Comida” refaz o roteiro gastronômico do autor de “Trem das Onze”, “Saudosa Maloca” e “Torresmo à Milanesa”, e descobre que sambista era fã do filé ao alho e óleo do Filé do Moraes, do nhoque do Gato que Ri, e de tomar uma birita no Bar do Alemão.
De certa forma, a São Paulo de Adoniran Barbosa (1910-1982) estará resguardada para sempre — ao menos no imaginário. O sambista cantou a cidade à exaustão.
Se nas músicas ela está eternizada, o que restou — e ainda pulsa — dos locais que Adoniran frequentava?
A partir de entrevistas com o biógrafo do sambista, amigos, parceiros e donos de bares e restaurantes, a Folha montou um roteiro de 12 lugares entre os mais frequentados por ele. Destes, resistem sete, que mantêm receitas como as de antigamente.
“Vamos fazer cem anos em 2014 e o nosso cardápio é o mesmo”,diz José Luiz de Freitas, 60, da terceira geração da família dona do Filé do Moraes — hoje Rei do Filet. Era ali que Adoniran comia o clássico filé alto, de miolo suculento, coberto por finas fatias de alho e óleo. Geralmente na alta madrugada, às vezes, com o sol a raiar.
À MESA
Filé do Moraes |
Nas andanças da reportagem — concentradas no centro e no Bexiga —, uma coisa fica óbvia: o cantor ia a alguns locais que hoje são reminiscências da cidade — como o próprio Filé do Moraes, o Bar do Alemão e a padaria São Domingos.
Eram bares e restaurantes que acolhiam a boemia daquela época: os mais diversos artistas, os locutores de rádio, os diretores de cinema.
Os pratos que Adoniran admirava, em alguns desses endereços, permaneceram intactos com os anos. Hoje, eles expressam parte do que é reconhecido como a “cozinha paulista”.
São massas italianas, influência da forte imigração desse povo no século XIX, por exemplo. “No meu restaurante [cantina Conchetta, do Bexiga, de 1978], ele sempre comia o espaguete ao sugo. Falava com aquela voz rouca, ‘al dente!’”, diz Walter Taverna, 78,dono de quatro restaurantes e presidente do Centro da Memória do Bexiga.
E as frituras, também herdadas da Itália e transformadas em prática típica da cozinha interiorana. Isso, sem se esquecer do torresminho, do bife à milanesa...
A feijoada ele traçava na madrugada, na saída da rádio, no Papai, restaurante que foi implodido na primeira reformulação da praça da Sé.
CALÇADA
Enedino José de Souza, 71, o Souza, é o garçom mais antigo do Gato que Ri (desde 1972), cantina dos anos 50 que resiste até hoje no largo do Arouche. Ele lembra com clareza de Adoniran.
“Ele pedia um uísque, pegava uma cadeira, colocava lá fora e ficava cantando com a caixinha de fósforo.”
O sambista,que morou naquelas vizinhanças por mais de dez anos, tinha o costume de levar o nhoque ao sugo do restaurante para casa para comer com a mulher, Matilde.
BOTECOS
Adoniran dividia seu tempo entre as gravações humorísticas no rádio, no circo,um personagem do cinema ou de uma novela na televisão.
Ele mergulhou na boemia de São Paulo, na praça da Sé de antigamente,que a traía gente à beça — era como um “parque de reuniões, com muitos botequins”, nas palavras do próprio cantor.
Vivia a perambular na eterna companhia de uma porção de pastel e uma cachacinha com limão, numa mesa aqui, outra acolá.
Vez ou outra parava no clássico Bar do Alemão, que resiste ao tempo e ainda serve seu filé à parmigiana. Era ali o ponto de encontro de músicos como Nelson Cavaquinho e Paulinho da Viola nos anos 70. Permanece igualzinho, ao gosto de seu atual proprietário,o músico Eduardo Gudin, que também foi habitué dali naqueles tempos.
Ele relembra: “Adorinan falava: ‘Hoje vamos beber que eu pago.’Ele pedia uísque importado para ele e nacional pra gente, e dizia: ‘Eu tô pagando, eu escolho a marca’”.
Antes de ganhar fama como cantor, coisa que custou à beça — “sua voz é boa para acompanhar defunto”, dizia um locutor importante —, vendeu tecido nas bandas da 25 de Março, foi entregador de marmitas — das quais filava um tanto de bolinho e pastéis no caminho — e ajudou madames a carregar compras na feira do largo do Arouche.
Pois,depois de muita insistência, o sambista que nasceu João Rubinato e morreu, há 30 anos,Adoniran Barbosa, fez sambas clássicos. Até com comida.Eis “Torresmo à Milanesa”, receita que nem existe.
Texto de Luiza Fecarotta publicado no caderno "Comida" da "Folha de S. Paulo" de 5 de dezembro de 2012. Adaptado e ilustrado por Leopoldo Costa.
TRECHO DO LIVRO "ADONIRAN - UMA BIOGRAFIA"
(de Celso Campos Jr., Editora Globo).
Composta no balcão do bar Mutamba, na rua Major Quedinho, a música chamava-se originalmente “Bife à Milanesa”. Quando Carlinhos Vergueiro foi a Cidade Ademar [onde Adoniran morava] para registrar a canção em uma fita, a fim de mandá-la para o conhecimento de Clementina [de Jesus],o mestre-cuca Adoniran fez algumas mudanças na receita, com base em teorias que não se aprendem em nenhuma escola de culinária. Logo após o parceiro ter cantado e tocado a música no violão, o veterano fez a primeira alteração — justamente no ingrediente principal. - Carlinhos, vamos mudar de bife à milanesa para torresmo à milanesa. - Por que, Adoniran? - Porque não existe. Carlinhos Vergueiro então substituiu o nome do prato e ligou o gravador para registrar a nova versão. Quando chegou ao final, veio o toque final do chef nos versos “Arroz com feijão / E torresmo à milanesa”. -Carlinhos, vamos mudar para “um torresmo”. Tem que ficar “Arroz com feijão /E um torresmo à milanesa”. - Por que só um, Adoniran? - Porque é mais triste.
"A nossa boemia de antigamente era mais sossegadinha, sabe?Você podia ficar nas ruas cantando suas músicas. Andava de bar em bar, bebia lá, bebia cá"
(Adoniran Barbosa - Em reportagem publicada no Diário de S. Paulo, em janeiro de 1979)
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