6.08.2017

ORDEM E PROGRESSO


Proclamada a República, uma das primeiras providências do novo regime foi redesenhar parte da geografia brasileira. Estradas, ruas, praças, escolas, repartições públicas e até cidades inteiras tiveram suas denominações alteradas para homenagear os heróis republicanos. Estátuas, obeliscos, chafarizes e outros monumentos foram construídos em ritmo frenético para celebrar o acontecimento. No Rio de Janeiro, ao todo 46 logradouros mudaram de nome. As ruas da Constituição e do Imperador passaram a ser chamadas oficialmente como do Governo Provisório e do Exército Libertador. A praça Dom Pedro ii, o largo da Imperatriz e a rua da Princesa tornaram-se, respectivamente, praça do Marechal Deodoro, praça Quintino Bocaiúva e rua Rui Barbosa. Até mesmo vias de nomes singelos e poéticos, tão peculiares na época da colonização portuguesa, foram vítimas da síndrome rebatizatória do governo. A rua da Misericórdia virou rua do Batalhão Acadêmico. O Beco das Cancelas foi reclassificado como travessa e passou a ostentar o nome do dr. Vicente de Sousa, um dos líderes civis da revolução hoje menos lembrado.

Iniciativas semelhantes foram adotadas na maioria das cidades, que ainda hoje exibem no seu mapa os nomes de personalidades republicanas, como Floriano Peixoto, Silva Jardim e Benjamin Constant. Há casos curiosos, como o da principal via de comércio de Petrópolis, Rio de Janeiro, denominada rua do Imperador até 1889, ano em que teve seu nome alterado para avenida Quinze de Novembro, em homenagem à data da Proclamação da República, mas voltou a se chamar do Imperador noventa anos mais tarde, em 1979, por decisão da Câmara Municipal, como forma de agradar aos turistas que buscam na cidade serrana os últimos e maltratados vestígios do Império brasileiro.

O objetivo dessas medidas não era apenas exaltar a República. Tratava-se, principalmente, de eliminar o mais rapidamente da paisagem os vestígios da Monarquia. Um decreto do governo provisório suprimiu de imediato a denominação “imperial” de todos os estabelecimentos ligados ao Ministério do Interior. Desse modo, o venerando Imperial Colégio Dom Pedro ii, fundado em 1837, passou a chamar-se Instituto Nacional de Instrução Secundária e, em seguida, Ginásio Nacional. Só em 1911 voltaria a ter sua designação original. O Arquivo Público do Império virou Arquivo Público Nacional, enquanto a ferrovia Dom Pedro ii tornou-se Estrada de Ferro Central do Brasil.[342]

O esforço incluiu ainda a criação de datas cívicas, a mudança da bandeira, uma tentativa fracassada de alterar o próprio hino nacional e até a adoção de novo tratamento dispensado às autoridades. Por lei, “Saúde e Fraternidade”, divisa emprestada da maçonaria e usada na Revolução Francesa, converteu-se em saudação obrigatória no Brasil republicano. Na correspondência oficial adotou-se o tratamento de “Cidadão” em lugar do mais cerimonioso “Vossa Excelência” dos tempos do Império. Assim, ofícios e despachos do governo passaram a trazer expressões como “Cidadão Presidente”, “Cidadão Ministro” e “Cidadão General”.

Ao mudar o protocolo oficial, erguer monumentos, criar datas cívicas e rebatizar ruas, praças e instituições com os nomes de novos heróis nacionais, o regime procurava, na verdade, conquistar corações e mentes dos brasileiros até então arredios ou apáticos diante da Proclamação da República. No fundo, buscava-se dar uma nova identidade ao país, descolada de seu passado monárquico, projeto que acabaria por alterar o próprio ensino de história do Brasil e teria grande impacto nos livros didáticos, no jornalismo, na literatura, no teatro, na pintura e em outras formas de arte. “Heróis são símbolos poderosos, encarnações de ideias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação”, escreveu o mineiro José Murilo de Carvalho, autor de A formação das almas, excelente estudo sobre a construção do imaginário republicano no Brasil. “São, por isso, instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes políticos.”[343]

Um caso de particular interesse, analisado em profundidade por José Murilo de Carvalho, envolve a figura de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Até a Proclamação da República, o mártir da Inconfidência Mineira ocupava um papel dúbio e secundário na galeria dos heróis nacionais. Embora fosse um precursor do movimento pela Independência, esse papel o colocava na condição de concorrente de um herói mais ao gosto da Monarquia, o imperador Pedro i, protagonista do Grito do Ipiranga em 1822. Além disso, participara de uma conspiração republicana contra a Monarquia portuguesa, da qual o Império brasileiro havia herdado suas raízes e principais características. Sua sentença de morte na forca, em 1792, fora assinada por ninguém menos que a bisavó do imperador Pedro ii, a rainha dona Maria i, também conhecida como “a rainha louca”.

Por essas razões, Tiradentes havia passado quase um século em relativa obscuridade na história oficial brasileira. Com exceção de iniciativas isoladas, ninguém no Brasil imperial tinha muito interesse em promovê-lo a símbolo das aspirações nacionais. A partir de 1889, ele renasceu das cinzas na condição de herói republicano. Nos anos seguintes, sua imagem seria usada de forma habilidosa para promover o novo regime. A primeira comemoração oficial do seu martírio aconteceu no Rio de Janeiro no dia 21 de abril de 1890, cumprindo-se um decreto que transformava a data em feriado nacional junto com o Quinze de Novembro. Os artistas contribuíram para o sucesso da construção do novo mito associando a iconografia de Tiradentes à de Jesus Cristo — apelo poderoso em um país de forte tradição católica. Em quadros e reproduções da época, o mártir da Inconfidência aparece de barbas e cabelos compridos, ar sereno, vestindo uma túnica branca, sob a estrutura da forca que lembra a cruz no Calvário. Desfiles comemorativos da Inconfidência remetiam à encenação da Via-Sacra, na Sexta-Feira da Paixão. Um artigo publicado no jornal O Paiz em 21 de abril de 1891 se referia à “vaporosa e diáfana figura do mártir da Inconfidência, pálida e aureolada, serena e doce como a de Jesus Nazareno”.[344]

Símbolos máximos do novo regime, o hino e a bandeira nacionais consumiram longas horas de discussões. Nos anos finais do Império, o antigo hino nacional brasileiro, com música de Francisco Manuel da Silva, era considerado monárquico e decadente pelos republicanos. Sua letra estava em desuso havia muito tempo. Por essa razão, até 1889 os adversários da Monarquia costumavam cantar em passeatas e reuniões a Marselhesa, marcha celebrizada pela Revolução Francesa e depois adotada oficialmente como hino nacional da França. Em 1888, o jovem poeta e jornalista José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque (aquele mensageiro, citado na abertura do segundo capítulo deste livro, encarregado de avisar os republicanos paulistas sobre a conspiração no Rio de Janeiro) publicou na revista O Mequetrefe, do Rio de Janeiro, a letra do que ele propunha ser o futuro Hino da República Federal Brasileira, com o seguinte estribilho:
Liberdade! Liberdade!

Abre as asas sobre nós.
Das lutas, na tempestade,
Dá que ouçamos tua voz!

Feita a Proclamação da República, o ministro do Interior, Aristides Lobo, iniciou uma campanha para que a letra de Medeiros e Albuquerque, seu amigo e correligionário, fosse, de fato, adotada como novo Hino Nacional. Faltava só compor a música, para a qual abriu-se um concurso público por decreto de 22 de novembro de 1889. Um acontecimento inesperado, porém, colocou por terra os planos do ministro e restaurou de imediato a glória perdida do antigo Hino Nacional. No dia 15 de janeiro de 1890, quando a República celebrava seu segundo mês de existência, a Marinha promoveu um desfile pelo centro do Rio de Janeiro. Ao final foi servido um lanche no Palácio do Itamaraty, com a presença de Deodoro, na ocasião aclamado “generalíssimo”, ou seja, chefe absoluto das Forças Armadas nacionais. Como era de costume em celebrações republicanas, uma banda militar começou a tocar a Marselhesa. O povo, que a tudo assistia da rua, reagiu mal aos acordes da marcha francesa e começou a pedir aos gritos:

O Hino Nacional! O Hino Nacional!

Preocupados, os organizadores da festa foram consultar Deodoro, que, percebendo o desconforto da multidão, ordenou que a banda executasse o velho hino dos tempos do Império. A emoção tomou conta de todos os presentes, que reconheciam naqueles acordes a lembrança de tantas vitórias épicas como a Independência, o fim da Guerra do Paraguai e a Abolição da Escravatura. Contaminado pelo entusiasmo popular, o marechal determinou que as bandas militares percorressem o centro da cidade tocando o até então desprezado hino.

O episódio, no entanto, deixava o governo provisório com um problema adicional: o que fazer com o concurso anunciado pelo Ministério do Interior para a escolha do novo hino nacional republicano? Para não desagradar aos compositores já inscritos, decidiu-se levá-lo adiante, mas também dessa vez a voz do povo atrapalhou os planos oficiais. Na audição pública do concurso, realizada no dia 20 de janeiro no Teatro Lírico, Deodoro avaliou pacientemente todas as composições candidatas, algumas de qualidade sofrível mesmo para ouvidos mais habituados ao ruído das casernas do que à música dos salões. No final, antes que o vencedor fosse anunciado, algumas vozes na plateia começaram a pedir novamente:

— O hino antigo! O hino antigo!

O maestro que regia a cerimônia lançou um olhar interrogativo para o marechal, que, uma vez mais, aprovou o pedido:

— Toque o velho! Faça-lhes a vontade...

Foi o que bastou para o teatro vir abaixo. Diante das inequívocas demonstrações de júbilo, ali mesmo, na frente do povo, foi lavrado o decreto de número 171, que mantinha a composição de Francisco Manuel da Silva como Hino Nacional Brasileiro. A ela seria acrescentada depois apenas uma nova letra, de autoria de Joaquim Osório Duque-Estrada. “A impressão que a composição de Francisco Manuel produziu no nosso público não se descreve”, relatou um repórter do jornal O Paiz. “Foi um delírio!”[345] Como prêmio de consolo, a composição de Medeiros e Albuquerque, agora com música do maestro Leopoldo Miguez, foi adotada como hino oficial da Proclamação da República.[346]

Tão polêmicas quanto a decisão sobre o Hino Nacional foram as discussões envolvendo a nova bandeira republicana, estabelecida pelo decreto de número 4, de 19 de novembro de 1889 — data hoje celebrada nas escolas como o Dia da Bandeira. Idealizado pelo pintor francês Jean-Baptiste Debret, o estandarte nacional da época do Império tinha o fundo verde sobreposto por um grande losango amarelo, no centro do qual apareciam o brasão e a coroa imperiais emoldurados por ramos de café e tabaco. Na tarde de 15 de novembro de 1889, como ainda não houvesse uma bandeira nacional republicana, vereadores e intelectuais utilizaram o símbolo do Clube Republicano Lopes Trovão na improvisada cerimônia de Proclamação da República organizada por José do Patrocínio na Câmara Municipal. Era uma imitação da bandeira dos Estados Unidos com cores diferentes. Uma bandeira também de estilo americano foi hasteada a bordo do navio Alagoas, que levou a família imperial para o exílio. Esses dois estandartes refletiam o fascínio que a jovem e dinâmica República da América do Norte exercia sobre os brasileiros na época. Isso se podia comprovar também no próprio nome do país adotado pelo governo provisório: República Federativa dos Estados Unidos do Brasil.

Essas referências aos Estados Unidos desagradavam, no entanto, a parte dos militares mais nacionalistas e, em especial, os adeptos do Apostolado Positivista, cujo líder, Teixeira Mendes, dizia tratar-se de “uma imitação servil” dos símbolos de outra nação. Os positivistas afirmavam que o Brasil republicano deveria adotar sua própria bandeira e encomendaram um modelo ao pintor Décio Villares, imediatamente aceito pelo marechal Deodoro por sugestão de Benjamin Constant. Nele, mantinham-se o desenho e as cores originais da bandeira do Império, substituindo-se apenas a coroa por um círculo azul com as estrelas que representariam o céu do Rio de Janeiro na manhã de 15 de novembro de 1889. “As cores da nossa antiga bandeira recordam as lutas e as vitórias gloriosas do Exército e da armada na defesa da pátria”, justificava o decreto do governo provisório. “Essas cores, independentemente da forma de governo, simbolizam a perpetuidade e integridade da pátria entre as outras nações.”

A nova bandeira provocou grande controvérsia por duas razões. A primeira foi a posição das estrelas. Um especialista consultado em Paris pelo correspondente do jornal Gazeta de Notícias explicou que a dimensão do Cruzeiro do Sul estava exagerada, e o eixo da constelação em relação ao polo sul invertido. Alguns críticos diziam, de forma sarcástica, que, tendo derrubado a Monarquia, o governo provisório queria levar a revolução também aos céus e mudar a astronomia.[347] O erro foi, de fato, comprovado mais tarde, resultando em nova versão da bandeira, utilizada até hoje.

Uma segunda polêmica envolveu a divisa “Ordem e Progresso”, colocada no centro da esfera azul. O bispo do Rio de Janeiro se recusou a abençoar a nova bandeira alegando que ela continha apologia de uma seita divergente da religião católica. De fato, a expressão resumia a doutrina do francês Auguste Comte e adotada como lema pelos fiéis da Igreja positivista: “O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”. Apesar da forte oposição, a divisa foi mantida na bandeira graças ao apoio de Benjamin Constant, um admirador de Comte. Do lema original, no entanto, eliminou-se o amor, preferindo-se reforçar a ideia de ordem e progresso, conceitos que os republicanos julgavam mais urgentes naquela nova fase da vida nacional. A despeito da ênfase na bandeira, porém, os primeiros passos da República seriam de pouca ordem, minguado progresso — e, definitivamente, nenhum amor. É o que se verá nos capítulos seguintes.

Notas

[341] Elmar Bones, A espada de Floriano, p. 130.
[342] Para uma lista da mudança de nomenclaturas de lugares e instituições no Rio de Janeiro republicano, ver Renato Lemos, Benjamin Constant: vida e história, pp. 442 e seguintes.
[343] José Murilo de Carvalho, A formação das almas, p. 55.
[344] Ibidem, pp. 55-73.
[345] Ibidem, p. 127.
[346] Raimundo Magalhães Júnior, Deodoro: a espada contra o Império, pp. 133-139.
[347] José Murilo de Carvalho, A formação das almas, p. 114.

Texto de Laurentino Gomes em "1889",Editora Globo S.A. São Paulo, 2013, cap.19. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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