5.27.2016

CHOCOLATE - ALIMENTO DOS DEUSES



O processamento da semente do cacau começou entre os grandes povos pré-colombianos, cuja elite bebia um chocolate primitivo, misturado com água, pimenta vermelha, milho e mel, em celebrações da vida e da morte. Entre aquelas civilizações, em que se confundiam selvageria e sofisticação, o cacau foi alimento, objeto de devoção e símbolo de poder. Isso até que, no século XVI, um conquistador espanhol, Hernán Cortés, acabasse com a festa mesoamericana: aniquilando o império de Montezuma, o maior soberano asteca, e levando o cacau para a Europa. Era o fim da pré-história do chocolate. E o começo de um novo romance entre a humanidade e o doce que conquistaria os paladares de nobres e plebeus, em todas as partes do mundo.

MAIAS E ASTECAS

Prisioneiros de guerra e jovens virgens não faziam planos de longo prazo no Império Asteca. Todos os anos, milhares deles eram sacrificados em rituais sádicos, em que os corações das vítimas eram arrancados com facas para aplacar a ira dos deuses - o que, na prática, era um pedido por mais chuva. Nem as crianças escapavam: quanto mais chorassem antes do golpe final, melhor. Sinal de que a estação seca não seria tão seca assim.

Por mais destrutivos que fossem seus rituais, os astecas dominaram a região central do México entre 1325 e 1521 e tiveram importância fundamental na história da alimentação. Foram eles que primeiro impressionaram um europeu, o conquistador espanhol Hernán Cortés (curiosamente o próprio algoz dos astecas), com a bebida preferida da elite daqueles índios: o chocolate. Mas, antes de migrar do Novo para o Velho Mundo, o cacau- matéria-prima do chocolate- teve trajetória ilustre entre povos ainda mais antigos, acompanhando banquetes, rituais e até os túmulos da nobreza maia, e antes dela dos olmecas, e antes deles de uma comunidade misteriosa da América Central: a primeira a ter a ideia de transformar o fruto do cacaueiro em bebida. Mas que ainda não era chocolate.

No princípio, era a birita. O primeiro fruto do cacau bebido nas Américas foi uma intrigante versão de cerveja artesanal (5% de álcool) produzida pela fermentação de sua polpa doce. É exatamente o que sugere um estudo da Universidade da Pensilvânia, com vasilhas de cerâmica datadas entre 1400 a.C. e 1100 a. C, de um sítio arqueológico de Honduras. "Os resultados foram espantosos", afirmou Patrick McGovern, um dos autores. "Todas as vasilhas deram resultado positivo para teobromina." Esse alcaloide, primo da cafeína, é a impressão digital do cacau. E o formato das vasilhas, semelhante ao de recipientes de bebida de outros povos, apontava para a natureza alcoólica de seu conteúdo.

Embora a identidade do povo que se embriagava ali seja um mistério, a revelação do que eles bebiam é importante. Explica qual deve ter sido a inspiração para que os olmecas, cerca de soo anos depois, procurassem outras formas de fazer bebida com o cacau e experimentassem fermentar não a polpa, mas as sementes.

Esses índios criaram a primeira grande civilização da América Central, no sul do México. Deixaram impressionantes cabeças humanas de 10 toneladas, inventaram um jogo tataravô do futebol e tinham uma atividade agrícola impressionante. No comércio, os olmecas usavam pó de cacau como moeda, e a mesma teobromina foi descoberta em recipientes desse povo; dessa vez, com formatos não associados à bebida alcoólica. Era o primeiro chocolate.

A influência dos olmecas foi tão grande entre os povos vizinhos que levou o hábito de beber chocolate para uma civilização mais bem documentada e com maior repercussão na história da humanidade: os maias.

Chocolate com Pimenta

O mundo não acabou em 2012 como eles supostamente previam. Mas isso não quer dizer que faltasse sabedoria a esses pré-colombianos, chamados pelos historiadores de "os gregos do Novo Mundo". Os maias (que tiveram seu período clássico entre os anos 200 e 900) eram bons de arquitetura, matemática - foram pioneiros da criação do zero, representado como um cesto vazio- e deixaram uma literatura rica, escrita em ranhuras feitas em papel de casca de figueiras. Em uma dessas obras, o Códice de Madrid, um painel exibe deuses furando as orelhas com lâminas, e o sangue respingando sobre um cacau.

O chocolate que esse povo bebia ainda era distante daquele que você pede na padaria para acompanhar o pão na chapa. Mas já havia ali todo um sistema de processamento da semente do cacau que,sim, deixou herança para a manufatura dos dias de hoje. Depois que a amêndoa (como também é chamada essa semente) era fermentada, seca, tostada e moída- até aqui, os mesmos passos do processo atual -, a pasta resultante era misturada com água, pimenta, mel e farinha de milho.

Mais uma vez, o chocolate ali era uma bebida de elite, que acompanhava a nobreza até nos túmulos . E sua semente era presença obrigatória em momentos mais felizes também: nas cerimônias de casamento, os noivos trocavam cinco sementes de cacau como hoje trocam alianças. Um sinal mútuo de aceitação. E de valorização do produto.

"Reis maias vitoriosos exigiam pesados tributos em cacau das tribos conquistadas, que colhiam os frutos", explica o americano Mort Rosenblum, autor de Chocolate - Uma Saga Agridoce Preta e Branca. Falando sobre as terras ricas em produção entre o México e a Guatemala, o escritor afirma: "Em essência, esses cinturões de cacau equivaliam à Casa da Moeda maia, onde o dinheiro dava em árvores."

O Deus do Chocolate

Se para os maias o cacau servia como artigo valioso para transações comerciais, para os astecas era mais que isso: era a moeda oficial do reino. A maior parcela das sementes constituía um tesouro nacional e pagava inclusive o salário dos militares. Comprava-se um escravo com 100 sementes; um programa com uma prostituta custava até 10. A parte que não virava grana era moída e transformada em chocolate, mais acessível à alta sociedade - que, embora gostasse de sacrificios humanos, tinha seu lado festeiro. Como conta o antropólogo francês Jacques Soustelle, autor de Daily Life o{ the Aztecs (A vida cotidiana dos astecas): "Os banquetes prosseguiam até de madrugada, com danças e canções, e a festa só terminava de manhã, depois da última taça do perfumado chocolate, cheirando a mel e baunilha".

Os astecas chamavam sua bebida de "xocolatl", junção das palavras "xococ"(amargo) e "atl"(bebida). Ou seja, o nome da coisa é um fóssil linguístico - uma palavra asteca que acabou ressuscitada em praticamente todos os idiomas do planeta.

Eles também eram religiosos: tinham crenças complexas em diversos deuses, que representavam as forças da natureza. Inclusive adoravam um deus do chocolate. Era Quetzalcoatl, que, segundo acreditavam, trouxe o cacau direto do jardim do Paraíso. Os súditos de Montezuma, o grande rei asteca, ainda não sabiam, mas a adoração a esse deus teria influência direta no genocídio que varreria o império do mapa. Conforme a mitologia, Quetzalcoatl teria entrado em atrito com outro deus e fugido numa jangada entrelaçada de serpentes. Mas com a promessa de que voltaria, no ano de 1519.

E eis que justamente nesse ano surge um ser extraordinário, vindo do mar, como previam os ancestrais -sobre uma "casa flutuante" e cavalgando animais que os astecas nunca tinham visto: não havia cavalos ainda nessa parte do mundo. Os astecas celebraram a volta triunfal de seu deus do chocolate e o receberam com submissão e presentes. Hernán Cortés não podia esperar melhor recepção. E reagiu seguindo o instinto do conquistador que era: em apenas dois anos, saqueou, matou e dizimou um império de dois séculos.

EUROPA CONQUISTADA

A caminho de casa, após sua quarta incursão pela América, Cristóvão Colombo passava pelo litoral de Honduras, ainda na esperança de encontrar alguma riqueza exótica. Corria o ano de 1502. Ancorado próximo a uma ilha, abordou canoas de índios que traziam panos e utensílios de cobre, entre outras bugigangas. Mas o que os selvagens pareciam achar de mais precioso entre suas ofertas era um punhado de amêndoas. O descobridor não entendeu quando algumas delas caíram no fundo da canoa, e os aborígenes "se engalfinharam para catá-las, como se fossem olhos que tivessem caído de suas cabeças"- segundo relataria mais tarde o filho do genovês. Como Colombo e os índios não falavam a mesma língua, ele ficou sem entender o valor daquelas sementes. Deixou-as para trás, e assim perdeu a chance de ser o homem que introduziria o chocolate no continente europeu.

Quem o fez foi o espanhol Hernán Cortês, que, enquanto acabava com a raça dos astecas, teve chance de testemunhar como aquelas amêndoas enrugadas se transformavam em bebida na mão dos nativos. E chegou até a anotar uma receita para o preparo do líquido: 700 gramas de cacau, 750 de açúcar, 60 de canela, 15 de pimenta, 14 de cravo, 3 favas de baunilha, um punhado de anis, algumas avelãs, almíscar e flor de laranjeira. Quando escreveu ao rei da Espanha, Carlos I, encheu sua descoberta de elogios: "Com uma xícara dessa bebida preciosa, um homem é capaz de caminhar um dia inteiro sem comer".

Não há registro de que o monarca europeu tenha se entusiasmado tanto quanto seu súdito. E o cacau permaneceu raro na Espanha durante quase 60 anos. Foi só em 1585 que uma frota partiu do território do antigo Império Asteca em direção a Sevilha, carregada com cacau. Começava ali o tráfego marítimo que estabeleceria de vez o chocolate no centro do Velho Mundo. Mas, durante algum tempo, ele ficaria restrito à Espanha, como um delicioso segredo.

Conforme conta Mort Rosenblum em seu Chocolate- Uma Saga Agridoce Preta e Branca, o cacau era processado em mosteiros e conventos espanhóis. E o fato de o chocolate ser tão irresistível gerou polêmica entre os católicos, ciosos das tentações terrenas. Um bispo da época ficou furioso porque as senhoras sorvendo chocolate nos últimos bancos da igreja perturbavam a missa. "As mulheres se recusaram a ceder e mudaram de igreja. E o bispo, inexplicavelmente, morreu envenenado.

O cacau permaneceu um segredo espanhol até o começo do século XVII. Foi quando um mercador florentino, Francesco Antonio Carletti, conseguiu levá-lo para a Itália, acabando com o monopólio ibérico. O que foi ótimo. Os cozinheiros italianos logo estavam imaginando novas formas de preparar o cacau líquido e a bebida ficou muito mais interessante. Eles desenharam porcelanas exclusivas para servi-la, e salões de chocolate abriram em Veneza e Florença. Mas a consolidação do sucesso no continente europeu viria mesmo a partir de 1615. Foi quando uma princesa espanhola de 14 anos, Ana de Áustria, teve de se mudar para a França, para casar. Seu futuro marido era nada menos que o rei Luís XIII- Mas Ana só concordou em partir quando lhe deixaram levar para Paris seu verdadeiro amor: o chocolate.

RAINHAS CHOCÓLATRAS

Na França, o cacau foi incorporado à riqueza da cultura gastronômica. Foi lá que surgiu o primeiro chocolatier do mundo: David Chaillou, intitulado chocolateiro oficial. Ganhou até patente real, em 1670, concedendo-lhe "o privilégio exclusivo de fazer, vender e administrar certa composição chamada chocolate". Chaillou levou a preparação da bebida a outro patamar, conquistando de vez o paladar da aristocracia francesa. Tanto que receber convidados para tomar chocolate quente no desjejum, em canecas de prata, virou moda entre os ricos da época. Era a droga preferida dos bem-nascidos, visto como estimulante do bom humor e incentivador da libido. O cardeal Richelieu admitiu vicio pela coisa. E, curiosamente, até a Revolução Francesa, todos os reis Luíses se envolveriam com mulheres chocólatras. Maria Teresa, que se casou com Luís XIV, era obcecada por chocolate. Uma fofoca dizia que a rainha havia tido uma filha negra, que escondeu do mundo - e isso teria sido consequência do tanto de chocolate que ela ingeria. Já a amante de Luís XV. a Marquesa de Pompadour, obrigava o rei a tomar chocolate para funcionar na cama- ela dizia que, sem a bebida, Luís parecia "morto como um pato frio". Maria Antonieta também desembarcou em Paris com chocolate na bagagem. E trouxe seu próprio chocolatier vienense, que lhe preparava uma infusão que combinava pó de orquídeas, flor de laranjeira e leite de amêndoas.

Como aconteceu em diversas épocas da gastronomia, o entusiasmo dos franceses contaminou o resto da Europa- o que, naquela época, significava o resto do mundo. E a exportação dessa devoção, especialmente para a Inglaterra, revolucionou o consumo, mudando para sempre o rumo da história do chocolate.

NA BOCA DO POVO

Ainda na segunda metade do século XVII, um francês abriu em Londres a primeira loja de chocolate inglesa. Com uma diferença fundamental: sua clientela era de pessoas comuns. A bebida deixava de ser uma exclusividade da aristocracia e caía no gosto popular. Tanto que as casas de chocolate londrinas logo estavam rivalizando com as cafeterias. E foi em 1674 que o Caffee Mill e o Tobacco Roll surgiram com uma novidade que teria consequências na forma como eu e você degustamos nossos chocolates: eles passaram a servir o doce sólido. Pela primeira vez na história, havia à disposição chocolate para comer.

Pena que o que serviam era um doce grosseiro e, segundo relatos, não muito gostoso. Mas abriu a possibilidade de se ter chocolate em outras formas. Ainda assim, a primeira grande inovação nesse sentido demoraria a acontecer - mais de 150 anos. Foi em 1828 que o holandês Coenrad van Houten descobriu um jeito de extrair, com uma prensa hidráulica, a manteiga de cacau e depois fazer um pó com o restante da massa. Combinando parte da manteiga de cacau separada com açúcar e adicionando o pó, ele conseguiu um feito inédito: moldar o chocolate. Duas décadas depois, o inglês Joseph Fry aprimorava a técnica para produzir o primeiro chocolate em barra do planeta.

Mais 20 anos se passaram, e um chocolateiro suíço, Daniel Peter, usou leite condensado, inventado por um amigo alemão, para criar o chocolate ao leite - até hoje, o mais popular dos produtos à base de cacau. O tal amigo era um farmacêutico que, em 1886, ainda inventaria outro best-seller da alimentação: a farinha láctea. Seu nome? Heinrich Nestlé.

Publicado na edição 361-A, maio 2016,  "Dossier Super Interessante" Alexandre Carvalho editor, excertos pp.7-15. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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