6.08.2017

OS RITOS AFRICANOS NO BRASIL

"Dança do Lundu" por Rugendas
A repressão acompanhou todas as manifestações do negro, inclusive aquelas de ordem cultural. Sacrifícios de animais, danças seguidas de transe, batuques lascivos e umbigadas fugiam inteiramente aos padrões de comportamento do homem branco; assim, eram sumariamente classificados como feitiçaria e, portanto, proibidos. Apesar disso, a cultura negra conseguiu sobreviver, principalmente nas cidades, onde a grande concentração de escravos permitia-lhes reunir-se em grupos de uma mesma nação para dançar, cantar e praticar seus rituais religiosos.

A mescla de culturas

Longe de sua terra natal, os africanos estavam submetidos a uma realidade estranha e hostil. Livres na África, escravos no Novo Mundo, sua organização familiar — base da vida tribal — desarticulou-se inteiramente. Seu rico panteísmo religioso foi substituído pela religião dominante, o catolicismo. Ante essas transformações, era natural que sua cultura também se modificasse, adaptando-se ao novo meio geográfico e social.

Relutantemente a princípio, o catolicismo acabou sendo aceito pelos escravos, até porque os senhores os obrigavam a converter-se e a seguir o ritual da Igreja. Mesmo os grupos que repudiavam a religião dos brancos, identificada com a opressão do sistema escravista, não conseguiam manter intatos seus velhos rituais; inconscientemente acabavam incorporando certos conceitos católicos, aos quais se misturavam crenças indígenas e mitologias de outras tribos africanas.

Para a maior parte dos negros, no entanto, abraçar o catolicismo equivalia a igualar-se, de certo modo, ao branco, tomando-se “seu irmão” diante de Deus. Os negros verdadeiramente convertidos logo se reuniram em irmandades e construíram suas próprias igrejas, muitas vezes recorrendo a arquitetos renomados como Antônio Calheiros, que projetou a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Vila Rica (atual Ouro Preto). Imitando o exemplo de seus senhores, tratavam de adornar seus templos com uma profusão de talhas, que nem sempre conseguiam dourar inteiramente — é o caso da Igreja de Santa Ifigênia, também em Vila Rica, cuja decoração ficou até hoje incompleta.

Em tomo das irmandades desenvolveu-se um novo tipo de atividade social, afastando o negro de suas origens e tomando-o tão intransigente quanto o branco que o oprimia; as confrarias de negros, por exemplo, não admitiam a presença de mulatos, nem permitiam que pessoas não batizadas frequentassem o culto. No auge do movimento abolicionista, porém, essas irmandades tomariam um novo ramo, passando a formar fundos de ajuda mútua, como as caixas de auxílio para a alforria.

Muitos escravos convertiam-se apenas formalmente, continuando a cultivar seus próprios deuses (orixás), os quais, para burlar a severa vigilância da Igreja e dos brancos, rebatizaram com nomes católicos: Oxalá passou a chamar-se Jesus Cristo; Ogum tomou-se São Jorge; Xangô, São Jerônimo; Iemanjá, a Virgem Maria, e assim por diante. O resultado foi o surgimento das chamadas religiões afro- brasileiras, caracterizadas pelo sincretismo, ou seja, pela mistura de crenças e conceitos católicos e pagãos.

Dessas religiões, a que se manteve mais próxima das tradições africanas é o candomblé, originado entre os iorubas, povo que habitava o território correspondente à atual Nigéria. Ainda hoje praticado, sobretudo na Bahia, o candomblé preserva o sacrifício de animais, considerado bárbaro pela religião católica, e celebra seus ritos em idioma nagô.

No Sul do país esse sincretismo deu origem à macumba, forma que também conserva muito dos ritos ancestrais. Submetida a novas influências durante o século XX, da macumba surgiria a umbanda, incorporando conceitos do catolicismo e do espiritismo kardecista. Ao contrário do. candomblé, a umbanda rejeita o sacrifício de animais; preserva, entretanto, as danças e os transes dos ritos primitivos, identificando os orixás aos santos católicos.

Os rituais profanos

Além das manifestações religiosas, o negro trouxe para o Brasil sua música, sua dança, suas festas. Uma delas é o congo, que reproduz a coroação dos reis africanos, com cantos, bailados e representação teatral. Sua fragmentação deu origem aos maracatus e taieiras, ainda muito comuns, principalmente no Nordeste.

De origem angolano-congolesa, o batuque foi a forma musical africana que maior influência exerceu na música popular brasileira. Dispostos em círculos, grupos de negros executavam passos de dança e sapateados, gingando e marcando o ritmo com palmas e instrumentos de percussão. Uma pessoa ficava no centro da roda, e, após algum tempo, dirigia-se ao grupo e dava uma umbigada, ou semba, em alguém que escolhia para tomar seu lugar no meio do círculo. No curso dos anos, essa dança passou por muitas transformações, no fim das quais surgiu um ritmo que até hoje empolga o Brasil: o samba, cujo nome deriva da velha umbigada (a semba), tantas vezes aplicada com malícia e alegria em terreiros e quintais.

Texto publicado em "Saga - A Grande História do Brasil", Abril Cultural, São Paulo, 1981, editor Victor Civita, vol.4, Império (1840-1889) p.66-67. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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