6.10.2017

GETÚLIO - APÓS SUSPIRAR POR UMA DAMA DE VERMELHO CAI DE AMORES PELA MILITÂNCIA ESTUDANTIL.

Getúlio Vargas na sua formatura em 1907
De um dos camarotes do tradicional Theatro São Pedro, em Porto Alegre, a figura atarracada de Getúlio se ergueu da cadeira. Embora não exibisse nenhum papel nas mãos, ele era o próximo orador oficial daquela noite. Iria falar de improviso, representando os estudantes da Faculdade de Direito. O interior do teatro, repleto de convidados especiais, estava adornado, de cima a baixo, com longas faixas de tecido preto. O palco fora transformado em salão fúnebre. Viam-se muitas coroas de flores e, ao lado delas, no alto de um estrado de madeira coberto de feltro escuro, uma menininha vestida de túnica branca, barrete vermelho à cabeça, simbolizava a República. Os bustos de Floriano Peixoto, Benjamin Constant, Deodoro da Fonseca e Tiradentes escoltavam o retrato de Júlio de Castilhos, chefe histórico do Partido Republicano do Rio Grande do Sul, o PRR

“No centro da sala, um grande foco de luz elétrica espargia sobre o aspecto triste do recinto sua poderosa luz branca, a contrastar com o luto que se via por toda a parte”, descreveria o jornal A Federação, que naquela semana circulou com uma tarja negra no alto das páginas.1

Oito dias antes, Júlio de Castilhos, fumante inveterado, morrera vítima de um câncer na garganta, doença diagnosticada à época como “faringite granulosa”.2 Castilhos, rouco nas últimas aparições públicas, sofrera durante meses com constantes acessos de tosse e incontroláveis crises de asfixia. Chegara a ser submetido a uma traqueostomia no fim da tarde de 24 de outubro de 1903, quando o ato de respirar já se tornara algo difícil para ele, mesmo com o auxílio de balões de oxigênio. Antes de ministrar-lhe a anestesia — um lenço embebido em clorofórmio aplicado no nariz —, o médico procurou reconfortá-lo. Com a lâmina do bisturi prestes a perfurar as cartilagens da garganta do paciente, o dr. Carlos Wallau, exímio cirurgião, professor da Faculdade de Medicina de Porto Alegre, pediu-lhe que tivesse coragem.

“Não preciso de coragem; é de ar que eu preciso”, teria protestado Castilhos.3

Nem mesmo a decantada perícia de Wallau pôde salvar o chefe do PRR. O condutor dos pica-paus históricos, principal algoz dos maragatos, não resistiu à intervenção. Morreu aos 43 anos, na mesa de cirurgia improvisada em seu gabinete de estudos, próximo à janela que dava para o jardim.4 Após uma semana de luto oficial, Getúlio, cabelos penteados para trás, o bigode com as pontas retorcidas para cima como o de um galã de cinema mudo, se preparava para pronunciar, no Theatro São Pedro, o primeiro grande discurso de sua vida.

Todas as autoridades estaduais — civis e militares — estavam representadas nos balcões e camarotes do Theatro São Pedro. Imediatamente antes de Getúlio falara o capitão maranhense Augusto Tasso Fragoso, que se encontrava no Rio Grande do Sul integrando o grupo encarregado de elaborar a Carta Geral da República — um grande projeto de levantamento geográfico do país, em substituição à antiga Carta Geral do Império.5 Por coincidência histórica, coube a Fragoso — que 27 anos depois comandaria a junta governativa provisória que chegaria ao poder com a Revolução de 1930 —, passar a palavra ao jovem Getúlio Vargas, o mesmo a quem um dia passaria a presidência da República.

Getúlio não possuía a voz tonitruante dos oradores tradicionais, o que poderia ser encarado como grave demérito numa época em que a retórica representava um instrumento de notoriedade social. Mas a seu favor tinha a impecável acústica do Theatro São Pedro, capaz de tornar audível ao assistente da última fileira o simples sussurro de um ator em ação no palco. Além disso, era dono de uma dicção clara e de pausas bem calculadas, então combinadas ao arroubo próprio à juventude:

“Eu não venho salientar os feitos deste grande homem nem os dotes morais, porque estes são bem conhecidos de todos”, avisou.“Venho somente lamentar convosco a queda do roble gigantesco que tinha raízes no coração da República”, disse Getúlio. “Quando o terror invade um povo, transforma muitas vezes um fraco num forte, um pusilânime num herói e os espíritos que são fortes por natureza transformam-se em rochedos vivos”, prosseguiu, burilando metáforas grandiloquentes para retratar o homenageado. “Espírito de águia, pulso de atleta, convicção de mártir”, enumerou Getúlio.

“Sigamos o exemplo desse homem que no passado foi um lutador, no presente um organizador e no futuro será um símbolo de glória”, falou, enquanto do camarote presidencial ouvia-lhe o então presidente do estado,Borges de Medeiros, 39 anos, sucessor de Júlio de Castilhos à frente do poder político no Rio Grande do Sul.6

Com a morte de Castilhos, Borges de Medeiros acumulava o cargo de presidente estadual com o de chefe do PRR. Não era segredo para ninguém que fora eleito às custas da enorme influência do antecessor. Desde que saíra dos bastidores da administração pública para se sentar na cadeira de presidente do estado, comportara-se como uma espécie de secretário de luxo do antigo líder republicano.7 Incapaz de grandes arrebatamentos de oratória, não tinha o carisma de Castilhos. Mantinha no rosto, além da vasta e desgrenhada bigodeira, o par de olhos de um azul embaçado. “Olhos mortiços de peixe recém pescado”, descreveria um contemporâneo.8

Político de gabinete, figura discreta e adepto de irrepreensível disciplina partidária, Borges de Medeiros fora pinçado por Castilhos do cargo de chefe de polícia para concorrer às eleições estaduais. A oposição se recusara a apresentar candidato, sob a alegação de que as costumeiras fraudes e as intimidações de praxe já anteviam o resultado das cédulas eleitorais.9 Para o credo político do quase sacerdotal Júlio de Castilhos e de seu ungido Borges de Medeiros, tanto fazia.

As urnas eram mesmo um mero acessório, um rito enfadonho, mas oportuno, para manter os laivos de legitimidade e o calor da arregimentação partidária. O governo, sustentava-se, deveria continuar a ser exercido apenas pelos “mais capazes”, por alguém intelectualmente superior e moralmente respeitado, o “sumo sacerdote do partido e da sociedade”, o “intérprete da vontade coletiva” — embora a coletividade não fosse considerada apta a escolher sozinha os seus próprios destinos e governantes.10

“Toda escolha dos superiores pelos inferiores é profundamente anárquica”, escrevera, a propósito de eleições, o positivista Auguste Comte.11

Eleito em 1897 em um pleito sem adversários, reeleito em 1902 outra vez sem oponentes nas urnas, Borges de Medeiros governava amparado pela “bíblia castilhista”, a Constituição riograndense de 1891: sustentava a crença no Executivo forte e conservava um Legislativo de fachada. Respaldado pelo discurso da eficácia combinado à prática da coerção política, manteve a ênfase na modernização do estado, martelou o dogma da moralidade administrativa e pregou a tese da incorporação de direitos civis aos trabalhadores.

Estes últimos pontos explicavam o apoio das nascentes classes médias urbanas ao regime castilhista-borgista, a despeito da radical rejeição ao princípio da representação parlamentar.12 O austero Borges de Medeiros, que não permitiria ao estado investir dinheiro público na compra sequer de um carro oficial para servir ao palácio, tinha a missão de dar continuidade a um “castilhismo sem Castilhos”. O moço Getúlio, a propósito, fez questão de observar isso em seu discurso:

“A morte arrebatou-o. Porém, a sua memória pertence à posteridade. Júlio de Castilhos só desapareceu objetivamente”, ressaltou Getúlio, que aproveitaria a ocasião para endossar o culto à personalidade do morto. Pleiteou a “canonização cívica” daquele que passara a ser considerado o “Patriarca” dos rio-grandenses.

“Júlio de Castilhos para o Rio Grande é um santo. É santo porque é puro, é puro porque é sagrado, é grande porque é sábio”, discorreu Getúlio, em uma prédica característica ao positivismo. “Ele foi o homem puro da República, o Evangelizador de um povo, e o seu berço a Jerusalém dos eleitos.”

Até aquela noite, Getúlio jamais falara para plateia tão seleta e ampla quanto aquela, formada por jornalistas, políticos, magistrados, estudantes, chefes de repartições públicas, líderes de associações de classe e militares de alto coturno. Quando aluno da Escola Brasileira do professor Montanha, os colegas do grêmio estudantil até o ouviram proferir breve alocução, também de improviso, sobre o presumido significado da data de Sete de Setembro para a história nacional.13

Mas nada que pudesse ser comparado, nem de longe, àquela homilia fúnebre a Júlio de Castilhos, proferida do alto de um dos camarotes do Theatro São Pedro. A escolha de seu nome como representante dos acadêmicos de Direito — embora ainda fosse aluno ouvinte — revelava que o carisma de que já era possuidor conquistara, de imediato, a deferência dos novos colegas.

Aliás, nas colunas de A Federação, havia uma hierarquia de adjetivos que determinava a posição e o conceito que cada um dos membros do PRR desfrutava junto à cúpula partidária. Havia os que eram simplesmente tratados como o “nosso amigo Fulano de Tal”, e os que eram, em nível de importância crescente, chamados de o “prestimoso amigo”, o “prezado amigo”, o “ilustre amigo” ou o “eminente amigo”. “Chefe”, só havia um: o “eterno” Júlio de Castilhos. O senador Pinheiro Machado era mencionado como ‘‘preclaro amigo” ou “ínclito repúblico”. Já Borges de Medeiros era citado como “eminente republicano” ou “insigne presidente”.14 Getúlio, a partir daquele dia, estava apto a ser considerado um “futuroso amigo” — o adjetivo reservado aos que começavam a despontar, com destaque, nas falanges castilhistas.15

A propósito, nas últimas frases do discurso em memória de Castilhos, Getúlio ofereceria aos futuros apologistas a hipótese de uma visão premonitória que, porventura, teria a respeito de si:

“Senhores! Resta-me uma satisfação: é que ele [Castilhos] não semeou em terra sáfara e os belos ensinamentos que nos deixou serão continuados por aqueles que o seguiram e compreenderam”, sentenciou.

Menos do que uma profecia, mais do que palavras gratuitas, a preleção do estudante Getúlio Dornelles Vargas em memória de Júlio de Castilhos representava, na verdade, um inegável e sincero certificado de filiação política.

Naqueles primeiros anos de faculdade, uma enigmática dama escarlate roubou as atenções de Getúlio. Foi inspirado nela — na “visão momentânea de uma estranha e deslumbrante beleza feminina”, conforme descreveu —, que ele, já como aluno regularmente matriculado, publicou no segundo número da Revista Acadêmica, órgão da Federação dos Estudantes do Rio Grande do Sul, um breve ensaio sobre as representações da mulher na obra de Goethe, Michelet, Mirabeau e Schopenhauer.16 A pretensa erudição que emanava do texto — bem como o pseudônimo com o qual vinha assinado, “Adherbal” — não escondia o fato de que Getúlio estava apaixonado.

“Há música nos seus passos”, garantia ele a respeito da amada, no ensaio para a revista estudantil. “As linhas de seu corpo imprimem no espaço formas radiosas de uma estética perfeita”, escreveu.

“Era uma carne triunfal, vazada em molde impecável de deusa pagã”, comparou. “Mas ela não tinha a fria estatuária antiga. Não! Era a apoteose do movimento, o ritmo oscilatório da vaga em remando”, derramou-se.

Adepto da discrição, Getúlio não era de sair apregoando conquistas amorosas enquanto entornava litros de cerveja Porco, uma das preferidas entre os estudantes de Porto Alegre àquele tempo. Quase nada se soube da tal donzela de vermelho, citada também aqui e ali,numa ou outra frase perdida, sempre ao rodapé das cartas trocadas por Getúlio com os colegas de faculdade.

“A Dama de Vermelho perguntou por ti”, revelou-lhe certa vez um deles, provocativo.17

Tudo indica, porém, que tamanho deslumbramento não tenha passado de um caso de amor platônico. Alzira Prestes — era este o nome da moça — casaria dali a algum tempo com um telegrafista, Alfredo de Carvalho Soares, funcionário dos correios em Porto Alegre.18

“Nunca lhe ouvi a sonoridade da voz; desconheço qual o revestimento moral dessa estranha beleza física”, lamentou Getúlio no artigo da Revista Acadêmica, arrematado com os versos de um poema das Flores do mal, de Charles Baudelaire:

... je ne puis trouver parmi ces pâles roses
Une fleur qui ressemble à mon rouge idéal.

[... não posso encontrar entre estas rosas frias
Uma flor que semelhe o meu vermelho ideal.]19

Em breve viriam muitas outras musas, todas igualmente mencionadas na correspondência particular do acadêmico Getúlio por discretos codinomes, o que lhes protegeu para sempre as respectivas identidades. Havia, por exemplo, a “filha do general”, a “irmã do Manezinho”, a “beleza aduaneira”.20 Anos mais tarde, uma das filhas de Getúlio — que coincidentemente seria batizada de Alzira, não em homenagem à misteriosa “Dama de Vermelho”, mas, ao que se sabe, em tributo à avó materna — encontraria um maço de cartas antigas trancafiadas em um velho baú pertencente ao pai, junto a uma montoeira de papéis roídos pelas traças.

“Sim, senhor, seu Don Juan! Até encontrares mamãe, quantas namoradas tiveste?”, indagaria a filha, que obteria do pai, como resposta, apenas mais um de seus famosos sorrisos.21

Sabe-se que o jovem e galanteador Getúlio não era um janota. Estava longe da figura típica do dândi.22 Tinha notória dificuldade de amarrar os cordões dos próprios sapatos. Mal arranjava o laço, este desatava logo em seguida, o que fazia com que volta e meia fosse visto com os cadarços arrastando pelo chão.23 O único traço aparente de vaidade eram as unhas caprichosamente longas, conservadas sempre bem polidas.24 Mas já cultivava seus prazeres. Por aquela mesma época de estudante da Faculdade de Direito, começou a degustar os primeiros charutos, hábito que viria a ser uma de suas marcas pessoais. Chegaria a fumar oito por dia, sendo dois ou três deles logo pela manhã.25 Seus preferidos eram os das marcas Mil e Uma Noites e Soberano.26

Após as aulas, Getúlio caminhava com seu passo miúdo pela tradicional e sofisticada rua da Praia, à época a mais importante da cidade, soltando baforadas feito uma chaminé ambulante. Demorava-se à porta das livrarias para conferir as novidades, especialmente nas prateleiras de filosofia, ciências e literatura. Investia boa parte da mesada de 200 mil-réis enviada pelo pai na aquisição de novos títulos.

No acanhado quarto da república estudantil em que passara a morar — a Pensão Medeiros —, na rua do Riachuelo, 299, nos fundos do Theatro São Pedro, Getúlio começou a formar uma pequena biblioteca particular.

Cerca de 60 mil-réis iam para o pagamento do aluguel na pensão, conhecida pelos ruidosos moradores como “a República Infernal”. Um outro tanto da mesada era empregado em despesas pessoais, o que lhe deixava por volta de 80 mil-réis de saldo a cada mês. Como nunca fizera questão de esbanjar dinheiro com roupas, quase todo o resto da mesada paterna era mesmo destinado à compra de charutos e livros.27

No quarto que recendia a sarro de tabaco e erva-mate, as lombadas dos compêndios jurídicos perfilavam-se junto às de romances nacionais e estrangeiros. O Ateneu, de Raul Pompeia; Os sertões, de Euclides da Cunha; e Germinal, de Émile Zola, figuravam entre os títulos favoritos do rapaz.28 A exemplo da maioria dos colegas, alimentava veleidades literárias. Segundo consta, Getúlio teria chegado a garatujar os capítulos de um romance histórico, Os revolucionários, ambientado na Revolução Farroupilha, mas durante um acesso de autocrítica rasgara todas as páginas, segundo justificaria depois, “em respeito à literatura”.29

Também ousou anunciar aos colegas que escreveria uma comédia para ser encenada por um famoso produtor teatral da época, Eduardo Victorino, português radicado no Brasil e autor de um manual para artistas do palco, A arte de representar. Todavia, Getúlio nunca cumpriu a promessa de entregar-lhe os originais. Em suas recordações do período, duas décadas mais tarde, Victorino ainda lastimaria o episódio:

“A política desviou o autor dramático, e as minhas sucessivas viagens, tendo-me afastado do Rio Grande do Sul, impediram-me de abrir as portas a mais um escritor teatral.”30

As comichões de Getúlio por uma eventual carreira literária não foram adiante, embora seus trabalhos de faculdade demonstrassem algum estilo e uma relativa intimidade com a artesania da frase — descontado o empolamento próprio à época e o palavrório cientificista que, no caso específico de Getúlio, então contaminava tudo aquilo que punha no papel, por efeito de suas leituras de Darwin, Spencer, Nietzsche, Taine e, em especial, Saint-Simon, considerado um dos fundadores do socialismo.31

“Saint-Simon foi o meu filósofo. Na minha juventude eu o li muito, exaustivamente. Mandei vir da França uma edição completa das obras dos saint-simonianos, editadas em Paris. Não li todos os volumes, mas li muitos”, diria mais tarde Getúlio.32

Em uma prova escrita de economia, deixaria registrada, de certo modo, o que pode ser considerada a gênese de seu pensamento político. Ao discorrer sobre a propriedade privada, o estudante Getúlio criticaria o liberalismo e defenderia a necessidade da intervenção do Estado na economia:

O Estado [...] é um aliado do indivíduo, deve garantir os direitos individuais, deve auxiliá-lo sempre que ele necessitar de tal auxílio. Por isso não ser previamente estabelecidos a priori os casos em que a intervenção do Estado se torne necessária, pois esta será exigida pela urgência dos fatos.33

Ao mesmo tempo, afirmava que o comunismo seria um regime essencialmente “reacionário” pois, ao pregar a abolição da propriedade, Karl Marx objetivava, de modo utópico, “volver a fases transatas da evolução”, escreveria Getúlio. “Dado que fosse possível o comunismo, que se empregassem medidas para não afogar a liberdade individual no cosmo social, conseguir-se-ia volver àquela ingenuidade primitiva e àquela boa-fé que presidiam as primeiras comunidades?”.

Getúlio considerava que não:

Mesmo que o comunismo não trouxesse a estagnação e a apatia pela abolição da concorrência, e pelo sopesamento de toda iniciativa individual, a continuação das mesmas falhas nos organismos individuais, as diferenças de capacidade, destreza, inteligência, energia, que foram causas da individualização das sociedades primitivas, não reapareceriam outra vez, tornando a distanciar os possuidores dos não possuidores? Parece-me que sim.34

Na mesma prova, Getúlio argumentaria que o Estado deveria favorecer e facilitar as cooperativas dos operários, em forma de associações de classe — o que se coadunava com a tese positivista da necessidade de incorporação do proletariado à sociedade, sempre por meio da “tutela benéfica do Estado”, já que para Comte o operariado era considerado uma classe “desprotegida” e “inculta”, incapaz de gerir a si própria.35

Mas as inclinações de Getúlio, nesse momento, eram mesmo mais literárias que políticas. No quarto ano de faculdade, escreveria um longo artigo para outra revista estudantil, Pantum, no qual pretendeu conjugar as predileções literárias com as lições aprendidas nos pensadores evolucionistas. Publicado sob o título de “Zola e a crítica”, Getúlio discorreu, ao longo de quatro páginas e meia da revista, sobre a relevância da obra do escritor francês para o desenvolvimento da literatura universal.

“[Zola] compreendeu que, do filão riquíssimo existente na ciência, poderia extrair abundante material para a construção artística”, observou, demonstrando razoável familiaridade com o tema.36

É óbvio que um rapaz como Getúlio nem sempre estava às voltas com cartapácios científicos, literários ou acadêmicos. Como todos os moços de Porto Alegre, frequentava os esfumaçados cafés da cidade — locais apinhados de estudantes, que cometiam versos no tampo de mármore das mesas, discutiam política e literatura, enquanto se impregnavam de nicotina e gritavam por novas rodadas de bebida.37 Ainda não existia cinema na capital rio-grandense, mas havia a cigarraria Manon, bem defronte ao prédio da faculdade, ponto de encontro obrigatório. Havia também a comemoração anual em honra ao Divino Espírito Santo, três dias que valiam por um ano inteiro de entretenimento. A festa, embora de origem religiosa, oferecia o pretexto para que os rapazes bebericassem a valer nos botequins das quermesses antes de sair para flertar nas praças da cidade.

“Durante aquele tríduo, com os ventos gelados remoinhando das praias do Guaíba, é que começavam quase todos os casamentos e quase todas as pneumonias”, atestaria João Neves da Fontoura, também aluno da Faculdade de Direito, que se aproximaria de Getúlio depois de um encontro casual entre os dois na Livraria Echenique, então uma das mais concorridas de Porto Alegre.38

Além das afinidades literárias, Getúlio e João Neves — que viriam mais tarde a compor uma chapa vitoriosa ao governo do estado e depois, ainda juntos, conspirariam em 1930 para derrubar o presidente Washington Luís —, descobririam outros pontos de convergência. Eram, por exemplo, quase da mesma altura, o que teria favorecido a pronta camaradagem entre eles:

“Em geral, um homem muito baixo não gosta de se mostrar, em público, com outro excessivamente alto”, admitiria o próprio João Neves.39

A turba estudantil de Porto Alegre também afluía aos bilhares do Centro Castilhista, onde Getúlio construiu a reputação de jogador mediano, mas também de atento e silencioso observador das partidas alheias.40 Assim como os velhos companheiros de escola em São Borja, os colegas desse tempo na capital rio-grandense recordariam os longos silêncios de Getúlio como uma imagem recorrente. Ele mordiscava o charuto no canto da boca e permanecia calado, o olhar à primeira vista distante, mesmo durante as discussões mais acaloradas — o que muitas vezes o fez passar por dono de uma frieza quase glacial. Todavia,a fama de homem de gelo, assegurariam os mais próximos, era apenas aparente.

“Sempre me pareceu estranho ouvir, anos mais tarde, dizerem que Papai era de índole calma e serena, o homem que sabia esperar. Saber, ele sabia. Mas não gostava”, advertiria Alzira Vargas. “[Ele] aprendeu a controlar seu temperamento impaciente, ardoroso, quase intempestivo”, observaria a filha.41

Getúlio esperava sem pressa pelo momento de se fazer ouvir, quando então procurava convencer o interlocutor com um raciocínio que lhe parecesse sólido o suficiente. Quando interpelado, levantava as sobrancelhas — gesto que denunciava um discreto estrabismo 42 —, demorava alguns instantes em suspense, crispava os lábios, e só então falava, pausadamente, como se medisse o peso e o efeito de cada palavra.

“O que dizia, então, tinha pé e cabeça. Ele era lógico”, relataria Odon Cavalcanti, outro amigo à época.43

Getúlio era, também, um metódico. Sua escrivaninha de estudante exibia milimétrica arrumação, sem que ninguém jamais pudesse encontrar sobre ela algum objeto fora do lugar.44 Com idêntico senso de organização, tomava notas minuciosas de cada aula e, ao chegar à pensão, transcrevia-as em um caderno pautado, com letra firme e clara. Com base nessas anotações, procurava reconstituir por escrito, com o maior número possível de detalhes, a explanação dos professores. No dia seguinte, levantava cedo, antes de todos os outros colegas, preparava o próprio chimarrão e relia tudo o que escrevera na véspera, para certificar-se de que havia fixado bem o conteúdo das aulas.45 Os exames prestados por ele na Faculdade de Direito comprovariam a eficácia do método.

Ao longo do curso, Getúlio foi aprovado em todas as cadeiras com o conceito “plenamente”, tendo obtido ainda duas “distinções” em direito internacional e direito público e constitucional. Manteria a regularidade no rendimento acadêmico do começo ao fim, embora os certificados de frequência denunciassem que, a partir do terceiro ano, ele já não fosse um aluno tão assíduo quanto antes.46 Suas atenções passaram a ser divididas entre a sala de aula e as atividades absorventes do movimento estudantil. A política o aliciava, com suas seduções e caprichos. Getúlio não resistiria ao chamado.

No dia 13 de agosto de 1906, um ofício inesperado pousou sobre a mesa do desembargador Manuel André da Rocha, diretor da Faculdade de Direito. Assinado pelo quartanista Getúlio Dornelles Vargas e por Euribíades Dutra Villa, membro da Federação dos Estudantes de Porto Alegre, o documento podia ser interpretado como um acinte ao presidente estadual Borges de Medeiros:

Ilmo. e Exmo. Sr. desembargador diretor da Faculdade de Direito desta capital. Os alunos das academias civis, melindrados com sucessivas descortesias feitas pelo governo do estado, tomaram a resolução definitiva de não comparecerem aos festejos organizados para a recepção do Exmo. Sr. Dr. Afonso Pena, presidente eleito da República.47

A decisão dos estudantes prometia render algum alvoroço. Era notória a expectativa pela chegada de Afonso Pena a Porto Alegre. Pela primeira vez na história, um presidente da República iria pisar o solo rio-grandense. Uma ampla programação havia sido elaborada para recepcioná-lo com todo o fausto que a ocasião sugeria. Ao divulgar a decisão da mocidade acadêmica de não fazer parte da solenidade, o jornal Correio do Povo, que se orgulhava de ser um “órgão sem facção partidária”, mais noticioso que opinativo em meio a uma imprensa essencialmente proselitista,48 daria a seguinte informação aos leitores:

“Foi resolvido [pela Federação dos Estudantes] ficar sem efeito a escolha do acadêmico Getúlio Vargas para orador daquela sessão.”49

O movimento estudantil, dizia o jornal, prometia uma manifestação paralela, na qual ficasse evidente o descontentamento com o governo do estado. Na oportunidade, o representante da comunidade acadêmica, Getúlio, em vez de orador oficial, seria o porta-voz da insatisfação.

Os tais “melindres” aludidos no ofício ao diretor da faculdade decorriam do fato de, pouco antes, o governo estadual ter se recusado a atender a um pedido da Federação dos Estudantes. A entidade pretendera mandar grande comitiva para o cortejo que acompanharia Afonso Pena, do porto da cidade de Rio Grande — onde o presidente eleito desembarcaria — até a capital Porto Alegre. O cerimonial do palácio alegara que o vapor reservado para o séquito estava lotado, pois haviam sido expedidos convites preferenciais para os representantes das classes produtivas e do mundo político. Quando muito, haveria uma única vaga disponível à participação estudantil.50

A Federação dos Estudantes, que congregava os alunos de todas as instituições de ensino da capital rio-grandense, não ficou satisfeita com tal oferta. Como represália, em assembleia realizada nos salões do Clube Caixeiral, na rua da Praia, a estudantada votou pelo boicote à homenagem oficial. Os que tentaram ponderar sobre o risco de se atrair a fúria da altiva Brigada Militar rio-grandense tiveram a palavra abafada pelos colegas.

“O governo tinha cometido verdadeira mancada com aquela despreocupação, que orçava pelo caipirismo. Não se deu conta de que não se briga com estudante”, relataria João Neves da Fontoura, em suas recordações do episódio.51

Getúlio, ao ser indicado como orador da manifestação de repúdio, precisava fazer jus à confiança dos camaradas. Ao mesmo tempo, sabia que a família em São Borja era adepta — e consequente beneficiária — do clientelismo borgista. Além disso, a eleição de Afonso Pena para o Palácio do Catete trazia a marca das cavilações políticas do senador rio-grandense Pinheiro Machado, retratado nas charges da época ora como um galo de crista eriçada — “o chefe do terreiro” —, ora como uma raposa — “o terror dos galinheiros políticos do país”. Hostilizar Pinheiro, por certo, não fazia parte dos planos de Getúlio. O homem não só era amigo e correligionário do general Manuel Vargas, como já manobrava de sua cadeira no Senado os cordéis da chamada Primeira República.

A propósito da ligação dos Vargas com Pinheiro Machado, uma reminiscência familiar dava conta de certa visita do senador a São Borja, quando Getúlio ainda não passava de um menininho a brincar, no chão, com soldadinhos de osso de boi. Conta-se que Pinheiro ficara tão impressionado com a curiosidade e a inteligência precoce do garoto que teria comentado com o pai de Getúlio, o velho Manuel Vargas:

“Este menino vai longe! Talvez chegue à presidência da República!”52

Repetida pelos biógrafos oficiais de Getúlio, a cena parece circunscrever-se àqueles casos em que a história é escrita com o propósito de fabular uma suposta predestinação do personagem. Porém, do episódio, pelo menos um fato é inegável: as relações de Manuel Vargas e Pinheiro Machado eram históricas. Os dois lutaram lado a lado na repressão à Revolução Federalista, na famosa Divisão do Norte, que impôs derrotas sucessivas aos comandos maragatos. A trajetória pessoal de Pinheiro, ressalte-se, era feita de lances que beiravam o improvável.

Quinto filho de uma família de doze rebentos, Pinheiro fugiu de casa aos catorze anos, em 1865, para se alistar como soldado durante a Guerra do Paraguai. Adoeceu no campo de batalha e passou dois anos se recuperando das moléstias contraídas nos combates. Depois viajou para terras paulistas transportando uma tropa de mulas xucras e só retornou em definitivo para o Rio Grande do Sul tempos depois, em 1879, levando na bagagem o diploma de advogado pela prestigiosa Faculdade de Direito de São Paulo. Fez-se vereador na riograndense São Luiz Gonzaga e, sob os auspícios do amigo Júlio de Castilhos, ganhou uma cadeira cativa no Senado, em 1891. No Rio de Janeiro, com o porte altivo e a colossal cabeleira, passou a brilhar com luz própria.

Dono de uma capacidade inesgotável de fazer inimigos, chegaria a desafiar para um duelo com armas de fogo o jornalista Edmundo Bittencourt, que vivia a fustigá-lo em artigos do Correio da Manhã, nos quais Pinheiro era acusado de “só pensar no pôquer e em seus galos de briga”.53 Na então deserta praia de Ipanema, Pinheiro terminaria por mandar o contendor para o hospital com uma bala encravada no traseiro.54

Enquanto se preparava para o discurso que deveria pronunciar na manifestação estudantil, Getúlio devia ter consciência de que Pinheiro Machado, conforme noticiavam os jornais, participaria da recepção oficial ao novo chefe da nação. Um ano antes, o mesmo Pinheiro Machado inflara as pretensões do ex-presidente Campos Sales de retornar ao Catete. Ardiloso, Pinheiro apenas procurara semear a desavença entre os pretendentes ao posto máximo do país, com o indisfarçado propósito de viabilizar o próprio nome à presidência. Como o candidato oficial do Catete era um paulista — Bernardino de Campos, ex-presidente de São Paulo —, o anúncio da candidatura do também paulista Campos Sales provocou um racha no estado mais rico e poderoso da federação. A mobilização em São Paulo pela candidatura de Sales reverberou em Porto Alegre. Getúlio, além de outros 53 alunos da capital rio-grandense, pusera sua assinatura em um manifesto de apoio a ela.

“Resolvemos, como uma flâmula de combate, erguer o nome laureado do grande patriota dr. Manuel Ferraz de Campos Sales à presidência da República”, dizia o manifesto dos estudantes, escrito em parte pelo próprio Getúlio.55

A candidatura de Campos Sales teve duração efêmera. Sobreviveu apenas tempo bastante para que o blefe de Pinheiro Machado produzisse os primeiros resultados. Entretanto, mesmo com os paulistas divididos, Pinheiro percebeu que ainda não chegara a hora de sentar ele próprio na cadeira presidencial: os votos rio-grandenses não eram suficientes para levá-lo à vitória. Optou então pela construção de um candidato de consenso e continuou a atuar nos bastidores, arquitetando alianças regionais que pudessem viabilizar, talvez mais tarde, o projeto pessoal de fazer-se presidente da República.56 O nome de consenso foi justamente o do ex-senador mineiro e então vice-presidente da República, Afonso Pena, o “Tico-Tico”, como o apelidaria a revista satírica Careta, por causa da “figura pequena e nervosa” do novo presidente.57

A inclusão do Rio Grande do Sul na rota das visitas festivas de Pena, já na condição de presidente eleito, representava um reconhecimento às articulações de Pinheiro Machado. Os jovens estudantes, portanto, estavam se metendo em assunto de gente grande — e sabiam disso. Conforme haviam prometido, logo no dia seguinte à solenidade oficial em Porto Alegre tomaram as ruas da cidade, como costumavam fazer sempre que chegava alguma autoridade política ou expressão do meio artístico. Entre eles, seguia Getúlio, com tiras de papel no bolso, onde rabiscara o esquema do discurso que deveria fazer no palanque armado bem defronte a uma das janelas principais do palácio do governo estadual, onde estava hospedado Afonso Pena.58

A manifestação esperou o anoitecer para produzir efeito mais admirável. Pouco depois das seis horas da tarde, a passeata começou a se deslocar da praça da Alfândega, com os participantes empunhando centenas de archotes e balões venezianos, cujas luzes conferiram uma dramaticidade ainda maior ao evento. Era uma marche aux flambeaux — a “marcha das tochas”, na tradição inaugurada ainda nos tempos da Revolução Francesa, em comemoração à tomada da Bastilha.

“Os acadêmicos, formando filas de quatro, estenderam-se pela rua dos Andradas [denominação oficial da rua da Praia]. À frente, desfraldavam a bandeira nacional”, noticiou o Correio do Povo. “As janelas dos sobrados e as portas dos estabelecimentos comerciais estavam repletas de pessoas que assistiam ao desfilar dos manifestantes”, dizia a informação. “Durante o trajeto, os moços acadêmicos foram saudados com o agitar de lenços.”59

Tudo jogo de cena. Tão logo percebeu que cometera um erro político estratégico, o governo do estado fez um acerto prévio com os estudantes. Uma comissão de alunos se entendeu com o próprio Afonso Pena, que de comum acordo com Borges de Medeiros não só autorizou a manifestação como prometeu assisti-la do modesto prédio neoclássico que então servia de sede ao governo estadual, popularmente conhecido como “Forte Apache” — cujas janelas superiores, na mesma linha da calçada, proporcionavam boa visão e boa audição a quem discursasse do alto para a praça ou, do contrário, da praça para o alto. Quando a passeata atingiu as cercanias da sede do governo, o presidente eleito já a aguardava, encasacado, junto aos demais membros da comitiva oficial.

Se os estudantes haviam oferecido uma demonstração de força, Afonso Pena respondera com um previdente gesto de diplomacia. Não por acaso, os manifestantes, ao vislumbrar a figurinha pequena do “Tico-Tico” assomar à janela, entoaram aplausos e vivas. Segundo informaria o Correio do Povo, quando Getúlio assumiu posição no alto do tablado, seus camaradas fizeram silêncio.

“Não nos foi possível ir ao encontro de Vossa Excelência, como desejávamos”, iniciou Getúlio o discurso. “Seja-nos ao menos permitido [saudá-lo] sob a cúpula azulada dos céus, no anfiteatro amplo da natureza, esta arena grandiosa, mais própria para os que se iniciam na vida pugnando pelo pensamento livre.”

Não era uma fala de confronto. Getúlio não deixara de manifestar o desconforto dos estudantes pela desfeita de serem excluídos da solenidade oficial, mas também não alongara o assunto. Ao contrário, logo passou a louvar Afonso Pena:

“Vossa Excelência é o representante de uma revolução pacífica que alterou a diretriz da política nacional.”

Getúlio não esqueceu de afagar também Pinheiro Machado, referindo-se a ele como o “pulso de bronze” que garantira o resultado das eleições presidenciais. Se havia incendiários na plateia, Getúlio tratara de neutralizá-los.60 Tanto foi assim que, na avaliação do amigo João Neves da Fontoura, o discurso havia sido “vago”, “mais literário do que político”.61

O instante era de conciliação, não de afronta, percebera o jovem orador. Para baixar ainda mais a temperatura do evento, Getúlio enfileirou em seu discurso uma série de considerações literárias e divagações filosóficas. Destacou passagens de Euclides da Cunha, fez menção a Nietzsche, enfatizou as concepções evolucionistas de Darwin e Spencer:

“Todos os corpos se transformam, se deslocam, se reduzem, aumentam, diminuem; desagregam-se, aparecem e desaparecem, sobas formas as mais diversas”, teorizou, ao sugerir que o pensamento humano também deveria evoluir, sob pena de a imobilidade levar à inevitável extinção.

Apesar de todo aquele cientificismo representar uma espécie de mensagem cifrada para alguma parcela da audiência, era evidente que Getúlio se referia à necessidade de renovação também na própria política rio-grandense. Isso, conforme deixaria claro, sem jamais atraiçoar o princípio do “catecismo positivista” de Auguste Comte, pelo qual a sociedade estaria fadada a uma evolução natural e linear, dentro de um avanço cumulativo, baseado na disciplina e no equilíbrio — tudo de acordo com a tese sintetizada na divisa “ordem e progresso” estampada na bandeira nacional.

Getúlio, portanto, não falava ali em nome de conflagrações, movimentos bruscos, rupturas radicais. Condenou de modo explícito “os que julgam que só se rasga o véu do futuro com estilhaços de granada”. Em contrapartida, também censurou os conservadores, acusando-os de representar “uma mola emperrada no funcionamento orgânico da sociedade”, uma gente de “inteligência curta”, envolvida na “estreita casamata dos preconceitos”.

Nem revolução, nem estagnação. Nem subverter a ordem, nem retroagir o progresso, de acordo com o que propunha Comte e a chamada “divisa orgânica” do prr: “conservar melhorando”.62 O tipo ideal de político, segundo Getúlio, era o do “conservador progressista”, fórmula com a qual definiu Afonso Pena no fim do discurso.

Décadas mais tarde, diriam de Getúlio que coube a ele promover, exatamente, a efetiva “modernização conservadora” do país.

Aos 24 anos, já lhe soaria como o maior de todos os elogios.

No ano seguinte à visita de Afonso Pena ao Rio Grande do Sul, um grupo de rapazes se acotovelou em um dos quartos da chamada “República Infernal” — a Pensão Medeiros, onde morava Getúlio — para uma reunião histórica. Sugerida por João Neves da Fontoura, a assembleia foi organizada por mais dois estudantes: Jacinto Godoy, aluno da Faculdade de Medicina, e Maurício Cardoso, colega de Getúlio na Faculdade de Direito. Os três, Neves, Godoy e Cardoso, propunham aos camaradas a formação de um centro estudantil, uma espécie de ala jovem do Partido Republicano do Rio Grande do Sul. Os tais melindres em relação a Borges de Medeiros estavam superados desde o discurso conciliador de Getúlio. O nome escolhido para a agremiação explicitava sua matriz ideológica: Bloco Acadêmico Castilhista.63

O trio buscou o apoio de dois acadêmicos de Direito que julgaram indispensáveis ao sucesso da empreitada. Um deles era exatamente Getúlio Vargas, convocado por se destacar entre os pares pela “inteligência e serenidade”, segundo as palavras de João Neves. O outro era Firmino Paim Filho, convidado por motivo justamente oposto: era um rapaz de temperamento combativo, intransigente na defesa das próprias ideias. Ambos, Paim e Getúlio, atenderam ao chamado. Juntos — um moderado, outro voluntarioso —, produziriam a liga perfeita, intuíram os colegas.

“O Paim é capaz de mandar fuzilar os amigos em nome dos princípios”, brincava Getúlio.64

O Bloco Acadêmico Castilhista atendia a um propósito específico. Estava-se em abril de 1907 e, dali a cerca de sete meses, haveria eleição para o governo do estado. Em quinze anos, desde que Júlio de Castilhos se abancara na cadeira de presidente estadual, o Partido Republicano detinha a hegemonia política no Rio Grande do Sul. Mas, dessa vez, sem a onipresença de Castilhos, seus adversários estavam unindo forças para tentar derrotar o que chamavam de “castilhismo positivoide”.65 Uma aliança entre os antigos maragatos e um grupo de republicanos insatisfeitos era a novidade eleitoral, apesar da ameaça sempre presente das baionetas da Brigada Militar.

“Borges de Medeiros sempre que pode cuida da ordem, mas nunca do progresso”, reclamava a oposição.66

O candidato oposicionista era Fernando Abbott, chefe do Partido Republicano no município de São Gabriel. Ex-comandante na repressão à Revolução Federalista, Abbott se considerava um herdeiro do castilhismo muito mais legítimo que Borges de Medeiros. Fora seu vice durante algum tempo e, para muitos, atuara como o verdadeiro braço direito do líder morto. Figura controvertida, além de médico, era conhecido como fabricante das populares “Pílulas Salutíferas do Dr. Fernando Abbott”, então anunciadas na imprensa porto-alegrense como “o mais eficaz medicamento para curar dispepsia, doenças do estômago e intestinos”.67

Pois ruim do fígado deve ter ficado Borges de Medeiros quando soube que o ex-correligionário, acusado de ter comandado uma série de atrocidades contra os federalistas na revolução de 1893, desfraldara uma candidatura de oposição que contava com a aberta simpatia dos antigos adversários.

A estreia pública do Bloco Acadêmico Castilhista se deu com um manifesto contundente contra Abbott, ao fim do qual se liam as assinaturas de cerca de duzentos estudantes — da Escola de Guerra, da Faculdade de Medicina, da Escola de Engenharia e, especialmente, da Faculdade de Direito, onde o nome de Getúlio encabeçava a lista entre os colegas.

“Estamos em plena contra-agitação”, dizia o manifesto, que erguia uma muralha de impropérios contra Abbott e acusava os dissidentes do partido de se comportar como uma víbora “insidiosa” e “pérfida”. A aliança com os federalistas era descrita no texto como um “concubinato político”. Pelo fato de Abbott, dias antes, ter afirmado irrestrita fidelidade partidária a Borges de Medeiros em um evento público na cidade de Cachoeira e, seis horas depois, em outro município, Santa Maria, declarar-se candidato da oposição, o manifesto assinado por Getúlio ferroava:

“Dentro de qual partido estava o dr. Abbott às duas da tarde?”68

O texto revelava o tom do engajamento estudantil naquelas eleições, a primeira na qual Getúlio, ainda que apenas como militante, participaria na vida. Pinheiro Machado avaliou bem o impacto que teria aquele tipo de linguagem numa contenda política acirrada. O Bloco Acadêmico Castilhista representava uma renovação nas fileiras do Partido Republicano, que depois de tanto tempo no poder começava a apresentar os sinais de esgotamento.69 Por isso, de passagem pelo Rio Grande do Sul, Pinheiro Machado fez questão de apertar a mão de cada um dos principais membros do Bloco Acadêmico antes de retornar às costumeiras articulações nacionais no Rio de Janeiro. Era o aval de que os estudantes precisavam para ser reconhecidos como força emergente e autorizada dentro do partido. Coube a Getúlio, mais uma vez, a responsabilidade de falar pelos colegas no encontro com Pinheiro Machado, realizado nos salões do palácio do governo estadual, o que conferiu ainda maior solenidade ao fato.

“A atitude de Vossa Excelência na política da República tem sido esperar a marcha dos acontecimentos, colocando-se à frente destes, para guiá-los”, disse Getúlio a Pinheiro, numa frase que tempos depois o brasilianista John W. F. Dulles consideraria premonitória de dois atributos que o próprio Getúlio Vargas iria aperfeiçoar como ninguém: a paciência histórica e o senso de oportunidade política.70

Logo no dia seguinte à reunião com Pinheiro Machado, os estudantes tiveram ocasião de demonstrar que não ficariam circunscritos a falações e manifestos. Partiriam para ações mais ousadas. Puseram-se em alerta, por exemplo, quando souberam que a oposição agendara uma manifestação na praça da Matriz, bem ao lado do palácio do governo, na qual falariam dois dos mais notórios partidários da candidatura de Fernando Abbott. O primeiro, Rafael Cabeda, um dos bastiões do federalismo rio-grandense, era coautor de um livro bombástico,Os crimes da ditadura, editado no Uruguai e no qual se trazia à luz uma série de denúncias históricas contra os partidários de Júlio de Castilhos.71 O segundo, Pedro Moacyr, orador polêmico e eloquente,olhos faiscantes e voz de tenor, virara a casaca e, de castilhista fervoroso no início, passara de malas e bagagem para o lado adversário.72

Os integrantes do Bloco Acadêmico haviam combinado comparecer ao evento não para aplaudir Cabeda e Moacyr, era evidente, mas para desafiá-los com apartes venenosos e provocações.

Foi justamente Pedro Moacyr quem primeiro tomou a palavra durante a manifestação, que teve direito a banda de música e a centenas de espectadores — o que por si só atestava a popularidade crescente do discurso oposicionista. Quando Moacyr desatou a falar, a palavra que mais se ouviu de seus lábios foi “democracia”. Antes que algum estudante pudesse tentar interrompê-lo, um professor de Getúlio, Januário Gafrée, lente de filosofia do direito, especialista na obra do pensador alemão Immanuel Kant, tomou para si o papel de provocador:

“Mas, afinal de contas, o que é mesmo democracia?”, desafiou Gafrée, com ar professoral.

A multidão esperou a réplica, que não se fez demorar:

“Ora, democracia é o que não existe no Rio Grande do Sul!”, devolveu Pedro Moacyr, de bate-pronto.73

Não houve tempo para que a plateia, eletrizada, irrompesse em palmas. Tão logo Moacyr concluiu a frase, ouviu-se o estampido no ar. Um tiro de revólver. Alguém atirara para cima, com o intuito declarado de provocar confusão. Houve tumulto generalizado. Foi impossível evitar o pânico coletivo.

“O corre-corre atropelou a multidão. Gente foi jogada ao chão, pelos que temiam um conflito sangrento. Os vivas se entrecruzaram com as vaias”, recordaria João Neves da Fontoura.74

Depois de alguns minutos de balbúrdia, a polícia interveio e Pedro Moacyr ainda tentou prosseguir o discurso. Mas não havia mais clima para tanto. Da janela do palácio ali vizinho, Borges de Medeiros assistia a tudo em presumível regozijo. Ao contrário dele, Getúlio e os demais colegas não ficaram para testemunhar o fim da manifestação. Tão logo se escutou o tiro, todos chisparam dali em desabalada carreira, considerando que sua missão já podia ser dada como cumprida. Longe da praça, esbaforidos e ao mesmo tempo excitados, entreolharam-se em busca da identificação do autor da façanha.

“Qual de nós disparou o tiro?”, alguém perguntou.

Enquanto todos negavam a autoria do feito com caras espantadas, apenas um deles sorria. Era Getúlio.

“Então foi você, Getúlio?”, indagaram-lhe os colegas quase em coro.

Getúlio não disse que sim. Mas também não disse que não. Apenas comentou:

“Não tínhamos projetado mandar pelos ares a manifestação da oposição? Ela foi pelos ares ou não?”75

Nunca se soube quem realmente atirou. Getúlio jamais assumiu o ato, embora continuasse sem negá-lo de forma efetiva para o resto da vida. Anos mais tarde, ao saber da história por meio de um velho amigo do pai, a filha Alzira o interpelou a respeito. Getúlio não reagiu bem à inquirição.

“Olhou-me feio, por cima dos óculos”, contaria Alzira, que obteve apenas uma frase como resposta:

“Era o único meio de dissolver o comício”, o pai lhe dissera.

“Não consegui arrancar-lhe mais nada nesse dia, nem depois. Fiquei com sérias desconfianças e ainda as mantenho, porque fugia sempre ao assunto com grande habilidade”, recordaria a filha. “Não se acusou, mas não acusou ninguém. Poderia ser um pacto entre eles; poderia ser que aquele que me fez a insinuação desejasse verificar somente se papai era capaz de manter um segredo. Por isso, não insisti mais.”76

Quando faltavam cerca de cinco meses para a eleição estadual,uma gazeta panfletária passou a circular pelas ruas de Porto Alegre. Getúlio Vargas, então quintanista da Faculdade de Direito, estava no rol dos principais redatores da nova publicação. Cabia a ele escrever os artigos de fundo, revezando-se na função com o colega Firmino Paim Filho, que respondia oficialmente pelo comando da redação. Com quatro páginas e circulação diária, O Debate trazia abaixo do título o seguinte dístico: “Jornal castilhista”. A folha cultivava um estilo ácido, mas amparado em uma catilinária cientificista, o que lhe denunciava a origem acadêmica. O candidato da oposição, Fernando Abbott, era tratado pelos redatores como o representante maior de um grupo de “degenerados”, uma gente arrastada à oposição “pela força irresistível de sua tara psíquica”.77

Em uma das primeiras edições, o artigo de fundo de O Debate, com título de inspiração darwinista — “Seleção artificial” — e provavelmente escrito em parceria por Getúlio e Paim Filho, propunha que, para sanear a sociedade rio-grandense e eliminar os adversários “perturbadores da harmonia e da coletividade”, só restariam duas soluções plausíveis:

1. Recolher os mencionados cretinos a um manicômio.
2. Enviá-los para o Acre. [...]

Não temos preferência por nenhum dos modos indicados, entregamos os miseráveis e pusilânimes vermes roedores da dignidade moral ao seguro julgamento da sociedade.78

Cauteloso ante a divergência no seio do partido, o presidente estadual Borges de Medeiros, em vez de pleitear uma segunda reeleição, como lhe facultava a Constituição rio-grandense, resolveu indicar à sucessão o nome de Carlos Barbosa Gonçalves, médico como Abbott e presidente da decorativa Assembleia de Representantes — como era denominado o Legislativo estadual, controlado pelo governo.79 O que estava em xeque era a continuidade da autocracia castilhista-borgista, que vivia grave crise de legitimidade, refletida no avanço das oposições e das dissensões internas.

“Para manter o equilíbrio na sociedade, assegurando-lhe a tranquilidade, a paz e a harmonia, torna-se necessário o estabelecimento de um poder superior que lhe dite as normas e as faça seguir”, argumentava um dos editoriais de O Debate. “Daí a indispensável existência do Estado, conduzido por governos fortes e capazes, que guiem os destinos coletivos”, justificava o jornal do Bloco Acadêmico Castilhista.80

Getúlio foi um dos mais dedicados membros do corpo editorial de O Debate. Também, um dos mais ativos. Era o primeiro a chegar e o último a sair da redação.81 O escritório estava instalado no número 48 da rua Andrade Neves, onde antes funcionara uma publicação devida breve, O Sul, que teve as oficinas compradas e reativadas para rodar o novo jornal com o apoio financeiro de dirigentes do PartidoRepublicano — e a chancela política de Borges de Medeiros e Pinheiro Machado.82 O próprio Borges costumava descer pessoalmente à redação de O Debate, situada a poucas centenas de passos do palácio, para conferir os artigos de fundo e certificar-se de que as diatribes seriam publicadas com a virulência desejada.83 Uma das tarefas básicas do jornal era desqualificar a aliança suprapartidária estabelecida entre a defecção republicana e os inimigos maragatos:

“[Fernando Abbott] apregoa que governará sem partido, como se sobre a areia movediça das opiniões divergentes se pudesse construir alguma coisa”, desdenhava o jornal, com a linguagem atrevida de sempre.84

Na verdade, o matutino escrito pelos rapazes do Bloco Acadêmico funcionava como uma trincheira auxiliar à guerra já travada contra os oposicionistas pelas páginas da tradicional e vespertina A Federação. Muitas vezes, os dois periódicos reproduziam entre si a íntegra de artigos estampados originalmente em um ou em outro, confirmando a clara afinidade de princípios, em que pesem as dessemelhanças estratégicas entre os respectivos projetos editoriais.

Como diferencial maior em relação à publicação irmã, O Debate cultivava o estilo mais impetuoso, o que também contribuía para renovar o discurso e o perfil da militância republicana rio-grandense. Do lado adversário, com o propósito de desmerecer o arrebatamento juvenil que movia as oficinas de O Debate, os oposicionistas passaram a rotular os redatores do novo jornal de “guris”, uma simples “petizada” que havia fundado um pasquim para achincalhar a honra alheia.85

Com efeito, além do panfletarismo, o humor era outra característica da gazeta do Bloco Acadêmico. Quando não estava elaborando os artigos de fundo, Getúlio divertia-se traçando irreverentes e longos perfis dos próprios colegas de redação, textos que eram publicados a cada nova edição e revelavam a verve até então oculta do autor.

Sobre o colega Cláudio Fernandes Júnior, por exemplo, Getúlio escreveu: “A idade já lhe vai desbastando a linda cabeleira, onde em idos tempos — suponho — havia de ter perdido algum olhar de morena apaixonada”.86 A respeito de outro colega, Henrique Araújo, Getúlio revelou: “Cavaleiro andante dos amores, inclinou-se, deveras, a uma donzela que logo depois abandonou, pelo tamanho desmesurado dos pés”.87 Já o amigo Francisco de Leonardo Truda seria retratado assim por Getúlio: “Na turma, ele representa o mesmo papel do cometa no sistema planetário, batendo deste modo, em todos os anos letivos, o recorde de faltas”.88 Já Firmino Paim Filho, segundo o perfil escrito por Getúlio, tinha “o ar empertigado de um valete de espadas”.89

Coube ao colega Rodolpho Simch redigir o perfil de Getúlio nas páginas de O Debate. Simch conhecia Getúlio ainda dos tempos em que ambos moraram em Ouro Preto. Ele fora o professor de alemão do Ginásio Mineiro que se viu arrolado no inquérito policial — depois inocentado no tribunal do júri — quando da morte do estudante paulista Carlos de Almeida Prado. Após se ver livre das complicações na Justiça, voltara para o Rio Grande do Sul e recomeçava a vida como aluno de Direito. Sobre o camarada Getúlio, com quem travara amizade desde que este ainda usava calças curtas, escreveu Simch, com peculiar colorido:

É baixo, rosto oval, fisionomia franca em que se destacam os olhos negros, perscrutadores e penetrantes. Fronte ampla, cabelo castanho escuro ligeiramente ondeado; bigode curto, negro, rigorosamente torcido; conjunto simpático e atraente. O corpo está sempre ereto e aprumado — talvez vestígio de seu tempo de aluno militar.
[...]
Entre os dedos anda invariavelmente preso um charuto. Traja, geralmente, de escuro e parece ter séria aversão ao fraque e à sobrecasaca; conheço-o há cinco anos e nunca o vi em tal “encadernação”.
[...]
Misto de epicurista e estoico — ora saboreia os prazeres da vida sem precipitação, ora submete-se, imperturbável, às agruras da sorte — pouco se lhe dando de dormir em macio edredom ou em um montão de rijas correntes de ferro.90

Toda a insolência editorial dos moços de O Debate era reforçada pela ativa militância do Bloco Acadêmico Castilhista, que passou a estabelecer uma tática de corpo a corpo junto ao eleitorado, especialmente nas regiões de imigração ítalo-germânica, onde grassavam as insatisfações contra Borges, por causa das elevações do imposto territorial cobrado sobre as pequenas propriedades dos colonos.

Com o mapa do Rio Grande do Sul sobre a mesa, seus membros fatiaram o estado em regiões estratégicas, seguindo os passos de Abbott, que peregrinava em contagiante campanha pela zona colonial. Deliberaram então que as principais cidades receberiam caravanas cívicas, com o intuito de neutralizar a mensagem de Abbott e de multiplicar tanto o alcance do discurso oficial quanto da candidatura de Barbosa Gonçalves. Getúlio foi escalado para comandar algumas dessas ações pelo interior rio-grandense, tendo então discursado em praças públicas de diversos municípios, o que sem dúvida lhe serviu como mais uma fonte de aprendizado político.91 Todavia, uma folha de oposição, o Petit Journal — que rivalizava com O Debate em irreverência e panfletarismo —, tentou minimizar o alcance das tais excursões dos jovens republicanos. Na coluna assinada por um corrosivo “Periquito”, lia-se a seguinte verrina, atribuindo aos redatores antagonistas, além de uma linguagem em forma de tatibitate infantil, uma atitude interesseira:

O Centro Republicano fez ontem entrega de vários mimos aos bambinos que andaram em excursão política pelo interior, pregando a candidatura do dr. Barbosa Gonçalves. Tornou-se comunicativa a alegria da petizada ao receber bolas de borracha, cordas, chocalhos, caixas de soldadinhos, apitos etc. Um propagandista destoou do concerto das risadas da gurizada, emburrando-se todo e dizendo:

“Isso não quélo. Quelia uma plomotolia que foi o que me prometeram.”

“Depois, benzinho. Quando sair da Escola ganhará uma promotoria. Todos os abnegados, assim, hão de ter uma.”92

Em novembro de 1907, apurados os votos, declarada a vitória do candidato da situação por 61 mil sufrágios contra os 16 mil conseguidos pela oposição, o líder Borges de Medeiros tapou os ouvidos para as costumeiras acusações de fraude e logo tratou de distribuir benesses aos que haviam se engajado na campanha.93 Getúlio, que estava prestes a receber o diploma de bacharel em Direito, teve garantida a sua parte no quinhão. Caberia a ele, exatamente, a segunda promotoria de Porto Alegre. Numa época em que o Ministério Público riograndense atuava como filial do palácio do governo, um cargo como aquele significava uma porta escancarada para o devido ingresso nos salões do poder.94

Getúlio, aos 25 anos, saberia transpô-la com singular desenvoltura.

Notas

1. A Federação, 3 de novembro de 1903.
2. Sérgio da Costa Franco. Júlio de Castilhos e sua época, p. 172.
3. Sérgio da Costa Franco. Júlio de Castilhos e sua época, pp. 172-3.
4. Gustavo Moritz, “História política de Porto Alegre”. Em Porto Alegre, biografia de uma cidade, p. 172.
5. A Federação, 3 de novembro de 1903.
6. A íntegra do discurso de Getúlio está em Parlamentares gaúchos: Getúlio Vargas, organizado por Gunter Axt e Carmen Aita, pp. 67-8. A presença de Júlio de Castilhos na solenidade foi informada pelo jornal A Federação.
7. Gunter Axt, “A emergência da liderança política de Getúlio Vargas no Rio Grande do Sul coronelista e o seu governo no estado. Em Reflexões sobre a Era Vargas, p. 41. 8. Flores da Cunha, A campanha de 1923.
9. Para um perfil do sucessor de Castilhos, ver Sandra Jatahy Pesavento, Borges de Medeiros.
10. Gunter Axt, Gênese do Estado moderno no Rio Grande do Sul (1889-1929), p. 94.
11. Auguste Comte. “Catecismo positivista”. Em Os pensadores, p. 230.
12. Gunter Axt, “Apontamentos sobre o sistema castilhista-borgista”. Em: Júlio de Castilhos e o paradoxo republicano, pp. 115-32.
13. Barros Vidal, Um destino a serviço do Brasil, p. 50.
14. João Neves da Fontoura. Memórias, vol. 1, p. 84.
15. Gunter Axt, Gênese do Estado moderno no Rio Grande do Sul (1889-1929), p. 95.
16. Getúlio Vargas, com pseudônimo de Adherbal. “D’après nature”. Revista Acadêmica, órgão da Federação dos Estudantes do Rio Grande do Sul, no 2, novembro de 1907.
17. A frase é citada por Alzira Vargas do Amaral Peixoto em Getúlio, meu pai, p.14.
18. O Diário Oficial da União de 05/10/1936 traz portaria concedendo pensão a Alzira Prestes Soares, viúva de Alfredo de Carvalho Soares. Em carta a Getúlio, João Neves da Fontoura, datada de 1915, informa sobre o casamento da “Dama de Vermelho” e lhe revela o nome. Arquivo cpdoc-fgv (Documento gv.1915.01.00).
19. Conforme tradução de Jamil Almansur Haddad para As flores do mal.
20. Carta de Maurício Cardoso a Getúlio Vargas, 9 de julho de 1910. Arquivo cpdoc-fgv (Documento gv.1910.06.09).
21. Alzira Vargas do Amaral Peixoto, Getúlio, meu pai, p.13. No original, está “Dom João”, em vez de “Don Juan”.
22. André Carrazoni, Getúlio Vargas, p. 54.
23. Olides Canton, Getúlio Vargas: Depoimentos de um filho, p. 32.
24. O Debate, 11 de julho de 1907.
25. Olides Canton, Getúlio Vargas: Depoimentos de um filho, p. 31.
26. Domingos Meirelles, 1930: Os órfãos da Revolução, p. 235.
27. Paul Frischauer, Presidente Vargas, 87.
28. André Carrazoni, Getúlio Vargas, p. 63.
29. Décio Freitas, em Getúlio Vargas, a serpente e o dragão: Dissertações acadêmicas, p. 12.
30. Eduardo Victorino, Actores e actrizes, pp. 62-4. Citado por Fernando Jorge, Getúlio Vargas e o seu tempo, vol. 2, p. 131.
31. Paul Frischauer, Presidente Vargas, p; 106.
32. Décio Freitas, em Getúlio Vargas, a serpente e o dragão: Dissertações acadêmicas, p. 10.
33. Prova de Economia do aluno Getúlio Vargas. Arquivo da Faculdade de Direito de Porto Alegre.
34. Idem.
35. Pedro Cezar Dutra Fonseca, Vargas: O capitalismo em construção, p. 54.
36. Pantum, no 2, setembro de 1906.
37. João Neves da Fontoura, Memórias, vol. 1, pp. 63-6.
38. João Neves da Fontoura, Memórias, vol. 1, pp. 40-4.
39. Paul Frischauer, Presidente Vargas, p. 92.
40. Paul Frischauer, Presidente Vargas, pp. 87-8.
41. Alzira Vargas do Amaral Peixoto, Getúlio, meu pai, p. 4.
42. O Debate, 11 de julho de 1907.
43. Paul Frischauer, Presidente Vargas, p. 90.
44. Entrevista de Espártaco Vargas a Celina Vargas do Amaral Peixoto. Datilografada. Arquivo cpdoc-fgv.
45. Paul Frischauer, Presidente Vargas, p. 88.
46. As provas, relatórios de frequência e certificados acadêmicos de Getúlio Vargas estão preservados — e devidamente digitalizados — no arquivo da Faculdade de Direito de Porto Alegre.
47. Ofício do Centro Acadêmico ao diretor da Faculdade de Direito, 13 de agosto de 1906. Arquivo da Faculdade de Direito de Porto Alegre.
48. Charles Monteiro, Porto Alegre e suas escritas, p. 50. Para uma história do Correio do Povo do ponto de vista dos proprietários, ver Breno Caldas, Meio século de Correio do Povo.
49. Correio do Povo, 12 de agosto de 1906.
50. Firmino Paim Filho, “A vida acadêmica de Getúlio Vargas”. O Malho, edição especial de 1943, comemorativa ao aniversário de Getúlio, p. 103.
51. João Neves da Fontoura, Memórias, vol. 1, p. 41.
52. Paul Frischauer, Presidente Vargas, p. 47.
53. Carlos Chagas, O Brasil sem retoques: 1808-1964. A história contada por jornais e jornalistas, vol. 1, p. 229.
54. Infelizmente, não há nenhuma biografia de Pinheiro Machado à altura do personagem. Para um panegírico de Pinheiro, ver Ciro Silva, Pinheiro Machado. Outras fontes de informação são Costa Porto, Pinheiro Machado e seu tempo; Newton Alvim, no volume dedicado ao senador na coleção “Rio Grande Político”, do Instituto Estadual do Livro (rs); e Cid Pinheiro Cabral, O senador de ferro.
55. Jornal do Commercio, 28 de maio de 1905.
56. Para as articulações políticas de Pinheiro Machado nos bastidores da República Velha, ver Raymundo Faoro, Os donos do poder, pp. 651-75.
57. Isabel Lustosa, Histórias de presidentes: A República do Catete, p. 50. Para uma biografia de Afonso Pena, ver Américo Jacobina Lacombe, Afonso Pena e sua época.
58. Barros Vidal, Um destino a serviço do Brasil, pp. 173-83.
59. Correio do Povo, 16 de agosto de 1906.
60. A reconstituição do discurso foi publicada à época pela Gazeta do Comércio em 17 de agosto de 1906.
61. João Neves da Fontoura, Memórias, vol. 1, p. 82.
62. Mensagem à Assembleia dos Representantes do Rio Grande do Sul pelo presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros em 20 de setembro de 1903, p. 36.
63. Barros Vidal, Um destino a serviço do Brasil, p. 86.
64. João Neves da Fontoura, Memórias, vol. 1, pp. 78-9.
65. Silvio Romero, “O castilhismo no Rio Grande do Sul”, em A filosofia política positivista, vol. 2, p. 73.
66. Paul Frischauer, Presidente Vargas, p. 118.
67. Petit Journal, 12 de julho de 1907.
68. A Federação, 27 de abril de 1907.
69. Para a análise do papel do Bloco Acadêmico Castilhista, ver Silvana Bertol, Quem faz caso de estudantes?: Um estudo da participação do Bloco Acadêmico Castilhista, e Luiz Alberto Grijó, Origens sociais, estratégias de ascensão e recursos dos componentes da chamada “Geração de 1907”.
70. John W. F. Dulles, Getúlio Vargas, biografia política, p. 26. A frase de Getúlio está em Paul Frischauer, Presidente Vargas, p. 118.
71. Os crimes da ditadura, de Rafael Cabeda e Rodolpho Costa, foi reeditado em 2002 pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, com o subtítulo A história contada pelo dragão. Um perfil biográfico de Cabeda foi escrito por Ivo Caggiani, Rafael Cabeda: símbolo do federalismo.
72. Para a descrição física do tribuno, ver o prólogo de Assis Brasil para o volume Discursos parlamentares, de Pedro Moacyr.
73. João Neves da Fontoura, Memórias, vol. 1, p. 84.
74. Idem.
75. Paul Frischauer, Presidente Vargas, pp. 115-6.
76. Alzira Vargas, Getúlio Vargas, meu pai, p. 9.
77. O Debate, 7 de agosto de 1907.
78. O Debate, 17 de agosto de 1907.
79. Para um perfil laudatório de Carlos Barbosa Gonçalves, ver Walter Spalding, Construtores do Rio Grande, vol. 3, pp. 153-60.
80. O Debate, 10 de setembro de 1907.
81. Barros Vidal, Um destino a serviço do Brasil, p. 112.
82. Barros Vidal, Um destino a serviço do Brasil, p. 88.
83. Silvio Romero, “O castilhismo no Rio Grande do Sul”. Em A filosofia política positivista, vol. 2, p. 85.
84. O Debate, 6 de junho de 1907.
85. Petit Journal, 12 de novembro de 1907.
86. O Debate, 13 de junho de 1907.
87. O Debate, 15 de junho de 1907.
88. O Debate, 22 de junho de 1907.
89. O Debate, 7 de julho de 1907.
90. O Debate, 11 de julho de 1907.
91. Paul Frischauer, Presidente Vargas, p. 110.
92. Petit Journal, 12 de novembro de 1907.
93. A Federação, 29 de novembro de 1907.
94. Sobre a subordinação da promotoria pública aos desígnios do governo estadual gaúcho à época, ver Gunter Axt, O ministério público no Rio Grande do Sul, pp.

Texto de Lira Neto em "Getúlio 1882-1930", Companhia das Letras, São Paulo, 2012, excertos capítulo 4 pp.78-102. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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