6.01.2017

A CERVEJA - HISTÓRIA DO MUNDO EM SEIS COPOS


UMA BEBIDA FERMENTADA DA IDADE DA PEDRA


UM GOLE DE PRÉ-HISTÓRIA

Os seres humanos que começaram a emigrar da África há aproximadamente 50 mil anos viajavam em pequenos bandos nômades e se abrigavam em cavernas, cabanas ou tendas feitas com peles. Caçavam, pescavam e colhiam plantas comestíveis, mudando-se de um acampamento temporário para outro a fim de explorar suprimentos sazonais de alimentos. Seus instrumentos incluíam arcos-e-flechas, anzóis e pedras pontiagudas. Mas então, começando há cerca de 12 mil anos, uma transformação notável ocorreu. Os homens no Oriente Próximo abandonaram o velho estilo de caçar e coletar do período paleolítico (a velha Idade da Pedra) e começaram a se envolver na agricultura, estabelecendo-se em aldeias que no final das contas cresceram e transformaram-se nas primeiras cidades do mundo. Também desenvolveram muitas novas tecnologias, incluindo a cerâmica, os veículos com rodas e a escrita.

Desde o surgimento dos seres humanos “anatomicamente modernos”, ou Homo sapiens sapiens, há cerca de 150 mil anos na África, a água era a bebida básica da humanidade. Líquido de primordial importância, representa até dois terços do corpo humano, e nenhuma vida na Terra pode existir sem ele. Mas com a mudança do estilo de vida de caça e coleta para um mais sedentário, os homens vieram a contar com uma nova bebida derivada de cevada e trigo, as primeiras plantas intencionalmente cultivadas. Esta tornou-se o núcleo central da vida social, religiosa e econômica, e foi a principal bebida das primeiras civilizações. Foi a primeira a ajudar a humanidade ao longo do caminho para o mundo moderno: a cerveja.

Não se sabe exatamente quando a primeira cerveja foi fermentada. É quase certo que não havia cerveja antes de 10000 a.C., mas ela já estava espalhada pelo Oriente Próximo na altura de 4000 a.C., quando aparece num pictograma da Mesopotâmia – região que atualmente corresponde ao Iraque – que retrata duas pessoas tomando cerveja com canudos de junco num grande jarro de cerâmica. (A cerveja antiga tinha grãos, palhas e outros fragmentos flutuando na sua superfície, daí por que um canudo era necessário para se evitar engoli-los.)

Como os primeiros exemplos de escrita só aparecem por volta de 3400 a.C., os documentos iniciais não podem projetar uma luz direta sobre as origens da cerveja. O que está claro, porém, é que seu surgimento esteve diretamente associado com a domesticação dos cereais de que era feita e a adoção da agricultura. Veio a existir durante um período turbulento da história da humanidade, que testemunhou a mudança de um estilo de vida nômade para um mais fixo, seguida por um repentino aumento da complexidade social, manifestada de forma mais impressionante pelo surgimento das cidades. A cerveja é uma relíquia líquida da pré-história do homem, e suas origens estão fortemente entrelaçadas com as próprias origens da civilização.

A DESCOBERTA DA CERVEJA

A cerveja não foi inventada e sim descoberta. Sua descoberta era inevitável já que a coleta de grãos selvagens de cereais tornou-se freqüente após o final da última Idade do Gelo, por volta de 10000 a.C., numa região conhecida como Crescente Fértil. Essa área estende-se desde o Egito dos tempos modernos, subindo a costa mediterrânea, até o canto sudeste da Turquia, e então descendo novamente até a fronteira entre o Iraque e o Irã. É assim chamada por causa de um feliz acidente geográfico. Quando a Era do Gelo acabou, as terras altas da região forneciam um ambiente ideal para carneiros selvagens, bodes, gado e porcos – e, em algumas áreas, para plataformas densas de trigo e cevada selvagens. Isso significava que o Crescente Fértil oferecia certos locais específicos extraordinariamente ricos para bandos ambulantes de caçadores-coletores humanos. Eles não só caçavam animais e colhiam plantas comestíveis, mas também juntavam os cereais abundantes que cresciam de forma selvagem na região.

Esses grãos eram uma fonte alimentar pouco interessante, porém confiável. Embora sejam inadequados para o consumo quando estão crus, podem se tornar comestíveis sendo esmagados ou comprimidos e depois mergulhados na água. Inicialmente, os grãos selvagens eram provavelmente misturados numa sopa. Uma variedade de ingredientes como peixes, castanhas e frutas silvestres seria misturada com água numa cesta emplastrada com betume. Então, pedras aquecidas pelo fogo eram jogadas lá dentro usando-se uma vareta em forma de garfo. Os cereais contêm pequeninos grãos de amido, e quando são colocados na água quente absorvem a umidade e depois arrebentam, soltando o amido na sopa e engrossando-a consideravelmente.

Logo foi descoberto que os cereais tinham outra propriedade incomum: ao contrário de outros alimentos, podiam ser armazenados para consumo meses ou mesmo anos mais tarde se fossem mantidos secos e em lugar seguro. Quando não havia disponibilidade de outros ingredientes alimentícios para o preparo da sopa, eles podiam ser usados diretamente para se fazer uma papa grossa, um caldo fino ou um mingau. Essa descoberta levou ao desenvolvimento de instrumentos e técnicas para colher, processar e armazenar grãos. Isso exigia muito esforço, mas constituía-se numa maneira de se proteger contra a possibilidade de escassez de alimentos no futuro. Por todo o Crescente Fértil, há evidências arqueológicas datadas de c. 10000 a.C. de foices de pedra laminadas para colher cereais, cestas trançadas para carregá-los, lareiras de pedra para secá-los, buracos na terra para armazená-los e pedras de amolar para processá-los.

Embora os caçadores-coletores já tivessem levado vidas semi-sedentárias em vez de completamente nômades, movendo-se entre um certo número de abrigos temporários ou sazonais, a habilidade em armazenar cereal começou a encorajar as pessoas a permanecerem em um único lugar. Um experimento conduzido na década de 1960 mostra as razões. Um arqueólogo usou uma foice de pedra laminada para ver com que eficiência uma família pré-histórica poderia ter feito a colheita de grãos selvagens, que ainda crescem em algumas partes da Turquia. Em uma hora ele reuniu mais de um quilo de grãos, o que sugeria que uma família que trabalhasse oito horas por dia durante três semanas seria capaz de juntar o suficiente para suprir cada membro da família com meio quilo de grãos por dia durante um ano. Mas isso significaria ficar perto das plataformas de cereais selvagens, para garantir que a família não perdesse o momento mais adequado para fazer a colheita. E, tendo reunido uma grande quantidade de grãos, a família ficaria relutante em deixá-los desprotegidos.

Em conseqüência, surgiram os primeiros assentamentos permanentes, como os que foram estabelecidos na costa oriental do Mediterrâneo a partir do ano 10000 a.C. Consistiam em cabanas simples e redondas com tetos apoiados em estacas de madeira e pisos afundados até quase um metro no terreno. Essas cabanas normalmente tinham uma lareira e um piso calçado com pedras com diâmetro de quatro ou cinco metros. Uma aldeia típica consistia em cerca de 50 cabanas, dando apoio a uma comunidade de 200 ou 300 pessoas. Embora os residentes dessas aldeias continuassem a caçar animais selvagens tais como gazelas, cervos e javalis, a evidência de esqueletos sugere que eles subsistiam com uma alimentação principalmente à base de plantas como carvalhos, lentilhas, grãos-de-bico e cereais, os quais nesse estágio eram ainda coletados na forma selvagem em vez de serem cultivados intencionalmente.

Os cereais, que começaram sendo ingredientes alimentícios relativamente sem importância, tornaram-se mais importantes depois da descoberta de outras duas propriedades incomuns. A primeira é que os grãos embebidos em água começam a brotar com gosto doce. Era difícil fazer locais de armazenamento inteiramente à prova de água, portanto essa propriedade deve ter-se tornado evidente logo que os homens começaram a armazenar grãos. A causa dessa doçura é compreendida hoje em dia: o grão úmido produz a enzima diástase, que converte o amido dentro do grão em açúcar maltado ou malte. (Esse processo ocorre em todos os cereais, mas a cevada é o que de longe produz a maior quantidade de enzimas diástases e conseqüentemente mais açúcar maltado.) Num momento em que as outras fontes disponíveis de açúcar eram poucas, a doçura desse grão “maltado” viria a ser altamente valorizada, estimulando o desenvolvimento de técnicas de preparação deliberada de malte nas quais o grão era primeiro enxaguado e depois então seco.

A segunda descoberta foi ainda mais importante. O mingau que fosse deixado parado por alguns dias passava por uma misteriosa transformação, principalmente se tivesse sido feito com grão maltado: tornava-se ligeiramente efervescente e agradavelmente embriagante à medida que a ação de leveduras selvagens no ar fermentava o açúcar, transformando-o em álcool. Em uma palavra, o mingau virava cerveja.

Mesmo assim, a cerveja não foi necessariamente a primeira forma de álcool a chegar aos lábios humanos. Quando ela foi descoberta, o álcool resultante da fermentação acidental do suco de fruta (para fazer vinho) ou da água com mel (para fazer hidromel) teria acontecido naturalmente em pequenas quantidades à medida que as pessoas tentassem armazenar frutas ou mel. Mas as frutas são sazonais e perecem facilmente, o mel selvagem somente estava disponível em pequenas quantidades – e nem o vinho nem o hidromel podiam ser armazenados por muito tempo sem a cerâmica, que só surge por volta de 6000 a.C. A cerveja, por outro lado, podia ser feita a partir de safras abundantes de cereais facilmente armazenáveis, fazendo com que a bebida pudesse ser preparada de modo confiável e em quantidades razoáveis quando necessário. Bem antes que a cerâmica estivesse disponível, a cerveja podia ser fermentada em cestas com piche, sacos de couro ou estômagos de animais, árvores ocas, grandes conchas ou recipientes de pedra.

As conchas eram usadas para cozinhar ainda no século XIX na bacia amazônica e a Sahti, uma cerveja tradicional feita na Finlândia, é feita ainda hoje em árvores ocas.

Depois da descoberta crucial da cerveja, sua qualidade foi sendo melhorada por meio de tentativas e erros. Quanto maior a quantidade de grão maltado existente no mingau original, por exemplo, e quanto mais tempo for deixado para a fermentação, mais forte será a cerveja. Mais malte quer dizer mais açúcar, e uma fermentação mais longa quer dizer que mais do açúcar é transformado em álcool. Cozinhar completamente o mingau também contribui para aumentar o teor alcoólico da cerveja. O processo de preparação do malte converte apenas 15 por cento do amido encontrado nos grãos de cevada em açúcar, mas, quando a cevada maltada é misturada com água e fervida, outras enzimas conversoras de amido – que se tornam ativas a altas temperaturas – contribuem para produzir mais açúcar, resultando em uma maior quantidade desta para a levedura se transformar em álcool.

Antigos cervejeiros também observaram que o uso repetido do mesmo recipiente para fermentação produzia resultados mais confiáveis. Registros históricos posteriores oriundos do Egito e da Mesopotâmia mostram que os produtores da bebida fermentada sempre carregavam consigo suas próprias “tigelas de mistura”, e um mito da Mesopotâmia faz referência aos “recipientes que fazem boa cerveja”. O uso repetido da mesma tigela de mistura promovia uma fermentação bem-sucedida porque as culturas de levedura passavam a residir nas fendas e rachas do recipiente, e, portanto, não havia mais necessidade de se depender da levedura selvagem, mais inconstante. Finalmente, ao se adicionarem frutas silvestres, mel, temperos, ervas e outros condimentos ao mingau, o sabor da cerveja resultante era alterado de várias maneiras. Ao longo dos milhares de anos seguintes, as pessoas foram descobrindo como fazer uma variedade de cervejas de teores e sabores diferentes para ocasiões distintas.

Registros egípcios posteriores mencionam pelo menos 17 tipos de cerveja, alguns deles com referências em termos poéticos que quase soam aos ouvidos modernos como slogans publicitários: as diversas cervejas eram conhecidas como “a boa e bela”, “a celestial”, “a produtora de alegria”, “a companheira da refeição”, “a plena”, “a fermentada”. As que eram usadas em cerimônias religiosas também tinham nomes especiais. De modo semelhante, registros escritos anteriores do terceiro milênio a.C., oriundos da Mesopotâmia, listam mais de 20 tipos diferentes, incluindo cerveja fresca, cerveja escura, cerveja fresca e escura, cerveja forte, cerveja marrom-avermelhada, cerveja leve e cerveja prensada. A marrom-avermelhada era uma cerveja escura feita com um malte especial, ao passo que a cerveja prensada era mais fraca, uma bebida fermentada mais aguada e com menos grãos. Os produtores da Mesopotâmia podiam também controlar o gosto e a cor de sua cerveja, adicionando montantes diferentes de bappir ou pão de cerveja.

Para se fazer bappir, os brotos de cevada eram moldados em torrões – como pequenos bolos, que eram cozidos duas vezes para produzir um pão marrom-escuro, crocante, sem levedura, que podia ser armazenado por anos antes de ser esfarelado no barril do fermentador. Os registros indicam que o bappir era guardado em armazéns do governo e só era comido durante períodos de escassez de alimentos; não era bem um ingrediente alimentício, mas antes uma maneira conveniente de se armazenar a matéria-prima para o preparo da cerveja.

O uso de pão no processo de fazer cerveja na Mesopotâmia levou a muitos debates entre os arqueólogos, sendo que alguns sugeriram que o pão deve, por conseguinte, ser um desdobramento da produção de cerveja, ao passo que outros argumentaram que o pão veio primeiro e foi usado subsequentemente como um ingrediente na cerveja. Todavia, parece mais provável que tanto o pão como a cerveja foram derivados do mingau. Um mingau grosso podia ser cozido ao sol ou numa pedra quente para fazer um tipo de pão; um mingau fino podia ser deixado para fermentar e virar cerveja. Os dois eram lados diferentes da mesma moeda: o pão era cerveja sólida, e a cerveja, pão líquido.

SOB A INFLUÊNCIA DA CERVEJA?

Como a escrita não tinha ainda sido inventada na época, não há registros escritos para atestar a importância social e ritual da cerveja no Crescente Fértil durante a nova Idade da Pedra, ou período neolítico, entre 9000 e 4000 a.C. Porém, muita coisa pode ser inferida a partir de registros posteriores sobre a maneira como a cerveja era usada pelas primeiras civilizações capazes de ler e escrever, os sumérios da Mesopotâmia e os antigos egípcios. Na verdade, as tradições culturais associadas à cerveja são tão duradouras que algumas sobrevivem até os dias de hoje.

Desde seus primórdios, parece que a cerveja tinha uma função importante como bebida social. As descrições sumérias da cerveja no terceiro milênio a.C. geralmente mostram duas pessoas bebendo com o auxílio de canudos em um recipiente partilhado. No período sumério, porém, era possível filtrar os grãos, palhas e outros fragmentos da cerveja, e o advento da cerâmica significava que ela já podia facilmente estar sendo servida em copas individuais. Não obstante, o fato de os bebedores de cerveja serem tão amplamente retratados usando canudos sugere que este era um ritual que persistiu mesmo quando os canudos não eram mais necessários.

A explicação mais provável para essa preferência é que, ao contrário da comida, as bebidas podem ser partilhadas genuinamente. Quando várias pessoas bebem cerveja do mesmo recipiente, estão consumindo o mesmo líquido; ao contrário, quando cortam um pedaço de carne, algumas partes são normalmente consideradas mais desejáveis do que outras. Em conseqüência, partilhar uma bebida com alguém é um símbolo universal de hospitalidade e amizade. Sinaliza que se pode confiar na pessoa que oferece a bebida, pois ela demonstra que não está envenenada ou inadequada para o consumo. O primeiro tipo de cerveja, fermentado num recipiente primitivo numa época que antecedeu o uso de copas individuais, tinha de ser partilhado. Embora não seja mais comum oferecer a visitantes um canudo pelo qual se vá beber em um barril comunitário de cerveja, atualmente o chá ou o café podem ser oferecidos a partir de um pote partilhado, assim como um vinho ou outras bebidas alcoólicas a partir de uma mesma garrafa. Quando se toma alguma bebida alcoólica em uma ocasião social, o tinir dos copos simbolicamente os reúne num único recipiente de líquido a ser compartilhado. Essas tradições têm origens bem antigas.

É antiga também a noção de que as bebidas, particularmente as alcoólicas, têm propriedades sobrenaturais. Para os bebedores neolíticos, a capacidade da cerveja de embriagar e induzir a um estado de consciência alterada parecia algo mágico. O mesmo valia para o misterioso processo de fermentação, que transformava mingau em cerveja. A conclusão comum óbvia era a de que a cerveja era um presente dos deuses. Nessa linha, muitas culturas possuem mitos que explicam como os deuses inventaram a cerveja e então mostraram à humanidade como fazê-la. Os egípcios, por exemplo, acreditavam que ela fora acidentalmente descoberta por Osíris, o deus da agricultura e rei da vida após a morte. Um dia ele preparou uma mistura de água e grão germinado, mas esqueceu-se dela e deixou-a ao sol. Retornou mais tarde e descobriu que o mingau tinha fermentado; decidiu bebê-lo e ficou tão satisfeito com o resultado que passou o conhecimento para a humanidade. (Essa narrativa parece corresponder bem proximamente à forma como a cerveja foi provavelmente descoberta na Idade da Pedra.) Outras culturas consumidoras dessa bebida contam histórias semelhantes.

Como a cerveja era um presente dos deuses, era também lógico apresentá-la como uma oferenda religiosa. A cerveja certamente era usada em cerimônias religiosas, funerais e rituais de fertilidade na agricultura por sumérios e egípcios – portanto, parece provável que seu uso religioso remonte a períodos ainda mais anteriores. De fato, sua significância religiosa parece ser comum a todas as culturas que a consomem, seja nas Américas, na África ou na Eurásia. Os incas ofereciam sua cerveja, chamada chicha, ao sol nascente numa copa dourada e derramavam-na no solo ou cuspiam de volta seu primeiro gole, como uma oferenda para os deuses da Terra; os astecas ofereciam sua pulque a Mayahuel, a deusa da fertilidade. Na China, as cervejas feitas de milho miúdo e arroz eram usadas em funerais e outras cerimônias. A prática de levantar um copo para desejar a alguém boa saúde, um casamento feliz, uma viagem tranquila para a vida após a morte ou então celebrar a finalização bem-sucedida de um projeto é o eco moderno da antiga ideia de que o álcool tem o poder de invocar forças sobrenaturais.

CERVEJA E AGRICULTURA, AS SEMENTES DA MODERNIDADE

Alguns antropólogos chegaram a sugerir que a cerveja pode ter exercido um papel central na adoção da agricultura, um dos momentos decisivos na história da humanidade. A agricultura preparou o caminho para o surgimento da civilização, ao criar excedentes de alimentos, liberando alguns membros da sociedade da necessidade de produzir comida e permitindo a eles especializarem-se em atividades específicas e trabalhos manuais – e consequentemente colocando a humanidade no rumo do mundo moderno. Isso aconteceu primeiro no Crescente Fértil, começando em torno de 9000 a.C., quando as pessoas começaram a cultivar cevada e trigo intencionalmente, em vez de simplesmente coletarem grãos selvagens para consumo e estocagem.

Naturalmente, a troca da caça e coleta para a agricultura foi uma transição gradual ao longo de alguns milhares de anos à medida que as safras intencionalmente cultivadas passavam a representar um papel cada vez mais significativo na alimentação. Mesmo assim, dentro do grande esquema da história da humanidade, isso representa um piscar de olhos. Os seres humanos tinham sido caçadores-coletores desde que a raça humana passou a se diferenciar dos macacos há cerca de sete milhões de anos; e então eles repentinamente deram início à agricultura. O debate a respeito das razões que explicam a mudança para a agricultura e dos motivos pelos quais ela ocorreu naquele instante ainda é acalorado, e há dezenas de teorias distintas. Talvez a quantidade de comida disponível para os caçadores-coletadores no Crescente Fértil tenha diminuído, por exemplo, por causa de mudanças climáticas ou porque algumas espécies animais desapareceram aos poucos ou foram caçadas até a extinção.

Outra possibilidade é que um estilo de vida mais sedentário (mas ainda incluindo caça e coleta) tenha aumentado a fertilidade humana, permitindo que as populações crescessem e criassem uma demanda para novas fontes de alimentos. Ou, talvez, como a cerveja tinha sido descoberta – e seu consumo tinha se tornado importante do ponto de vista social e ritual –, tenha havido um maior desejo de assegurar a disponibilidade de grãos para a agricultura em vez de se depender de grãos selvagens. A agricultura era, segundo esta última visão, ao menos em parte adotada a fim de manter a oferta de cerveja.

Embora seja tentador atribuir a adoção da agricultura inteiramente à cerveja, parece mais provável que ela tenha sido apenas um entre muitos fatores que ajudaram a inclinar a balança para longe da caça e da coleta, indo na direção da agricultura e de uma vida sedentária baseada em pequenos assentamentos. Uma vez que essa transição começara, ocorria então um efeito catraca, sempre avançando: quanto mais se dependia da agricultura como o modo de produzir alimentos numa determinada comunidade, e quanto mais sua população crescia, tanto mais difícil retomar o velho estilo de vida nômade baseado na caça e na coleta.

O consumo de cerveja também teria contribuído à transição para a agricultura de uma maneira mais sutil. Como era difícil armazená-la por muito tempo e como a fermentação completa leva até uma semana, grande parte da cerveja pode ter sido bebida muito cedo, enquanto ainda estava fermentando. Nesse estágio, o teor de álcool é relativamente baixo para padrões modernos, mas a bebida teria sido rica em termos de levedura suspensa, o que aumentava significativamente a quantidade de proteínas e vitaminas. O nível elevado de vitamina B, especificamente, teria compensado o declínio no consumo de carne, a fonte regular daquela vitamina, à medida que a caça dava lugar à agricultura.

Mais ainda, como era feita com o uso de água quente, a cerveja era mais segura para beber do que a água, que se contamina rapidamente com os resíduos humanos, mesmo nos menores assentamentos. Embora o vínculo entre água contaminada e pouca saúde não tenha sido compreendido até os tempos modernos, os seres humanos rapidamente aprenderam a desconfiar das fontes pouco conhecidas de água e a beber sempre que possível de águas claras correntes, afastadas das aglomerações humanas. (Os caçadores-coletores não tinham de se preocupar com fontes contaminadas de água, já que viviam em bandos pequenos e móveis e deixavam seus resíduos para trás quando se mudavam.) Em outras palavras, a cerveja ajudava a compensar o declínio na qualidade da alimentação que resultou da adoção da agricultura, fornecendo uma forma segura de nutrição líquida, e oferecia aos grupos de fazendeiros que a bebiam uma vantagem nutricional comparativa sobre aqueles que não a consumiam.

A agricultura espalhou-se por todo o Crescente Fértil entre 7000 a.C. e 5000 a.C., à medida que um número crescente de plantas e animais (começando com carneiros e bodes) era domesticado e novas técnicas de irrigação tornavam a agricultura possível nas terras baixas quentes e secas da Mesopotâmia e do vale do Nilo, no Egito. Uma aldeia agrícola típica do período consistia em cabanas construídas com barro e esteiras de junco, e talvez algumas casas um pouco maiores feitas de tijolos de lama secos ao sol. Em locais próximos da aldeia, haveria campos onde cereais, tâmaras e outras safras eram cultivadas – e também com alguns carneiros e bois amarrados ou encurralados. Aves selvagens, peixes e animais de caça, quando disponíveis, suplementavam a alimentação dos habitantes da aldeia. Era um estilo de vida bem diferente daquele de caça e coleta que prevalecera nos milhares de anos anteriores. E a transição na direção de uma sociedade ainda mais complexa teve início. Os assentamentos desse período tinham, com freqüência, um depósito onde se guardavam itens valiosos, incluindo objetos sagrados e comida excedente. Esses depósitos eram definitivamente comunitários, já que eram bem maiores do que teria sido necessário para qualquer família.

Manter o excedente de comida no depósito era uma maneira de evitar uma futura escassez de alimentos; outra forma era a atividade ritual e religiosa em que os deuses eram convocados para garantir uma boa colheita. À medida que essas duas atividades entrelaçavam-se, as reservas de comida excedente passaram a ser encaradas como oferendas para os deuses, e os depósitos transformaram-se em templos. Para garantir que todos os habitantes da aldeia estavam dando uma contribuição proporcional, foram registradas contribuições para o depósito comum usando-se fichas pequenas de barro, encontradas em todo o Crescente Fértil desde até mesmo 8000 a.C. Essas contribuições eram justificadas como oferendas religiosas por padres administradores, que viviam do excedente de comida e dirigiam as atividades comunitárias – tais como a construção de edificações e a manutenção de sistemas de irrigação. Assim foram disseminadas as sementes da contabilidade, da escrita e da burocracia.

A ideia de que a cerveja contribuiu para o ímpeto dessa dramática mudança na natureza da atividade humana, após milhões de anos de caça e coleta, permanece controversa. Mas a melhor evidência para a importância da cerveja nas épocas pré-históricas é seu extraordinário significado para as pessoas das primeiras grandes civilizações. Pois, embora as origens dessa antiga bebida permaneçam inevitavelmente envoltas em mistérios e conjecturas, não há dúvida de que a vida diária dos egípcios e mesopotâmicos, jovens e velhos, ricos e pobres, era impregnada de cerveja.


A CERVEJA CIVILIZADA


A REVOLUÇÃO URBANA

As primeiras cidades do mundo surgiram na Mesopotâmia, “a terra entre os rios”, nome dado a uma área entre os rios Tigre e Eufrates que corresponde basicamente ao Iraque moderno. A maioria dos seus habitantes era formada por fazendeiros que viviam entre os muros da cidade e saíam a cada manhã para tomar conta de seus campos. Administradores e artesãos que não trabalhavam nos campos foram os primeiros seres humanos a levar vidas inteiramente urbanas. Veículos com rodas circulavam pelas ruas, e as pessoas compravam e vendiam mercadorias em mercados movimentados. Cerimônias religiosas e feriados públicos ocorriam num ciclo regular que trazia conforto. Até mesmo os provérbios da época têm uma atitude familiar em relação ao mundo, como mostra este exemplo: “Aquele que possui muita prata pode ser feliz; o que possui muita cevada pode ser feliz; mas o que não tem realmente nada pode dormir.”

A razão exata por que as pessoas escolheram viver em cidades grandes em vez de em pequenas aldeias permanece obscura. Foi provavelmente o resultado de vários fatores sobrepostos: as pessoas podem ter desejado ficar perto de centros religiosos ou comerciais importantes, por exemplo, e, no caso da Mesopotâmia, a segurança pode ter sido uma motivação significativa. A falta de fronteiras naturais – a Mesopotâmia é essencialmente uma grande planície aberta – significava que a área estava sujeita a invasões e ataques repetidos. A partir de cerca de 4300 a.C., as aldeias começaram a se reunir, formando vilas cada vez maiores e culminando em cidades, cada uma delas localizada no centro do seu próprio sistema de campos e canais de irrigação. Por volta de 3000 a.C., a cidade de Uruk, a maior naquela época, tinha uma população de cerca de 50 mil pessoas e era rodeada por um círculo de campos com raios da ordem de 16 quilômetros. Em torno de 2000 a.C., quase toda a população no sul da Mesopotâmia estava vivendo em aproximadamente uma dezena de cidades-Estados maiores, incluindo Uruk, Ur, Lagash, Eridu e Nippur. A partir daí, o Egito tomou a liderança, e suas cidades, tais como Mênfis e Tebas, cresceram para se tornar as maiores do mundo antigo.

Esses dois exemplos iniciais de civilização – palavra que significa apenas “vivendo nas cidades” – eram diferentes em muitos aspectos. A unificação política permitiu à cultura egípcia permanecer praticamente sem modificações por quase 3.000 anos, por exemplo, ao passo que a Mesopotâmia era cenário de revoltas constantes, políticas e militares. Mas em uma questão vital os casos eram semelhantes: ambas as culturas tornaram-se possíveis por causa de um excedente agrícola, particularmente um excesso de grãos. Esse excedente não só liberou uma pequena elite de administradores e artesãos da necessidade de produzir a sua própria comida, mas também financiou vastas obras públicas, como canais, templos e pirâmides. Assim como eram meios de troca naturais, os grãos eram também a base da alimentação nacional tanto no Egito como na Mesopotâmia. Era uma espécie de dinheiro comestível e consumido tanto em forma líquida como sólida – pão e cerveja.

A BEBIDA DO HOMEM CIVILIZADO

A história registrada da cerveja, e na verdade de tudo o mais, começa na Suméria, uma região no sul da Mesopotâmia na qual a escrita começou a se desenvolver pioneiramente por volta de 3400 a.C. O fato de que beber cerveja era visto como uma marca de civilização pelos mesopotâmicos é especialmente aparente numa passagem da Epopeia de Gilgamesh, o primeiro grande trabalho literário do mundo. Gilgamesh era um rei sumério que governou por volta de 2700 a.C., e cuja história de vida foi subsequentemente aprimorada num mito elaborado pelos sumérios e seus sucessores regionais, os acádios e babilônios. A história narra as aventuras de Gilgamesh com seu amigo Enkidu, que começa como um homem selvagem correndo nu no território descampado e que é introduzido por uma jovem mulher aos modos da civilização. Ela leva Enkidu a uma aldeia de pastores, o primeiro degrau da escada no que diz respeito à alta cultura da cidade, na qual:

"Colocaram comida na sua frente,
Colocaram cerveja na sua frente;
Enkidu não sabia comer pão,
e não lhe haviam ensinado a beber cerveja.
A jovem mulher disse a Enkidu:
“Coma os alimentos, Enkidu, pois é como se vive.
Beba a cerveja, pois é o costume da terra.”
Enkidu comeu até ficar saciado,
Bebeu a cerveja – sete copas! – e ficou expansivo
E cantou com alegria.
Estava exultante e seu rosto brilhava.
Ele jogou água no seu corpo desordenadamente,
E esfregou a si mesmo com óleo,
E tornou-se um ser humano."

A natureza primitiva de Enkidu é demonstrada pela falta de familiaridade com o pão e a cerveja; mas logo que ele acaba de consumi-los e de se lavar, também torna-se um ser humano, pronto para ir a Uruk, a cidade governada por Gilgamesh. Os mesopotâmicos encaravam o consumo de pão e cerveja como uma das coisas que os distinguia dos selvagens e os tornava plenamente humanos. Bastante interessante, essa crença parece refletir a associação da cerveja com um estilo de vida estabelecido e ordenado, em vez de uma existência aleatória de caçadores-coletores nos tempos pré-históricos.

A possibilidade de embriaguez não parece ter contribuído em nada para abalar a relação entre beber cerveja e civilização. A maior parte das referências à bebida em excesso na literatura da Mesopotâmia é divertida e bem-humorada: a iniciação de Enkidu como ser humano, na verdade, inclui ficar bêbado e cantar. De modo semelhante, os mitos sumérios descrevem os deuses como personagens bem humanos e falíveis, que gostam de comer e beber, e com freqüência bebem demais. Seu comportamento volúvel era atribuído à natureza precária e imprevisível da vida suméria, na qual as colheitas podiam falhar e exércitos de saqueadores podiam aparecer no horizonte a qualquer momento. As cerimônias religiosas sumérias incluíam colocar uma refeição à mesa no templo diante de uma imagem divina, seguida de um banquete no qual o consumo de comidas e bebidas pelos sacerdotes e fiéis invocava a presença dos deuses e os espíritos dos mortos.

A cerveja também era importante na antiga cultura egípcia, na qual há referências a ela que remontam a um passado quase tão distante quanto o sumério. É mencionada em documentos da terceira dinastia, que começou em 2650 a.C., e muitas de suas variedades são citadas nos “Textos da Pirâmide”, inscrições funerárias feitas nas pirâmides a partir do final da quinta dinastia, em torno de 2350 a.C. (Os egípcios desenvolveram sua própria forma de escrever pouco depois dos sumérios, com o propósito de registrar tanto eventos mundanos como façanhas reais, mas permanece obscuro se esse foi um desenvolvimento independente ou inspirado pela escrita suméria.) Uma análise da literatura egípcia descobriu que a cerveja, cuja palavra correspondente era hekt, era mencionada mais vezes do que qualquer outro item alimentar. Como na Mesopotâmia, pensava-se que a cerveja tinha origens antigas e mitológicas, e ela também aparece em orações, mitos e lendas.

Uma narrativa egípcia chega mesmo a dar crédito à cerveja como tendo salvado a humanidade da destruição. Rá, o deus-Sol, soube que os homens estavam tramando contra ele e despachou a deusa Hathor para puni-los. Mas a crueldade da deusa era tanta que Rá temeu que não sobrasse ninguém para venerá-lo e ficou com pena da humanidade. Rá preparou uma vasta quantidade de cerveja – sete mil jarros, segundo algumas versões da história –, aplicou tintura vermelha no líquido para que parecesse sangue e espalhou-o pelos campos, onde brilhou como um grande espelho. Hathor parou para admirar o reflexo de sua imagem e inclinou-se para beber um pouco da mistura. Ficou embriagada, caiu no sono e esqueceu-se de sua missão sangrenta. A humanidade foi salva, e Hathor tornou-se deusa da cerveja e da fermentação. Versões dessa história têm sido encontradas em inscrições nos túmulos de reis egípcios, incluindo Tutancâmon, Seti I e Ramsés o Grande.

Em oposição à atitude relaxada dos mesopotâmicos no que diz respeito à embriaguez, porém, uma forte desaprovação estava expressa nos textos copiados como exercício pelos escribas aprendizes no Egito, encontrados em grandes quantidades em montes de lixo. Uma passagem adverte os jovens escribas: “A cerveja assusta os homens e conduz suas almas à perdição. Tu ficas como um leme quebrado de navio, que não obedece para nenhum dos lados.” Outro exemplo, retirado de uma coleção de conselhos chamada “A sabedoria de Ani, o escriba”, oferece um alerta semelhante: “Não leva ninguém para beber um caneco de cerveja. Tu falarás e sairá de tua boca um discurso incompreensível.” Esses textos de treinamento dos escribas, porém, não são representativos dos valores egípcios em geral. Eles desaprovam quase tudo exceto o próprio estudo sem fim para prosseguir na carreira de escriba. Outros textos têm títulos como “Não seja soldado, padre ou padeiro”, “Não seja lavrador” e “Não seja cocheiro de carruagem”.

Tanto os mesopotâmicos como os egípcios encaravam a cerveja como uma bebida antiga e divina que dava base à sua existência, formava parte de sua identidade cultural e religiosa, e tinha grande importância social. “Fazer uma festa da cerveja” e “sentar na festa da cerveja” eram expressões populares egípcias que significavam “aproveitar um bom momento” ou “festejar”, ao passo que a expressão suméria “derramamento de cerveja” referia-se a uma festa ou banquete de celebração; e as visitas formais do rei às casas de altos funcionários eram registradas como “quando o rei bebeu cerveja na casa de fulano de tal”. Em ambas as culturas, a cerveja era o ingrediente básico sem o qual nenhuma refeição parecia completa. Consumida por todos, ricos e pobres, homens e mulheres, adultos e crianças, desde o topo da pirâmide social até a base, era verdadeiramente a bebida definitiva dessas primeiras grandes civilizações.

AS ORIGENS DA ESCRITA

Os primeiros documentos escritos são listas salariais e recibos de impostos sumérios nos quais o símbolo para a cerveja, um recipiente de barro com marcas lineares diagonais desenhadas dentro dele, é uma das palavras mais comuns, bem como os símbolos para grãos, têxteis e animais vivos. Isso se explica porque a escrita foi originalmente inventada para registrar a coleta e a distribuição de grãos, cerveja, pão e outras mercadorias. Surgiu como uma extensão natural do costume neolítico de usar fichas a fim de contabilizar as contribuições para o armazém comunitário. Na verdade, a sociedade suméria era uma continuação lógica das estruturas sociais neolíticas, embora numa escala bem maior – o apogeu de milhares de anos de complexidade econômica e cultural crescente. Assim como o líder de uma aldeia neolítica coletava o excedente alimentar, os sacerdotes das cidades sumérias coletavam os excessos de cevada, trigo, carneiros e tecidos. Oficialmente, essas mercadorias eram oferendas para os deuses, mas na prática eram impostos compulsórios consumidos pela burocracia dos templos ou trocados por outros bens e serviços. Os sacerdotes podiam, por exemplo, pagar pela manutenção dos sistemas de irrigação e pela construção de edificações públicas entregando provisões de pão e cerveja.

Esse sistema elaborado dava ao templo controle direto sobre uma boa parte da economia. É difícil dizer se isso resultou num nirvana redistributivo – uma forma de socialismo antigo na qual o Estado era o provedor de todos – ou num regime explorador de quase-escravidão. Mas parece ter surgido em resposta à natureza imprevisível do ambiente da Mesopotâmia. Chovia pouco, e o fluxo do Tigre e do Eufrates era errático. Assim, a agricultura dependia do uso de sistemas comunitários de irrigação cuidadosamente mantidos – e também, acreditavam os sumérios, de oferendas apropriadas feitas aos deuses locais. Ambas as tarefas eram realizadas pelo grupo de sacerdotes, e, à medida que as aldeias cresciam para se transformar em vilas e depois em cidades, cada vez mais o poder ficava concentrado em suas mãos. Os armazéns simples do período neolítico tornaram-se templos elaborados – ou zigurates – construídos em plataformas elevadas. Numerosas cidades-Estados surgiram, cada uma com o seu deus residente e cada uma governada por sacerdotes de elite que mantinham a economia agrícola e viviam do excedente que esta produzia. Obras entalhadas descrevem essas pessoas de barbas, usando longas saias e toucas redondas, e bebendo cerveja em grandes potes, com o auxílio de longos canudos.

Para tudo isso funcionar, os sacerdotes e seus súditos tinham de ser capazes de registrar o que tinham trazido e recebido. Recibos de impostos foram inicialmente mantidos na forma de fichas dentro de “envelopes” de barro – conchas ocas de barro, chamadas bullae, com várias fichas chacoalhando lá dentro. Fichas de formatos diferentes eram usadas para representar quantidades padronizadas de grãos, tecidos ou cabeças de gado. Quando as mercadorias eram apresentadas no templo, as fichas correspondentes eram colocadas num envelope de barro, e tanto o coletor como o pagador dos impostos colocavam os selos de suas assinaturas pessoais, como uma impressão, no barro molhado do envelope, o que significava que seu conteúdo correspondia adequadamente ao imposto pago. O envelope era então guardado no arquivo do templo.

Logo tornou-se evidente, porém, que uma maneira mais fácil de se atingir o mesmo resultado era usar uma tabuleta de barro molhado e pressionar as fichas em sua superfície para fazer impressões com formatos diferentes significando cevada, gado e assim por diante. Os selos de assinaturas podiam então ser aplicados a essa tabuleta, a qual era cozida ao sol para tornar as impressões permanentes. As fichas não eram mais necessárias; em vez delas, as impressões seriam suficientes. Gradualmente, elas foram sendo abandonadas em favor de pictogramas rascunhados no barro, derivados dos formatos das fichas ou dos objetos que elas representavam. Assim, alguns pictogramas vieram a aparecer como representações diretas de mercadorias físicas, ao passo que outras combinações de reentrâncias funcionaram para conceitos abstratos, como os números.

Os documentos escritos mais antigos, que datam de cerca de 3400 a.C., da cidade de Uruk, são tabuletas pequenas e lisas de barro que cabem confortavelmente na palma da mão. São comumente divididas em colunas e subdivididas em retângulos por linhas retas. Cada compartimento contém um grupo de símbolos, alguns obtidos pela pressão das fichas no barro e outros rabiscados usando-se um estilete. Embora esses símbolos sejam lidos da esquerda para a direita e de cima para baixo, em todos os outros aspectos esse texto inicial é absolutamente diferente da escrita moderna e só pode ser lido por especialistas. Mas quando se olha com mais atenção, o pictograma para a cerveja – um jarro com marcas lineares diagonais – é fácil de ser identificado. Aparece em listas de pagamentos, em documentos administrativos e em listas de palavras escritas pelos escribas em treinamento, o que inclui dezenas de termos acerca do processo de preparo da cerveja. Muitas tabuletas consistem em listas de nomes, sendo que a indicação “cerveja e pão para um dia” está próxima a cada um deles – um padrão de pagamento emitido pelo templo.

Uma análise moderna dos textos da Mesopotâmia sobre os lotes racionados de comida descobriu que a distribuição padronizada de pão, cerveja, tâmaras e cebolas, por vezes suplementada com carne ou peixe e com verduras e legumes adicionais – tais como grãos-de-bico, lentilhas, nabos e feijões – correspondia a uma alimentação nutritiva e balanceada. As tâmaras forneciam vitamina A, a cerveja supria vitamina B, as cebolas ofereciam vitamina C, e o lote como um todo fornecia 3.500 a 4.000 calorias, de acordo com as recomendações modernas para o consumo de um adulto. Isso sugere que os lotes do Estado não eram apenas doações ocasionais, mas sim a fonte primária de alimentação para muitas pessoas.

Tendo começado como um meio de registrar recibos de impostos e pagamentos de lotes de comida, a escrita logo evoluiu para um meio mais flexível, expressivo e abstrato. Por volta de 3000 a.C., alguns símbolos surgiram para representar sons específicos. Ao mesmo tempo, pictogramas feitos de impressões profundas com formato de cunha tomaram o lugar daqueles compostos por rabiscos superficiais. Isso tornou a escrita mais rápida, porém reduziu a qualidade pictográfica dos símbolos, de tal modo que a escrita começou a parecer mais abstrata. O resultado final foi uma primeira forma de escrever com propósitos gerais, baseada em reentrâncias no formato de cunha – ou “cuneiformes” – feitas em tabuletas de barro usando-se juncos. É o ancestral dos alfabetos ocidentais modernos, que foram seus descendentes por intermédio dos alfabetos ugaríticos e fenícios desenvolvidos durante o segundo milênio a.C.

Quando comparado aos pictogramas iniciais, o símbolo na escrita cuneiforme para a cerveja quase não é reconhecível como um formato de jarro. Mas pode ser visto, por exemplo, em tabuletas que narram a história de Enki, o esperto e astuto deus da agricultura, no momento em que ele prepara uma festa para seu pai, Enlil. Deve-se admitir que a descrição do processo de preparo da cerveja é algo obscuro. Mas os passos são reconhecíveis, o que significa que a mais antiga receita escrita do mundo é para a cerveja.

RIQUEZA LÍQUIDA E SAÚDE

No Egito, como na Mesopotâmia, os impostos na forma de grãos e outras mercadorias eram entregues ao templo e depois redistribuídos com o propósito de financiar obras públicas. Isso significa que em ambas as civilizações a cevada e o trigo, e suas formas processadas sólida e líquida – pão e cerveja – tornaram-se mais do que apenas itens alimentícios básicos: eram meios convenientes e freqüentes de pagamento e moeda.

Na Mesopotâmia, registros em escrita cuneiforme indicam que os membros de posição inferior na força de trabalho do templo sumério recebiam um sila de cerveja por dia – aproximadamente equivalente a um litro – como parte de sua ração. Funcionários iniciantes recebiam dois sila; funcionários mais elevados e senhoras da corte, três sila; e os funcionários principais, cinco sila. Grandes quantidades de tigelas de tamanho idêntico, com molduras chanfradas, encontradas em sítios sumérios, parecem ter sido usadas como unidades padronizadas de medida. Os funcionários importantes recebiam mais cerveja não porque bebessem mais: tendo bebido sua quantidade regular, ficavam com sobras para gratificar mensageiros e escribas e pagar outros trabalhadores. Os líquidos, facilmente divisíveis, representavam formas ideais de dinheiro.

Documentos posteriores, do reino de Sargão – um de uma série de reis da região vizinha de Acad que uniram e governaram as cidades-Estados rivais da Suméria a partir de 2350 a.C. –, referem-se à cerveja como parte do “preço da noiva” (um pagamento feito pela família do noivo para a da noiva por ocasião do casamento). Outros registros indicam que a cerveja era dada em pagamento a mulheres e crianças, por alguns dias de trabalho no templo: as mulheres recebiam dois sila, e as crianças, um sila. De modo semelhante, documentos revelam que mulheres e crianças refugiadas, que podem ter sido escravos ou prisioneiros de guerra, recebiam rações mensais de cerveja de 20 sila para as mulheres e de 10 sila para as crianças.

Soldados, policiais e escribas também recebiam pagamentos especiais em cerveja em ocasiões específicas, e mensageiros a recebiam como gratificações. Um documento de 2035 a.C. é uma lista de provisões pagas a mensageiros oficiais na cidade de Umma. Vários montantes de cerveja “excelente”, cerveja “comum”, alho, óleo de cozinha e temperos foram entregues a mensageiros cujos nomes incluíam: Shu-Dumuzi, Nur-Ishtar, Esur-ili, Ur-Ningirsu e Bazimu. Naquele momento, o Estado sumério empregava 300 mil pessoas, sendo que todas recebiam lotes racionados mensais de cevada e lotes anuais de lã, ou o montante equivalente de outras mercadorias: pão ou cerveja em vez de cevada, e panos ou roupas em vez de lã. E cada transação era anotada metodicamente nas indestrutíveis tabuletas de escrita cuneiforme pelos contadores da Mesopotâmia.

O que é sem dúvida alguma o exemplo mais espetacular do uso da cerveja como forma de pagamento pode ser visto no planalto de Gizé, no Egito. Os trabalhadores que construíram as pirâmides eram pagos assim, de acordo com registros encontrados numa vila próxima aos locais onde os operários comiam e dormiam. Os registros indicam que, no momento da construção das pirâmides, em torno de 2500 a.C., o lote padronizado para um trabalhador era de três ou quatro bolos de pão e duas canecas contendo cerca de quatro litros de cerveja. Gerentes e funcionários recebiam maiores quantidades das duas coisas. Não é de espantar que, segundo alguns antigos desenhos grafitados, uma equipe de trabalhadores da terceira pirâmide de Gizé, construída para o rei Miquerinos, tenha intitulado a si mesma como “os beberrões de Miquerinos”. Registros escritos de pagamentos para os trabalhadores na construção mostram que as pirâmides foram construídas por empregados do Estado, em vez de um exército de escravos, como já se pensou.

Uma teoria é a de que as pirâmides tenham sido erguidas por fazendeiros durante a estação das cheias, quando seus campos ficavam debaixo d’água. O Estado coletava grãos como impostos e então os redistribuía como pagamentos; o trabalho de construção infundia um sentido de unidade nacional, demonstrava a riqueza e o poder do Estado e dava uma justificativa para a taxação.

O uso do pão e da cerveja como meios de pagamento ou moeda significava que tinham se tornado sinônimo de prosperidade e bem-estar. Os antigos egípcios identificavam-nos tão proximamente com as necessidades da vida que a expressão “pão e cerveja” queria dizer sustento em geral; os seus hieróglifos combinados formavam o símbolo para alimentação. “Pão e cerveja” era também usado como um cumprimento diário, como desejando a alguém boa sorte ou boa saúde. Uma inscrição egípcia encoraja as mulheres a fornecerem a seus filhos em idade escolar duas jarras de cerveja e três pequenos pedaços de pão diariamente, a fim de assegurar seu desenvolvimento saudável. Analogamente, a expressão “pão e cerveja” era usada pelos mesopotâmicos em lugar de “comida e bebida”, e uma palavra suméria para banquete significa literalmente “o lugar da cerveja e do pão”.

A cerveja também tinha um vínculo mais direto com a saúde, pois tanto mesopotâmicos como egípcios usavam-na medicinalmente. Uma tabuleta de escrita cuneiforme da cidade suméria de Nippur, datada de cerca de 2100 a.C., contém uma farmacopeia ou lista de receitas médicas baseadas na cerveja.

É o registro mais antigo que ainda sobrevive do emprego do álcool na medicina. No Egito, o uso da cerveja como sedativo moderado foi reconhecido, e foi também a base para várias preparações medicinais de ervas e especiarias. Naturalmente, a cerveja era menos sujeita a ser contaminada do que a água, por ser feita com água fervida, e havia também a vantagem de que alguns ingredientes se dissolviam nela mais facilmente. O “Papiro de Ebers”, um texto médico egípcio datado de cerca de 1550 a.C., mas evidentemente baseado em documentos bem mais antigos, contém centenas de receitas para remédios à base de ervas, muitas das quais envolvem a cerveja. Por exemplo: dizia-se que metade de uma cebola misturada com cerveja espumada curava prisão de ventre, enquanto azeitonas salpicadas misturadas com cerveja curavam indigestão; uma mistura de açafrão e cerveja massageada na barriga de uma mulher era a prescrição para dores do parto.

Os egípcios também acreditavam que seu bem-estar na vida após a morte dependia de ter uma oferta adequada de cerveja e pão. A oferenda funerária padronizada consistia em pão, cerveja, bois, gansos, tecido e natrão, um agente purificador. Em alguns textos funerários egípcios, promete-se ao falecido uma “cerveja que não venha a azedar” – assinalando tanto o desejo de se continuar bebendo cerveja eternamente quanto a dificuldade de armazená-la. Cenas e modelos de preparo de cerveja e de pão têm sido encontrados em túmulos egípcios junto com jarros da bebida (há muito evaporada) e com equipamento para prepará-la. Peneiras especiais para se fazer cerveja foram encontradas no túmulo de Tutancâmon, que morreu em torno de 1335 a.C. Cidadãos comuns colocados em sepulturas simples e rasas também eram enterrados com pequenas jarras da bebida.

UMA BEBIDA DA AURORA DA CIVILIZAÇÃO

A cerveja frequentava as vidas dos egípcios e mesopotâmicos desde o berço até a sepultura. O entusiasmo pela bebida era quase inevitável, uma vez que o surgimento das sociedades complexas, a necessidade de manter registros escritos e a popularidade da cerveja, tudo resultou do excedente de grãos. Como o Crescente Fértil tinha as melhores condições climáticas para o cultivo de grãos, foi lá que a agricultura começou, as primeiras civilizações despontaram, a escrita surgiu, e era lá que a cerveja era mais abundante.

Embora nem a cerveja mesopotâmica nem a egípcia contivessem o lúpulo, que só se tornou um ingrediente padronizado nos tempos medievais, tanto a bebida quanto alguns dos hábitos a ela relacionados seriam ainda reconhecíveis hoje em dia para os apreciadores de cerveja, milhares de anos mais tarde. Embora ela não seja mais usada como forma de pagamento e as pessoas não mais se cumprimentem umas às outras com a expressão “pão e cerveja”, na maior parte do mundo a cerveja é considerada a bebida básica do homem trabalhador. Brindar à saúde de alguém antes de tomar cerveja é um vestígio da crença antiga em suas propriedades mágicas. E sua forte associação com uma interação social amigável e despretensiosa permanece imutável: é uma bebida feita para ser compartilhada. Seja em aldeias da Idade da Pedra, salas de banquete da Mesopotâmia ou bares e restaurantes modernos, a cerveja vem congregando e reunindo as pessoas desde a aurora da civilização.

Texto de Tom Standage (trad. Antonio Braga) em "História do Mundo em Seis Copos", Zahar, Rio de Janeiro, 2011, excertos pp.9-31. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado  por Leopoldo Costa.

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