4.17.2016

AS COZINHAS DE MARROCOS


Dizem que os zocos, os mercados de Marrocos, exalam os aromas das Mil e uma noites. E, nestes extraordinários contos, entrecruzam-se as fragrâncias do cravo-da-índia e da hortelã, do açafrão e do coentro, das sementes de noz-moscada e do anis-estrelado, da canela e do cardamomo, do zimbro e da pimenta-caiena, do gengibre e do orégano, do gergelim e do tomilho. Ou o perfume da manjerona, da sálvia, do manjericão, da páprica ... Os mesmos perfumes que destilam, em combinações às vezes barrocas e às vezes de uma simplicidade particular, todas as cozinhas do país.

Estes são apenas alguns dos aromas que marcam o caráter da cozinha marroquina. A estes é preciso acrescentar a melancia, o limão ou a laranja desidratados, as mil caras que adquire, nestas terras, a hortelã-pimenta ou a poderosa influência do ras el hanout, essa mistUra de especiarias de conteúdo incerto, cuja composição só é conhecida do seu próprio criador.

Marrocos está  muito próximo à Europa, do outro lado do Estreito de Gibraltar, no entanto, sua cozinha é uma das menos conhecidas pelos europeus. E não deveria ser assim, porque sentar-se à mesa em Marrocos é como desfrutar de uma fonte quase inesgotável de surpresas; é ir ao encontro do exotismo e do mistério de uma cozinha evocativa como poucas, tão simples como se quiser ou tão elaborada como se preferir; uma cozinha sedutora que se apresenta como uma vitrine heterogênea de aromas e sabores.

Não é dificil encontrar os muitos mercados e os zocos que enriquecem os recantos de Marrocos. Basta deixar-se levar pelos sentidos. Inspira-se levemente o ar e encontra-se o rastro que exala o aroma inconfundível, misterioso e evoca­tivo que impregna todos os cantos do zoco e que perfuma as ruas. Os mercados marroquinos oferecem um mostruário aromático difícil de igualar: especiarias, flores, cascas, frutas secas, raízes inteiras ou em pó e um conjunto infindável de produtos que dão vida a dezenas de combinações diferentes e embriagantes.

São apenas alguns dos aromas que marcam o caráter desta cozinha norte-africana. A tudo isto é preciso acrescentar o limão ou laranja desidratados, as mil faces que adquire a hortelã nestas terras ou a poderosa influência do ras el hanout. Essa exótica e misteriosa mistura de especiarias (o único que conhece a sua composição é o seu criador) é imprescindível nas cozinhas de Marrocos. No ras el hanout, os marroquis chegam a colocar a cantárida (condimento feito a partir da desidratação de insetos, mais precisamente a mosca espanhola, utilizada como afrodisíaco em algumas culturas).

Falta-nos falar ainda das águas perfumadas, preparadas com pétalas de rosa ou com flor de laranjeira, com as quais se aromatizam as pastilas, os tayines e as saladas. O processo de destilação é secular, e realiza-se em muitas casas com um pequeno alambique chamado quettara. São necessários três quilos de flores de laranjeira para conseguir quatro litros e meio de água perfumada. Embora seja menos utilizada, também nao não podemos esquecer da água de lavanda.

A cozinha de Al-Andalus

Pode parecer estranho, mas o fato é que a cozinha marroquitina se converteu na melhor referência possível para ir ao ncontro do passado culinário ibérico. Nas cozinhas do país, sobrevivem a influência de três culturas - a muçulmana, a judaica e a cristã - que se encontraram nos tempos de maior esplendor de Al-Andalus. Essa grande cozinha, mistura de culturas, condenada a desaparecer por culpa dos preconceitos religiosos e das influências do descobrimento da América, mantém-se viva cinco séculos depois.

À primeira vista, estas são as três grandes vertentes que marcam a gastronomia tradicional. Mas não podemos nos esquecer do legado de1xado pela presença francesa nestas terras, ou a marca da cozinha e dos produtos da chamada Africa Negra, mais patente nas cidades do Sul (do mesmo modo que a influência espanhola se deixa notar com maior insistência nas províncias do Norte).

E, além disso, os peritos falam da influência dos cozinheiros egípcios e explicam que os berberes são os responsáveis pelos tayines pela harira, do mesmo modo que os arabes são os responsáveis pelas especiarias ou os muçulmanos pelo papel desempenhado pelo azeite, a fruta ou as amêndoas. O pão, os cereais, o leite e as tâmaras são exemplos das influências deixadas pelos beduínos ...

Marrakech, Fez e Tânger figuram entre as principais referências culinárias de Marrocos.

A cozinha de Tânger recolhe em si um conjunto de influências: judaica, cristã, francesa... mas, acima de tudo, é o berço de um amplo receituário judeu que vai desde o mhemmer, uma espécie de omelete de batatas, à adafina, o cozido sefardi, precursor dos pratos de igual apresentação conhecidos no Ocidente. Além disso, encontraremos também uma maior presença do peixe do que é habitual no país. Não é usual que o prato de destaque de uma cidade marroquina se prepare com peixes. Uma dessas exceções é a traga, um guisado feito com mexilhões, peixes de carne branca, lulas, batatas e ovos.

Da mesma forma, não será estranho encontrar boas fritadas de peixe nas mesas dos povos que habitam a costa do litoral mediterrâneo. Mas não é mais do que uma miragem, visto que a cozinha marroquina não demonstra uma particular inclinação por este tipo de ingrediente.

Paixão pela carne

A escassa presença dos peixes - frescos, salgados ou defumados - na cozinha do país tem a ver com problemas de conservação, resultantes das condições climáticas ... O certo é que o peixe nunca teve um peso representativo na dieta do país. Em algumas regiões, considera-se de mau gosto servir peixe aos convidados (na realidade, serve-se quando se quer dar a entender aos hóspedes que chegou o momento de partir).

A mesa marroquina é suntuosa, suculenta e incrivelmente abundante. Apesar do menu cotidiano ser composto por um único prato, este surge rodeado de uma diversidade de acompanhamentos: aperitivos, briuats, rghaif, legumes, saladas, frutas secas, pastéis ... e assim sucessivamente;- até atingir uma oferta que poucos convivas estão em condições de consumir. É o reflexo da generosidade e do sentido hospitaleiro de um povo que converte cada refeição numa festa. E cada prato no centro de uma cerimônia.

Este é um país habitado por consumidores de carne, e particularmente de carne de cordeiro, onipresente em toda a gastronomia, assim como acontece com o frango, apesar de não dispensarem de modo algum outras propostas, como a vitela, a carne de camelo nas terras do Sul e, especialmente, pombos ou borrachos, cujas carnes constituem grande luxo culinário.

A carne de pombo é a protagonista de uma pastila tradicional, na qual é servida envolta em molde preparado com várias camadas de uma pasta muito fina, chamada brick que serve de base a muitas outras preparações. A pastila, os briuats, os bolinhos de folhas, a  pertencem a uma família que conta com centenas de receitas.

A mesa converte-se num universo de contrastes, protagonizado por saladas adoçadas com açúcar e aromatizadas com água-de-flor de laranjeira, ou por carnes, como a de pomba, que chegam salpicadas pelo suave aroma da canela, adornos nos quais intervém o mel...

Do tayin ao cuscuz

Acima de tudo, no entanto, estão as duas fórmulas mais populares, e também as mais conhecidas no Ocidente: o tayin e o cuscuz. O primeiro toma o nome do recipiente em que se prepara: um utensílio de barro concebido para guisar juntos todos os ingredientes do prato. O sonho de qualquer cozinheiro. Tudo junto na panela, tampar. .. e não resta mais nada senão vigiar o fogo e ter cuidado para nã.o grudar n fundo. O tayin de maior renome é o de carne e legumes, mas também não pod mos, d modo algum, deixar de lado o tayin de peixe.

O cuscuz é outra história. Também conta com utensílio próprio: a cuscuzeira, um recipiente metálico de proporções generosas, dotado de uma espécie de coador que se encaixa na parte alta da panela e que permite, por um lado, preparar o guisado e, por outro, cozinhar o cuscuz no vapor. É um guisado muito simples: carnes e legumes no fundo e sêmola prensada por cima. Todos os ingredientes são servidos na mesma travessa.

O principal utensílio culinário deste país são as mãos, ou, melhor dizendo, os dedos. Na realidade, segundo as normas do manual de bons costumes, só devem ser utilizados três dedos, como o fazem os profetas: o médio, o indicador e o polegar. Comer com quatro ou com cinco dedos é comportamento de glutões, exceto se o conteúdo do prato ficar macio demais.

Texto de Ignacio Medina extraido do livro "Marrocos" volume 5 da coleção Cozinha País a País publicado pela Folha de S. Paulo, 2007, excertos pp.07-12. Digitado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

No comments:

Post a Comment

Thanks for your comments...