6.03.2017

HISTÓRIA DA CARNE SECA NO BRASIL



As mais antigas referências do uso da carne bovina desidratada no Brasil remontam ao século XVII: "... salgam as carnes, cortam-se em pedaços bastante largos, mas pouco espessos, quando muito dois dedos de espessura, se tanto. Quando estão bem salgadas, tiram-nas sem lavar, pondo-as a secar ao sol; quando bem secas, podem conservar-se por muito tempo, sem se estragar, contudo que fiquem secas, porque se molham e se não são expostas logo a secar ao Sol, corrompem-se e enchem-se de vermes..."; ou ainda, já no século XIX: "... a carne cortada em tiras estreitas, esfregadas com sal e seca ao Sol, é um importante artigo de comércio dos portos de São Paulo e Rio Grande do Sul para os portos do Norte, sobretudo para o Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Maranhão, onde, com o nome de carne seca do sertão, paçoca ou carne charqueada, constitui uma parte principal da alimentação de todo o povo brasileiro..." (Cascudo, 1983).

Não haverá na cozinha nacional uma presença mais marcante, diária. Carne seca, de sol, charque, de vento ou do sertão, do Ceará, jabá, carne de gado salgada, exposta ao Sol e ao vento brando, com alguma duração. Charque é termo quíchua, "xarqui", valendo carne seca. "Jerk", derivado do francês "charqui", é verbo transitivo em língua inglesa, definindo o ato de cortar a carne em fatias ou tiras secando-as ao Sol ("to jerk beef"). É a origem do substantivo "jerked meat" (Webster, 1951). Charque era a denominação da carne vinda do Sul, correspondendo à carne bovina, salgada, seca.

A carne utilizada para sua preparação tradicional seria predominantemente a ponta de agulha desossada, salgada e posteriormente seca ao sol. Não pode ser desconsiderada a produção a partir de quartos dianteiros e traseiros desossados e manteados, consistindo a manteação na redução da espessura das peças, para facilitar a penetração do sal e posterior secagem ao Sol. (Picchi & Cia, 1980).

O preparo da carne desidratada bovina é um conhecimento largamente utilizado para a conservação de proteína animal no Brasil. Estima-se que aproximadamente 13% da produção de carne nacional é desidratada. A remoção da água se dá com o uso do sal, pela alteração da pressão osmótica; o sol se encarrega de encerrar o processo de secagem.

Acredita-se que a utilização da carne seca como alimento deve remontar aos tempos pré-históricos e que este hábito tenha surgido a partir da carne dessecada pela ação do fogo e não pelo efeito dos raios solares. O uso do sal para a desidratação de alimentos parece ter sido empregado inicialmente em peixes, e só posteriormente com as carnes. Além da desidratação prevenir o desenvolvimento microbiano, ela também desempenha outras funções:

- Preserva o produto das alterações deletérias químicas e físicas induzidas pelo excesso de umidade;
- Reduz os custos de envase, estocagem e transporte;
- Prover conveniência e ganho de tempo aos consumidores;
- Eleva a concentração de açúcar, sais orgânicos, proteínas e demais componentes do alimento, o que também reduz a atividade de água e aumenta sobremaneira a ação conservante.

Tecnologia do Jerked Beef 

A tecnificação industrial, aliada à necessidade de adequação aos novos mercados consumidores, orientou técnicos e pesquisadores ao desenvolvimento de novos produtos. Desta forma, o "jerked beef" se apresenta hoje como um dos últimos ramos desta extensa árvore genealógica da desidratação da carne. Passos importantes na diferenciação do "jerked beef" em relação aos demais integrantes desta "família", dizem respeito ao uso de nitrato e nitrito de sódio, desossa e salga em salas climatizadas. Da mesma forma que para o charque, sugere-se o envase a vácuo. O nitrito, além de promover uma coloração agradabilíssima ao "jerked beef", torna-se indispensável fator de segurança alimentar, considerando-se as novas condições de embalagem.

De forma genérica, podemos afirmar que a preparação do "jerked beef" se inicia com a retirada da paleta do restante do quarto dianteiro. Serão utilizados na produção tanto o acém quanto a paleta. Por outro lado não devemos descartar a utilização de peças de coxão duro e lagarto, entre outras do quarto posterior. A ponta de agulha pode ser igualmente aproveitada. A penetração de parte do sal ( e do total de nitrito de sódio) se dará por injeção de salmoura diretamente nas peças, ou por agitação com o uso de "tumblers". A espessura dos cortes de carne, deste modo, passará a ter influência reduzida no processo de preparação. A carne já desossada é encaminhada para a injeção de salmoura. O equipamento para este propósito pode ser a injetora automática ou manual. A injeção garante a introdução da salmoura (cloreto de sódio e nitrito de sódio em solução) na intimidade das peças. Com a injeção automática padroniza-se a distribuição da salmoura. O "tumbler" é utilizado com o mesmo propósito, sendo o processo desta forma descontínuo. Segue-se a salga seca, estendendo as peças de carne (sem dobras) sobre um piso recoberto com uma camada de sal grosso.

Várias camadas superpostas de carne e sal formam as chamadas pilhas de salga. Esta primeira salga dura 24 ou 48 horas, de acordo com os diferentes critérios estabelecidos entre as indústrias. A segunda salga (ressalga) é executada de modo semelhante à etapa anterior, invertendo-se a pilha, verificando também se todas as mantas apresentam-se uniformemente à ação do sal. Com a inversão da pilha, a pressão sobre as peças também é uniformizada. Estas operações são realizadas com pessoal munidos de ganchos, para a inversão, e outros com pás, para a distribuição do sal.

Vinte e quatro horas após a segunda salga, a pilha retorna à sua primeira posição com nova adição de sal, se necessário. Esta nova disposição se denomina "pilha de volta". Tem a duração aproximada de 24 horas, consistindo na última operação de salga.

A etapa seguinte consiste na movimentação constante da carne a cada 24 horas, formando novas pilhas, sempre invertidas. Várias operações seguidas caracterizam essa etapa, chamada de tombagem. Garante-se com a tombagem a uniformização da concentração de sal. A tombagem colabora também - ao permitir a visualização das colônias bacterianas - na prevenção do aparecimento do "vermelho do charque", causado pelos micro-organismos do gênero halabacterium. São halófitas extremas, solicitando cerca de 15% de sal para seu desenvolvimento (Banwart, 1989). São encontradas basicamente no sal marinho, atingindo as peças e produzindo um pigmento vermelho, a bacteriorubeína.

Ao término da tombagem, a carne é lavada em água clorada (0,5 mg de hipoclorito de sódio por litro de água). Com esta lavagem é retirado o excesso de sal na superfície, proporcionando desinfecção superficial. Em seguida, as peças são dispostas em varais para a secagem ao Sol ou protegidas de condições climáticas adversas em locais apropriados (chamados de "pedras") cobertos com lona. A secagem é a etapa final da preparação do "Jerked beef". É executada ao sol em varais dispostos paralelamente, formando as chamadas ruas, voltadas no sentido norte sul. Embora na maioria das instalações predomine os varais de madeira, as indústrias mais modernas já estão equipadas com varais de aço inox, com os montantes em PVC e concreto, o que facilita a higienização.

Para uma desidratação uniforme nos varais, é interessante observar que o odor deve ser brando, evitando-se uma secagem apenas superficial característica obtida com o calor excessivo. As propriedades sensoriais - principalmente odor e sabor - que caracterizam o "Jerked Beef" são obtidos nesta etapa do processamento. Após 3 a 5 dias com exposição diária ao Sol, a carne já deve estar pronta para consumo, com propriedades sensoriais e atividade de água adequadas. O produto é então embalado a vácuo. Devido a esta característica de envase, torna-se importante a ação do nitrito residual também colaborando - em conjunto com a baixa atividade de água - como conservante, ao impedir que o micro-organismo C. botulinum, anaeróbio, se multiplique e produza a toxina botulínica.

Importantíssimo fator para a manutenção da qualidade do produto final é o estabelecimento dos valores de Aa requeridos ao final do processamento. A atividade de água mínima para a maioria das bactérias é de 0,90 a 0,91, exceto para as bactérias halotolerantes (Aa 0,75) e para o Staphylococcus aureus (Aa 0,83 a 0,92). Por esta razão, este último micro-organismo deve receber monitoramento especial, entre os demais controles microbiológicos, por ser o mesmo capaz de produzir toxinas no produto. Com relação ainda ao envase a vácuo, ocorre que a produção de toxinas pelo S. aureus em anaerobiose exige Aa mais elevada que em aerobiose.

Salienta-se, contudo, que a umidade centesimal não deve ser empregada unicamente como critério de estabilidade deste produto tão consumido e apreciado pelos brasileiros, pois esta avaliação não considera a determinação da atividade de água.

Texto de Vasco Picchi e Ari Vizental publicado em junho de 1994. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.



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