneladas diárias de silagem — uma mistura azeda de milho e capim. Se encarrega, também, de alimentar os “bovinos” do gênero humano, com 120 garrafas de uísque, dez mil espetinhos de carne e 30 mil salgados — fora cerveja, sorvete e qualquer outra bebida ou quitute que mantenha um pecuarista entretido durante o leilão. (Os estandes das montadoras Land Rover, Mitsubishi e da empresa de aviação Líder também servem de distrativos.)
O advogado Durval Gouveia Junior, 50 anos, foi ao leilão acompanhado da mulher, da filha e do administrador de sua fazenda, a Paraíso do Boi. Colocara no pregão 360 das suas 2.500 cabeças de gado. Estava esperançoso:
— Tem 1.500 pessoas que entendem de pecuária aqui. É a garantia de vender pelo preço justo.
Gouveia chegara cedo, para dar uma vista d’olhos em seus animais. Caminhou pelo mar de bois até encontrá-los:
— Olha eles ali! — exclamou, ao ver uma placa com o número do lote. — Nosso gado é comprido, um novilhado de 18 meses. Nascido e criado na fazenda. Não perde em nada pros outros rebanhos — explicou, com orgulho.
Retornou ao leilão com a certeza de lucro vindouro. Sentou-se numa mesa à esquerda do palco, e lá permaneceu, do primeiro ao último lote. Pelas oito horas que se seguiriam, o entrar e sair de bovinos seria repetido 189 vezes. Os pecuaristas que lotavam o recinto gastariam, ao todo, R$ 34,5 milhões.
Tim dos Mineiros, 47 anos, dono de 70 mil cabeças, ampliou o seu plantel em 10%:
— Comprei seis mil, sete mil. Nem sei o número. Valeu a pena pela quantidade.
Getúlio Viana, prefeito de Primavera do Leste pelo PR, também se satisfez com a aquisição de quatro mil novos bois:
— Vai custar uns R$ 3 milhões e pouco — declarou, com indiferença. (Viana seria afastado da prefeitura pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso três dias após o leilão, por improbidade administrativa. Ele recorre. Maurição o defende: “É um homem íntegro, que pode ter sido eventualmente mal orientado.”)
Abel Leopoldino estava radiante: vendera os 5.700 animais que levara. Preferiu não dizer quanto ganhou:
— Mas anota que o Maurição é um Boeing. Cola nele que aparece oportunidade de negócio a toda hora.
Ao longe, Durval Viana não compartilhava da euforia. Vendera o primeiro lote, de bois, por R$ 146 mil. O segundo, de vacas, por R$ 93 mil. O valor costuma ser determinado de acordo com o peso, a idade e o sexo do animal (a vaca está em período de vacas magras). Além disso, lotes iniciais costumam custar mais caro.
— Foi um pouco abaixo do esperado. As vacas estão R$ 100 abaixo do mercado — disse Viana.
Maurição contemporizou:
— Quando você vende 189 lotes, é normal algum cliente se sentir prejudicado. Mas tenho convicção de que mais de 90% saíram satisfeitos.
Coube ao leiloeiro Adriano Barroso arrematar a história:
— Ter gado é uma coisa romântica. O cara leva dois ou três anos para criar o animal — e dois ou três minutos para fechar o negócio.
Reportagem de Roberto Kaz publicada na Revista "O Globo", edição anexa ao jornal "O Globo" de 29 de abril de 2012. Fotografias de Guito Moreto. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.


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