1.22.2018

O BRASIL COLONIAL VISTO POR FRANCESES



As primeiras impressões deixadas pelos letrados franceses sobre os indígenas brasileiros no século XVI, as de Montaigne de Jean de Léry, foram por assim dizer de admiração. Mesmo o costume da antropofagia, tão comum naquela época, não lhes pareceu tão condenável visto as circunstâncias em que os nativos se encontravam. A imagem idealizada que criaram, especialmente a transmitida por Montaigne, inspirou muitas teses sobre a bondade natural do homem. Com a passagem dos séculos, porém, essa segurança do nativo brasileiro ser um Adão no Paraíso deu lugar a uma outra, bem mais realista, a apresentada pelo etnólogo Claude Lévy-Strauss quando visitou o interior do Brasil nos anos 30 do século XX. Sua percepção pouco indulgente também nos ajudou, pois "os franceses, usando a sua língua, empregando os seus métodos, nos punham dentro do país", como disse o professor Antônio Cândido.

Michel de Montaigne

Montaigne e os Tupinambás 

"Mas, que diabo, essa gente não usa calças."
(Montaigne - Ensaios, 1572-80)

Michel de Montaigne foi o primeiro homem de letras de peso a encontrar um par de índios brasileiros e deixar um belo registro disso. Foi em Ruão, quando uns homens de raça vermelha recém-desembarcaram trazidos do Novo Mundo. Trouxeram-nos afim de serem exibidos ao rei Carlos IX, que posou para os índios, vistos então quase como extraterrestres, como transformado num agradável hospedeiro, fazendo-lhes festas e mostrando-lhes o cotidiano da corte. Tratava-se de um grupo de tupinambás, com tangas e penas, que uns marinheiros bretões arrastaram a bordo como amostra viva e testemunhos das suas viagens. Serviram eles, tupinambás acrescidos de um grupo de tabajaras, como figurantes numa sensacional festa em Ruão, organizada pelos mercadores locais em homenagem a um outro rei, Henrique II, e que contou com a presença da bela Mary Stuart, rainha da Escócia (festa que de tão fabulosa mereceu várias gravuras, aparecidas em 1551).

O Filósofo e o Morubixaba 

Tentou o sábio, com o auxílio de um trôpego intérprete, comunicar-se com eles, relatando esse encontro nos seus Essais (Ensaios I, Capítulo XXXI, Dos Canibais), escrito entre 1572-80. Recordou que uma das coisas que mais espantaram os selvagens recém-chegados é de "que há entre nós gente bem alimentada, gozando das comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados e miseráveis, mendigam à portas dos outros". O que parecia ser o morubixaba, o chefe do grupo, disse que achava extraordinário que "essas metades de homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as casas dos demais."

Esse, presume-se, foi o primeiro diálogo registrado na alta literatura entre um francês e um nativo do Brasil. Montaigne, um tanto antes deste inusitado encontro, fornira-se de informações trazidas por um serviçal seu que, como homem do mar, havia estado um decênio antes na França Antártica.

 Não conheciam fé, lei, nem rei 

O pensador mostrou-se entusiasmado ao saber que nos trópicos desconhecia-se hierarquia, que ninguém tinha a menor idéia do que poderia ser uma autoridade ou um magistrado e que tudo era comum a todos, "pessoas sem fé, sem lei, sem rei", como então diziam deles. Mesmo os atos terríveis que os indígenas cometiam com seus inimigos, as cenas de decapitação e atrozes suplícios, seguida por rituais de canibalismo, que tantos relatos tiveram foram entendidas por Montaigne como uma prova de medição da coragem da vítima. Não diferindo, meditou ele, das que os brancos praticavam entre si. Afinal das contas, disse o pensador, porque horrorizar-se com a antropofagia, que diziam ser atividade comum em todo o Novo Mundo, se ela não se distanciava muito do tétrico costume da Santa Inquisição de mandar queimar vivos os hereges num auto-de-fé. Cerimonial pavoroso que largamente era praticado em praça pública na Espanha e em Portugal, bem ali ao lado da França.

Louvou-lhes "a felicidade de limitar seus desejos ao que exige a satisfação de suas necessidades naturais, tudo o que as excede lhes parecendo supérfluo."

Jean de Léry

O Calvinista Jean de Léry 

Sérgio Buarque de Holanda, por sua vez, encontra em Jean de Léry, um outro francês, como um dos mais preclaros idealizadores do nativo americano. Ao contrário de Montaigne, De Léry chegou a pôr os pés no Brasil. O jovem missionário calvinista aportou na ilha de Villegagnon, na baía da Guanabara, em 1557. Revelou-se autor de um livro estupendo não apenas pela aventura em si, mas pelo detalhado levantamento dos costumes dos nativos, que o qualificaram como o primeiro etnólogo do Brasil. Se atentarmos para a sua descrição indulgente das virtudes físicas e morais dos tupinambás e caraíbas que vivam nas redondezas da baía, registradas na Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil (Viagem à terra do Brasil), observa-se que mesmo quando descreve os horrendos rituais antropofágicos, sua indulgência para com os selvagens é a mesma que encontra-se em Montaigne. Concluiu dizendo que "não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica na sua terra."

O Bom Selvagem 

Revela-se em ambos, o pensador céptico e o missionário protestante, a predisposição dos intelectuais daqueles tempos para encantarem-se com a vida primitiva, da mesma forma que 15 séculos antes deles o historiador romano Tácito exaltava os costumes dos germanos, elogiando-lhes a pureza e a transparência dos seus sentimentos. Havia tal necessidade psicológica entre os europeus ilustrados daquela época em querer dourar tudo o que dizia-se encontrar por aqui que os levou a alimentar por muito tempo a lenda da descoberta do paraíso terreal. Um historiador sueco, Sverder Arnoldsson, num trabalho erudito, verificou que essas descrições, deslumbradas e maravilhadas, seguidas de entusiasmo pela organização dos selvagens, eram muitas vezes copiadas das antigas descrições que o escritor romano Ovídio fizera sobre a Idade do Ouro. Relato que há mais mil e quinhentos anos circulava entre os europeus cultos. Portanto havia por assim dizer uma tradição européia dessas narrativas edênicas, que vinha sendo repetidas desde os tempos da antiga Roma, quiçá até anteriores, todas elas reveladoras do anseio quase que desesperado dos intelectuais em querem encontrar em algum lugar qualquer da Terra uma sociedade feliz.

 Os Índios e a Revolução 

Foi partindo do capítulo de Montaigne que, dois séculos depois dele, Jean-Jacques Rousseau desenvolveu a tão celebrada e polêmica tese do "bom selvagem", defendida no Discours sur les arte et sciences (Discurso sobre as Artes e as Ciências, 1750), que causou furor a partir da sua publicação. Considerando que toda a estrutura cultural conhecida havia apenas servido para corromper e perverter a natureza bondosa do ser humano, o pensador genebrino lançara um repto à sociedade européia: o mundo dito selvagem era superior ao civilizado. O relato de Montaigne igualmente chegou a outros filósofos, como o inglês Locke, que também denunciou as instituições políticas da sua época como inibidoras da felicidade e da realização dos homens. Foram essas apreciações, somadas a tantas outras, que levaram Affonso Arinos de Mello Franco à imaginativa e erudita tese, seguindo as pegadas do francês Waldemar George, que ligara os nativos brasileiros ao ideal rousseauniano, de que fôra o índio tupinambá, com sua aura de homem bom e livre de convenções, apresentando ao mundo culto por Montaigne, o mentor distante, o ícone longínquo e inspirador que terminara por empurrar os acontecimentos rumo à Revolução Francesa de 1789 (O índio brasileiro e a Revolução Francesa, 1937)

Os trópicos são tristes 

Passados quatro século daqueles relatos e das inúmeras fabulações sociais que geraram, o fascínio para com o Novo Mundo desapareceu. Com o passar dos tempos lentamente desfizeram-se as fantasias e os delírios utópicos. A tal ponto que o próprio título do livro de viagens do mais célebre dos etnólogos, o francês Claude Lévy-Strauss, fala por si: Tristes tropiques, (Tristes Trópicos, 1955). Livro que depois considerou-se como a bíblia da antropologia contemporânea.

Desembarcando no Rio de Janeiro em 1935, nem a beleza da paisagem o comoveu. Mal humorado, o Pão-de-açúcar, o Corcovado e os demais picos espalhados ao redor da baía de Guanabara, pareceram-lhe uma bocarra banguela com meia dúzia de dentes expostos. Como se fosse o morubixaba que falara três séculos e meio antes com Montaigne, escandalizou-se com a abismal diferenças de classes, dizendo que ali, na cidade do Rio de Janeiro, a situação de cada um poderia ser medida por um curioso altímetro invertido, quanto mais para o alto dos morros alguém morasse, mais miserável ele era, e quanto mais próximo das praias, mais abençoado podia-se considerar. Para o estudioso francês, se havia ainda algum vestígio de uma Idade de Ouro nos trópicos, ela estava reservada apenas "para os que tinham dinheiro", os que habitavam a cidade do luxo, não as do lixo. Somando-se isto com o que viu depois no interior do Brasil, quando visitou inúmeras tribos indígenas, ele desencantou-se. Ao contrário da terra do sol e do mel, os trópicos eram uma miséria de dar dó. Opinião, aliás, não muito diferente da do conde de Gobineau que esteve no Rio de Janeiro na época do II Império como embaixador da França.

Entre Serpentes Caipiras 

Em São Paulo, onde assumira a cadeira de sociologia da USP, divertiu-se muito com o provincianismo da elite paulista e com a feudalização e superficialidade da vida intelectual. Ironizou-lhes as mesuras com que tentavam ocultar o desejo de "se destruírem mutuamente" o que faziam, assegurou Lévy-Strauss, "com persistência e ferocidade notáveis". Viu na sociedade bandeirante um verdadeiro serpentário de caipiras.

Mais tarde, quando finalmente adentrou na mata pelos lados do Brasil central, no Rio das Garças, aventura que ele comparou aos rigores do serviço militar, deparou-se com a aldeia Kejara, dos Bororo. Foi um choque. Impressionou-se não com a tão propalada independência e liberdade dos aborígenes, tão aclamada e enaltecida pelos seus conterrâneos europeus dos séculos anteriores, mas sim com a constrangedora miséria dos índios. E assim seguiu sua viagem, observando os demais, os caduveo, os nambikwara e os tupi-kawahib, deixando, de todos eles, um quadro desolador.

Pobres mas ainda alvo de interesse

Nem os achou tão saudáveis assim, verificando a existência entre as tribos de inúmeros doentes jogados nas palhoças, inclusive leprosos. Não se furtou, entretanto, em tentar entender-lhes as estruturas, as complicadas relações familiares e subclânicas, seu sistema de organização tribal, seus artefatos brasonados, a distribuição das ocas segundo a determinação geográfica e seus rituais de casamentos e enterros.

Confessou que gostava ao entardecer, exausto, ainda na aldeia Bororo, de adormecer com o canto quase monocórdio entoado pelos guerreiros, ao som de cabaças cheias de cascalhos que se estendiam pela noite adentro. Amansavam com suas vozes, diziam eles, o espírito da caça abatida. Tentavam conformá-la com o destino de ser em breve devorada pela tribo. Parece que para Lévy-Strauss, ali, dormindo na rede, era o único momento em que o trópico deixava de ser infeliz.

O Fim do Éden 

Com Tristes Trópicos, que Jacques Rancière chamou de "o último episódio de uma ciência do século 19", encerrou-se uma longa relação dos escritores franceses (além dos já mencionados, somam-se André Theret, Claude d'Abeville, Yves d'Évereux e Paul Gaffarel) que deixaram testemunhos abertamente idealizados do Brasil. A imagem inicial do Éden em plena selva - do encontro com as fontes de juventude, das serras apinhadas de ouro, de rios de esmeralda, de lagoas encantadas, de amazonas, de gente linda, saudável e exuberante - deu lugar, no século 20, a uma avaliação mais opaca, menos sentimental e bem mais realista. Despia-se daquelas esperanças ingênuas com que alguns dos primeiros europeus viram inicialmente o Novo Mundo. Com o livro de Lévy-Strauss, desencanta-se finalmente o Novo Mundo, diluindo-se desde então o sonho generoso de Rousseau.

Texto de Voltaire Schilling disponível na internet em http://educaterra.terra.com.br/voltaire/index_artigos.htm.Digitalizado,adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.















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