5.25.2017

A IGREJA NO BRASIL COLONIAL


Os portugueses acreditavam que, ao fundar um império colonial, estavam, na verdade, cumprindo uma missão religiosa. Segundo o padre Antônio Vieira, Deus confiara a Portugal a divina incumbência de “estabelecer o seu Reino neste mundo”. No Regimento entregue a Tomé de Sousa, em 1549, o rei D. João III dizia que o principal motivo que o levava a povoar o Brasil era o desejo de converter sua gente à fé católica. Pode parecer estranho que, em nome desse objetivo, o território brasileiro fosse tão rapidamente despovoado de índios ao mesmo tempo em que se povoava de europeus e africanos. Sincera ou não, o certo é que a afirmação do rei não desmentia o fato de que a colonização foi basicamente um processo de enriquecimento da Metrópole por meio do comércip com a Colônia, o Brasil.

Mesmo assim, a importância do caráter “missionário” da colonização não deve ser subestimada. Ela se expressa na ação das várias ordens religiosas que estiveram presentes no país durante o período colonial.

Fases da ação missionária.

Segundo o historiador Eduardo Hoomaert, a ação dos missionários no Brasil colonial passou por quatro fases, coincidindo com momentos diferentes da própria colonização. A primeira fase foi a da conquista e ocupação do litoral, incluindo a “costa do pau-brasil” e o Nordeste canavieiro. A segunda correspondeu ao povoamento do sertão seguindo o curso dos rios, principalmente o São Francisco. A terceira foi a da ocupação do Norte depois da expulsão dos franceses do Maranhão: a partir de São Luís, os portugueses, entre os quais muitos sacerdotes missionários, avançaram pelos rios Pindaré, Itapecuru, Mea- rim e, depois, pelo Amazonas e afluentes.

O quarto movimento missionário não foi conduzido diretamente pelo clero mas pelo próprio povo português: foi o movimento das irmandades leigas de Minas Gerais, que só passaram ao controle da hierarquia eclesiástica depois da criação do bispado de Mariana, em 1745.

As ordens religiosas

Os jesuítas tomaram-se, de certo modo, um símbolo da ação missionária no Brasil colonial. Preocupados com a educação e a catequese dos indígenas, fundaram nossos dois primeiros colégios: o de Salvador, em 1549 e o de São Vicente, em 1550. Mas não foram os únicos a participar da colonização. Entre as demais ordens religiosas, tiveram papel importante os franciscanos, os carmelitas e os beneditinos.

Embora os franciscanos tenham sido os primeiros a chegar ao Brasil, seu primeiro convento — a custódia de Santo Antônio em Olinda — só foi criado em 1585. Sua vinda para o Brasil fora solicitada pelos próprios colonos. Por isso sua ação esteve muito mais ligada à expansão das fronteiras da colonização do que à catequese dos nativos. No Nordeste, eles acompanharam a conquista do litoral aos franceses; no Sul, participaram das bandeiras de apresamento, que capturavam e escravizavam os índios.

O mesmo espírito expansionista caracterizou os carmelitas, que chegaram à Colônia em 1580 na armada de Frutuoso Barbosa e começaram a construir um convento em Olinda três anos depois. De Pernambuco a ordem se espalhou para Paraíba, Maranhão, Pará e Amazonas; depois, atingiu as capitanias do Sul.

Os beneditinos chegaram à Bahia em 1581 e ali fundaram uma abadia em 1584. Ainda no século XVI, estabeleceram-se no Rio de Janeiro, Olinda, Paraíba e São Paulo. Mas sua ação missionária foi truncada, primeiro, pela ocupação holandesa, durante a qual suas abadias foram destruídas; e, depois, pela repressão desencadeada na época do marquês de Pombal, quando o governador Mendonça Furtado mandou fechar os noviciados da ordem.

Religiosos na organização burocrática

Seja por meio das ordens religiosas ou do clero secular, a Igreja católica teve uma enorme influência no Brasil colonial. Junto com os colonos e sacerdotes portugueses, transferiu-se para a nova terra muito do fervor religioso que caracterizava a Europa da época da Reforma — e da Contra-Reforma. A influência moral dos padres sobre seu rebanho, principalmente nas questões referentes à família e aos bons costumes, era reforçada por sanções que iam de uma simples repreensão à excomunhão.

A Igreja era também a única forma de serviço social que se conhecia, dando amparo aos velhos, órfãos e enfermos, cuidando da educação das crianças e organizando a maioria das festas populares. Para isso, contava com a ação direta das ordens religiosas ou com a atividade das confrarias. Estas últimas eram associações religiosas das quais participavam leigos. Sua finalidade específica era promover a devoção de um santo. Dividiam-se em dois grupos: as irmandades e as ordens terceiras. Uma das irmandades mais importantes era a da Misericórdia, que cuidava da assistência aos doentes e promovia a construção de hospitais. Em 1543, essa irmandade fundou a Santa Casa de Santos. A partir de então surgiram Casas de Misericórdia em quase todas as vilas e cidades da Colônia.

Entre a cruz e a Coroa

Embora influente, a Igreja dessa época era menos poderosa que a de hoje num aspecto: estava muito mais sujeita à interferência do poder temporal, isto é, do Estado. Mais do que interferência, chegou a haver, de fato, um controle quase completo da Coroa sobre a Igreja em Portugal.

A base desse controle era o “padroado régio”, pelo qual a Santa Sé reconhecia o rei de Portugal como a maior autoridade eclesiástica — abaixo do papa, naturalmente — dentro de seus domínios. Cabia à Coroa, entre outras coisas, criar e prover bispados, construir igrejas e delimitar-lhes a jurisdição territorial, autorizar o estabelecimento de ordens religiosas, conventos e mosteiros. Desde D. Manuel, o rei era ao mesmo tempo mestre da Ordem de Cristo, ordem militar-religiosa encarregada de arrecadar e aplicar os dízimos devidos à Igreja. Por outro lado, a manutenção do clero corria por conta da Coroa, que pagava aos bispos, cônegos, párocos e seus auxiliares rendimentos fixos chamados côngruas, além de outras contribuições em dinheiro, as benesses.

Auxiliares da administração colonial

No Brasil, a Coroa portuguesa supervisionava os assuntos eclesiásticos por meio da Mesa de Consciência e Ordens. Embora sua subordinação não fosse absoluta, o clero secular e regular constituía uma espécie de braço auxiliar da administração colonial. Era desta que recebia as côngruas, o que marcava a assimilação dos padres aos demais funcionários do rei na Colônia.

Ao lado das ordens religiosas, a Igreja se fazia presente por meio da rede de dioceses e paróquias, que foi se ampliando com o progresso da colonização. Por 126 anos, a partir de 1550, o Brasil teve uma única diocese, a da Bahia. Em 1676, a Bula 'Interpastoralis oficii', do papa Inocêncio XI, elevou a capital da Colônia à condição de arquidiocese; seu arcebispo passou a ser o metropolitano da província eclesiástica do Brasil, qualidade que conservou até a República.

Outras duas bulas da mesma data criavam os bispados de São Sebastião do Rio de Janeiro e de Olinda, subordinados ao arcebispado da Bahia. Um ano depois, em 1677, a Bula 'Super universas' criou o bispado do Maranhão, subordinado ao arcebispado de Lisboa.

Mais umas poucas unidades foram criadas até o fim do período colonial: a diocese de Belém do Pará, em 1719, também subordinada a Lisboa, e os bispados de São Paulo e Mariana, em 1745, subordinados à Bahia. Ainda em 1745, Goiás e Mato Grosso passaram a constituir prelazias, um tipo de unidade em transição para o bispado.

A Inquisição chega do Brasil

Apesar de proibidas, não cessaram as fugas de cristãos-novos para o exterior ao longo de todo o período que durou a Inquisição na Espanha e Portugal. Muitos foram para a África, criando colônias de judeus sefardins em Argel, Túnis e no Egito. Outros se estabeleceram no Império Turco, nas cidades de Constantinopla e Salonica. Regiões da França e da Itália também receberam fugitivos da península Ibérica. Mas a maior corrente de imigração dirigiu-se para a Holanda, especialmente Amsterdam, onde floresceu a mais próspera comunidade judaica sefardim.

Da Holanda, nos navios da Companhia das índias Ocidentais, muitos judeus emigravam para o Nordeste brasileiro. Durante a ocupação holandesa chegou a funcionar uma sinagoga no Recife. No Brasil esses imigrantes encontrariam muitos outros judeus vindos diretamente de Portugal.

A Inquisição vigia à distância

A presença de judeus e cristãos-novos oriundos de Portugal indica que o Brasil era também, de certo modo, um refugio para os perseguidos pela Inquisição. Isso não quer dizer que na Colônia eles gozassem de uma situação legal mais favorável. Acontece que o Tribunal do Santo Ofício não chegou a se estabelecer diretamente na América portuguesa — ao contrário da América espanhola, onde as fogueiras da intolerância seguiram a trilha da conquista. Desse modo, os judeus imigrados ficavam, no Brasil, menos expostos à fúria inquisitorial.

Parece ter havido mesmo uma política deliberada da Coroa portuguesa no sentido de estimular a emigração de cristãos-novos para o Brasil, talvez semelhante à política de envio de degredados para apressar o povoamento da Colônia. Se fechava os olhos para a “pureza de sangue” no interesse da colonização, a Coroa não podia, contudo, abdicar do combate à “heresia” — incluindo o judaísmo e transgressões comuns dos costumes da Colônia, como a bigamia, adultério, sodomia, etc. Dessa maneira, a Inquisição estendeu também sua vigilância ao Brasil, por meio dos chamados visitadores e comissários.

Os visitadores eram inquisidores especialmente credenciados para representar temporariamente o Santo Ofício na Colônia. Eram recebidos com grande pompa pelas autoridades locais, que tinham ordem do rei para ajudá-los em tudo o que fosse preciso. A primeira visitação feita ao Brasil, comandada pelo inquisidor licenciado Heitor Furtado de Mendonça, permaneceu no Nordeste de 1591 a 1595, fazendo uma gorda colheita de marranos, feiticeiros, adúlteros e sodomitas. A última de que se tem notícia esteve no Grão-Pará de 1763 a 1769, e visou mais as transgressões de costumes que o judaísmo.

Além dos visitadores, os comissários, com menos poderes, eram agentes da Inquisição em lugares onde não havia “mesa”, isto é, tribunal. Houve um bom número deles no Brasil, sempre ajudados por uma legião de “familiares”, os espiões e delatores infiltrados em todos os cantos da sociedade.

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A morte do “Judeu

Uma das vítimas mais famosas da Inquisição foi Antônio José da Silva, que, apesar do nome, passou à história como o “Judeu”. Nascido no Rio de Janeiro, suas desventuras são contadas pelo historiador Antônio José Saraiva em 'Inquisição e Cristãos-Novos':

“Em 1711, numa redada em que avultavam numerosos senhores de engenho, a Inquisição prendeu o pai, a mãe e outros parentes de Antônio José. Todos trataram de salvar-se ‘confessando’ e denunciando o maior número possível de pessoas. (...) Em 1726, o noivo de uma prima de Antônio José, querendo desembaraçar-se do noivado, não achou melhor meio do que ir denunciar a noiva à Inquisição. (...) Antônio José da Silva foi preso em 5 de outubro de 1737 sem que houvesse na mesma Inquisição denúncia registrada (...) 

No mesmo dia, mas com as formalidades habituais da ordem de captura e das denúncias registradas, foram presos a mulher, a mãe e outros parentes. (...) A elas foi aplicado o tormento. (...) Como resistissem à prova mantendo a negativa, foram restituídas à liberdade ao fim de alguns meses de prisão. (...) Mas a Antônio José da Silva foi recusada essa escapatória. Em lugar do tormento foi-lhe aplicado um método cujo resultado era infalível: o das denúncias no cárcere.

(...) Dois presos-espiões foram metidos na sua cela (...) Um deles disse que tinha visto o acusado cuspir nas imagens dos santos. (...) Com esses depoimentos se formou o processo (...) O réu tinha sido preso em 5 de outubro de 1737, e a sentença declarava que ele estava em estado de heresia desde abril de 1738 (...) Desta forma, ‘por culpa de não ter culpa’, ele viveu seis meses na prisão antes de cometer o suposto delito pelo qual veio a ser condenado à morte”.

Publicado em "Saga: Grande História do Brasil" vol.2, Colonia 1640/1808, editor Victor Civita, Abril Cultural,São Paulo, 1981, excertos pp.28-31 e 36-37. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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