2.18.2018
A CONSPIRAÇÃO FRANCISCANA
A celebração pública dos estigmas só terminou no final da tarde, e Conrad teve de esperar até depois das Vésperas para a sua audiência. Quando entrou na sacristia da igreja de cima, onde Girolamo tinha combinado encontrá-lo, o frade viu, em vez do ministro geral da Ordem, um homem alto vestindo uma batina branca e um solidéu. Estava virado para a janela, com as mãos entrelaçadas nas costas. Nos dedos finos, brilhavam os anéis indicativos de seu alto cargo.
O clérigo virou-se calmamente. Sua pele amarelada esticava-se como um velino envelhecido sobre os pômulos salientes. Havia bolsas arroxeadas sob os olhos de pálpebras pesadas, que observaram Conrad por um momento desconfortável.
Bem-vindo, irmão — disse afinal, numa cadência imponente que contrabalançava o sibilar que lhe vinha dos pulmões. — Seu ministro geral houve por bem satisfazer nosso desejo de conhecer o frade cuja curiosidade o levou a prisão. Os elogios que Orfeo di Bernardone fez à sua pessoa despertaram a nossa curiosidade.
Conrad caiu de joelhos sobre o chão de pedra e curvou a cabeça.
— Devo minha vida a Vossa Santidade.
E permaneceu naquela humilde posição até sentir uma leve pressão na cabeça, enquanto o papa murmurava uma bênção em latim. Gregório segurou-lhe os ombros e ordenou que se levantasse.
Frei Girolamo não pôde vir se encontrar conosco. Está se preparando para viajar com o doge, que volta para Veneza amanhã.
O pontífice apontou para uma cadeira vazia e sentou-se numa outra em frente.
— Veja bem — disse Gregório —, nós precisamos ainda mais da liderança dele tio que a sua Ordem. Pedimos que voltasse a Bizâncio para amarrar a miríade de detalhes necessários para a reunificação da Igreja.
Conrad perguntou o quanto exatamente teria Girolamo contado ao papa a respeito dele próprio. Teria o ministro geral, em troca de aceitar a missão para o leste, pedido a autoridade suprema da Igreja para impedi-lo a lepra de São Francisco?
— À unidade dos membros do corpo místico de Grato é uma bênção de Deus — continuou Gregório —, sobretudo a união entre os irmãos. Frei Girolamo nos contou sobre seu plano de usar você como intermediário para extinguir a brecha em sua própria Ordem; assim que estivesse curado de seus próprios males, é claro. Uma tarefa sublime e laboriosa. Ele terá de fiar-se muito mais do que imaginava em frades como você, agora que o pegamos de volta para cuidar de nossos interesses. Falando em particular, assim como em nome da Igreja, nos sentimos recompensados por termos libertado você da prisão.
O pontífice observava seu rosto atentamente, e Conrad, de propósito, procurava mantê-lo desprovido de qualquer expressão. Ainda não tinha se recuperado da surpresa inicial. Também planejava guardar sua reação para quando ouvisse a proposta integral de Gregório.
— Frei girolamo simpatiza muito com seus amigos Espirituais. Ele cresceu em Ascoli, em Marches, onde eles se escondem. Não obstante, ele compreende que os irmãos moderados e mais práticos têm mais condições de levar adiante o plano de São Francisco de reformar a Igreja, de eliminar as barreiras entre padres e pessoas, do que os membros mais zelosos da Ordem. Em minha opinião, sua Ordem deveria dar menos ênfase à pobreza e mais à simplicidade, menos à ascese e mais à austeridade. A linha que separa esses conceitos é muito tênue, mas vai trazer mais conforto divino a um maior número de religiosos do que a sombra mais restrita que é projetada pelas práticas rígidas de seus amigos.
O papa apontou para a túnica de Conrad.
— Por exemplo: preferimos ver um frade usando uma túnica de tecido bom e pesado que vá durar muitos anos e que evitará que ele se desconcentre de suas devoções numa basílica gelada do que vê-lo vestido em trapos. Espero que chegue a essa mesma compreensão depois de um período de reflexão.
Gregório se levantou e andou outra vez até a janela, dando as costas para Conrad, que acariciou os remendos das mangas de sua túnica. Já tivera esse tipo de discussão com Donna Giacoma e podia sentir o sangue subindo-lhe ao rosto.
Gregório disse, então:
— Frei Girolamo nos contou que você ficaria satisfeito em servir num leprosário, mas acreditamos que Deus lhe reservou uma tarefa maior. Sugerimos ao seu ministro geral que você passasse um tempo de reclusão no mosteiro do monte LaVerna, paia meditar sobre o maior projeto da vida de São Francisco: sua missão para a Igreja como um todo, para todos os fiéis.
Ah, isso decerto tem a ver com me fazer calar.
— Por que o monte LaVerna? — perguntou Conrad, fingindo ignorância, mas convencido de que a única razão era por ter sido lá que as lesões haviam aparecido em Francisco. Gregório e Girolamo caçoavam dele. — Não é fato que a verdade permanece a mesma, inalterada, onde quer que se esteja? — perguntou, certo de que agora o papa sabia a qual verdade ele estava se referindo.
As costas do pontífice se retesaram.
— Quid est veritas? O que é a verdade? Pilatos perguntou a Nosso Senhor. Infelizmente para toda a humanidade ele não esperou pela resposta de Jesus. Toda a humanidade gostaria muito de ter ouvido aquela resposta. Nós vivemos o dobro de seus anos, frei Conrad, muitos deles passados lendo crônicas e histórias que se diziam verídicas. Chegamos à conclusão de que as penas dos escribas podem escrever verdades rasas e flexíveis com tanta facilidade quanto os martelos dos fabricantes de armas malham as espadas.
— Mas estou absolutamente certo sobre a lepra de São Francisco.
Gregório virou a cabeça, com uma expressão de mágoa no rosto, como a sublinhar a indelicadeza de Conrad ao falar de forma tão direta. O papa obviamente preferia falar sobre aquele assunto por circunlóquios.
— Certa vez, um sábio imaginou que Deus lhe estendia, em Sua mão direita, toda a verdade do universo; na esquerda, o Criador tinha apenas a busca diligente da verdade, incluindo a condição de que o homem sempre se perdesse nessa busca. Deus ordenou ao sábio: "Escolhe!" Humildemente, ele tomou o que havia na mão esquerda de Deus, dizendo: "Pai Divino, dê-me essa, pois a verdade absoluta pertence somente a Ti."
A voz sibilante do papa crepitou quando ele acrescentou:
— Você deve ter visto hoje na praça que a verdade a que se apega não é tão simples, tão absoluta. Sua verdade seria um golpe lancinante no âmago da fé das pessoas.
Conrad abaixou a cabeça. Levado pelas próprias convicções, havia ultrapassado os limites. Devia ao sumo-pontífice total obediência, além de gratidão.
— Perdoe-me, santo padre, por meu orgulho.
Fechou o olho, com a impressão de que seu coração iria explodir, agitado por tanto tumulto, tanta confusão. Continuou em voz baixa:
— Cheguei a mesma conclusão que Vossa Santidade ao observar a multidão e teria remorsos para sempre se causasse danos a devoção das pessoas. Certamente não é esta a hora para revelações, foi o que eu disse para mim mesmo. No entanto, em respeito a essa mesma verdade, não deveríamos fazer pelo menos uma observação em alguma crônica, para aqueles que vierem depois
De nós?
— Não.
A palavra foi dita em tom baixo, porém firme, e a mão do papa tocou-lhe o ombro.
— Não meu filho.
Conrad levantou o rosto mais uma vez, surpreso com a repentina ternura do pontífice.
— Mas, estamos em débito com você, pelo sofrimento que suportou e porque... porque, é simples, concordamos com frei Girolamo que você provavelmente está certo. Suas descobertas não deverão morrer mais do que... do que uma morte temporária. Quando for da vontade de Deus, Ele poderá ressuscitá-la com a mesma facilidade com que o fez com Seu Filho. Nosso acordo, então, é o seguinte: um frade vai acompanhá-lo a LaVerna; por intermédio dele, poderá começar a tradição oral da sua história de Francesco Lebbroso. Oral, não escrita. Não poderá fazer nada além disso: deixe o resto nas mãos de Deus.
— E o companheiro? Posso escolher?
O papa assentiu:
— Desde que seu ministro geral concorde.
Deus permita que ele aceite, pensou Conrad. Algumas centelhas de esperança luziram de repente no seu íntimo. E com isso veio-lhe uma paz inesperada, a sensação de confiança de que um frade de alguma geração futura finalmente iria trazer à luz a maquinação de Elias. Sentiu reacender-se sua antiga determinação, mas não precisava dizer nada sobre isso ao papa.
— Se frei Girolamo estivesse aqui, também pediria que me liberasse por esta noite para me despedir de Orfeo e da esposa. Prometi ir cear com eles.
— Não vejo problema algum nisso, irmão. E, por favor, acrescente a eles os meus cumprimentos, pois gosto muitíssimo de Orfeo.
Gregório fez uma pausa e sorriu, antes de indagar:
— Quando virá buscar seu companheiro?
— Se ele puder encontrar-se comigo na Porta di Murorupto depois das terças, amanhã de manhã...
O pontífice fez que sim e concordou em transmitir o pedido; depois acompanhou Conrad até a porta principal da basílica. E foi assim, facilmente, que o dilema que atormentara Conrad desde o seu encontro com frei Girolamo resolveu-se com o caráter decisivo e infalível de um decreto papal.
Enquanto Conrad conversava com o papa, a Piazza di San Francesco esvaziara-se. A multidão se dissipou para a refeição da noite. Um único vira lata, que remexia nas sobras que os peregrinos haviam deixado cair nas pedras do calçamento, veio cheirar os tornozelos do frade. O animal o seguiu ate a extremidade da praça, e Conrad desejou mais uma vez voltar à companhia das criaturas da floresta e que os últimos três anos jamais tivessem acontecido. Afagou a cabeça do cachorro, sentindo uma saudade repentina de Chiara, a corça mansa que pastava junto de sua cabana. Depois espantou o cachorro para que voltasse para a praça e prosseguiu sozinho.
A única questão ainda não resolvida era a existência ou o paradeiro da crônica de Leo. Conrad tivera a esperança de fazer a pergunta a frei Girolamo, mas, com o ministro geral de partida para Veneza, perdera aquela oportunidade. E sabia que, mesmo se pudesse de alguma forma questionar frei Salimbene ou o bibliotecário a respeito do pergaminho, não receberia uma resposta sincera. Restava-lhe usar uma alavanca para soltar as tábuas dos armários de livros na calada da noite, uma experiência que esperava nunca mais repetir, nem mesmo em seus mais terríveis pesadelos. Mas o companheiro de viagem para LaVerna... ao mesmo tempo em que receberia por herança a história da lepra de Francisco... poderia, quem sabe, herdar também a história de Leo.
Enquanto percorria o caminho para a casa de Amata, Conrad deu-se conta de que a repentina mudança dos acontecimentos o haviam deixado com uma verdadeira sensação de calma e alívio. Por três anos, o peso da mensagem de Leo havia vergado sua alma como um salgueiro que se curva sob pesada nevasca e esgotado as suas forças para evitar que se quebrasse. Mas o calor da autoridade de Gregório finalmente derretera essa carga, libertando-o para voltar à sua natural postura ereta. O jugo da obediência cega carregava em si a liberação de uma irresponsabilidade igual à das crianças. O desaparecimento tio manuscrito de frei Leo representava uma outra carga, mais um peso que ele agora entregava de bom grado nas mãos de Deus. Ansiou pelo retiro no monte LaVerna; tinha várias camadas de cargas como essas para se desfazer.
Ao chegar a casa de Amata, encontrou todo mundo reunido no grande salão, e a refeição já pela metade. A mesa dos criados estavam sentados os quatro homens que carregavam a maca perto da igreja de baixo naquela manhã. Mais de perto, pôde finalmente reconhecer o que lhe parecera familiar, o criado de Rosanna o mesmo que toda semana levava alimento para ele na cabana da montanha.
Conrad encaminhou-se depressa, cheio de expectativa, para a mesa principal, reservada para a família e os convidados especiais, mas Rosanna não estava lá. Deixou cair os ombros. Reconheceu o quanto ficara desapontado; era a mesma sensação que experimentara antes, naquela manhã em que partiu para o mosteiro e Rosanna não pudera se despedir dele.
Os olhares de Amata e Conrad se cruzaram, e ela acenou para o lugar que lhe estava reservado, entre ela e o conde Guido. Guido saudou o frade cordialmente e abriu mais espaço no banco, enquanto Amata fazia sinal para um ajudante da cozinha trazer mais um prato. Com a mente ainda girando com lembranças de seu eremitério, Conrad recordou-se naquele instante da adolescente de língua afiada que enchia a boca de uvas, uma atrás da outra, enquanto o repreendia em sua cabana. A jovem adulta ao lado dele era uma homenagem viva à sabedoria e à paciência de Donna Giacoma.
Eu lhe prometi uma surpresa, Conrad! — disse Amata. — Convidei Monna Rosanna para vir a Assis para o dia santo, embora eu não soubesse que ela estava doente. Esperamos que, pela intercessão das chagas de São Francisco, ela consiga uma cura durante sua permanência aqui.
— O estado dela é grave? — indagou Conrad.
A tristeza anuviou o rosto de Amata.
— Muito grave. A pessoa que aplica ventosas acha que ela não conseguirá sobreviver, a não ser por milagre. Muitos partos difíceis. É a bênção e a maldição das mulheres. — Conseguiu dar um leve sorriso presciente, reconhecendo que dentro de um ano a sua vida poderia estar suspensa por um fio entre a maravilha e o perigo mortal da gravidez e do parto.
Conrad enterrou a cabeça nas mãos e rangeu os dentes. A companheira mais querida de sua infância, obrigada a sofrer porque o marido tinha a auto-disciplina de um animal no cio! Não houvera um ano sequer desde o casamento em que ela não estivesse grávida. Embora zangado, frustrado e sentindo-se impotente, uma parte de si foi forçada a admitir que Rosanna e Quinto tinham Apenas cumprido o preceito bíblico de crescer e multiplicar-se. Teria a vida dela sido diferente caso tivesse se casado com alguém como ele?
Amata deu lhe um gole de sua taça. Tocou no braço de Conrad e acrescentou:
— Ela tem perguntado por você desde que chegou.
O frade imediatamente começou a se levantar, antes mesmo que a criada viesse com a comida, mas Amata apertou um pouco mais o braço dele.
— Ela está descansando confortavelmente, Conrad. Jante primeiro e nos conte sobre seus planos. Gostaríamos que ficasse conosco por um tempo. A sua companhia também seria benéfica para Jacopone. — E fez um gesto com a cabeça em direção a um banco de madeira que ficava abaixo de uma das tapeçarias do salão.
Teresina já tinha terminado de comer e estava ao lado do pai, com a cabeça apoiada no ombro dele e segurando sua mão enorme em suas duas pequeninas mãozinhas. O penitente girava a cabeça, sem energia.
A imagem da recaída entristeceu Conrad. Levou as mãos ao rosto, cobrindo-o por um momento, depois explicou que deveria viajar na manhã seguinte.
— Só me resta oferecer um conselho, Amatina — disse. — Faça com que Sior Jacopone escreva alguma coisa. Como seu notário, ou anotando os próprios poemas, copiando, seja lá o que for. Ele tem a sensibilidade nervosa dos artistas. Para essas mentes angustiadas, escrever é o melhor purgativo, talvez o único. Ele poderia até tentar morar no nosso mosteiro em Todi. Todos lá o conhecem, e foi bem respeitado antes que a loucura tomasse conta de seu espírito.
Conrad podia ver que sua resposta deixara Amata decepcionada, mas o papa havia ordenado a sua viagem e, acima de tudo, seu próprio espírito necessitava de cuidados. Sentiria saudades do carinho de todas essas pessoas, mas sabia que deveria renunciar a elas. Encontrava-se numa das encruzilhadas da vida, com mais uma irrevogável mudança de rumo em vista. Enquanto tomava seu caldo, Conrad pensou mais uma vez em Rosanna, a quem ele já havia renunciado duas vezes — quando fora para o mosteiro e ficara sabendo do noivado dela e, mais recentemente, quando abandonara sou eremitério para voltar a Assis. Agora, era provável que tivesse de deixá-la pela terceira e talvez última vez.
Naquela noite, a sopa não teve cheiro nem sabor para ele, e quase não percebia a conversa ao seu redor. Sua consciência já ia longe, para alguma noite escura, acenando para que sua alma a seguisse, e depressa. Sua mente parafraseava um verso curto de um poema popular: Despedi-me de meus amigos e embrenhei-me no outono de LaVerna. Mal tinha tocado a comida quando os criados responsáveis pela cozinha começaram a limpar o salão.
Amata permaneceu a mesa enquanto os outros foram em busca de seus colchões de enrolar.
— Conrad? — disse baixinho. — Se você não quer comer, vamos ver Rosanna agora. Mas antes de nos desejarmos boa noite, prometa-me que não vai desaparecer ao amanhecer, como fez no dia que foi embora para San Lazzaro.
— Prometo, Amatina.
Fez uma pausa e acrescentou:
— Espero que Deus guie meus passos para cá mais uma vez, mas por agora não posso prever nada além de LaVerna.
As palavras lhe faltavam, mas sabia que precisava dizer algo. Tentou explicar:
— Vou sentir saudades de vocês todos, saudades imensas, mas a separação será mais fácil porque sei que finalmente está vivendo na paz que Giacomina desejava para você, que todos nós queríamos que tivesse.
Mas ele desconfiava que não seria tão fácil como dizia. Separar-se de Amata poderia ser tão triste quanto a outra despedida que estava prestes a enfrentar.
Ele não opôs resistência quando ela lhe tomou pela mão e o levou para o mesmo quarto onde ele havia estudado os manuscritos. Ao parar na entrada, Amata sussurrou:
— Orfeo está esperando por mim — e voltou discretamente para o salão.
A lareira acesa no canto do quarto deixava escapar um filete de fumaça que subia pelas pedras da chaminé e ia para o teto, exatamente como ele se lembrava; mas a mulher deitada num colchão sobre o piso respirava sem dificuldade. Suas pálpebras estremeceram, depois se abriram ao perceber alguém a porta.
— Sou eu, Conrad.
O brilho alaranjado do fogo refletiu-se na névoa úmida que se formara nos olhos da mulher.
— O que fizeram com o meu amigo? Amata me avisou que você tinha mudado muito na prisão, mas nunca poderia imaginar...
Conrad ajoelhou-se ao lado do catre e tocou-lhe os lábios com o dedo.
— Dizem que Deus trata mal àqueles a quem ama; do mesmo jeito que as crianças tratam seus brinquedos favoritos. Devemos ser muito amados, você e eu, Rosanna.
Tomou-lhe a mão, num movimento instintivo, como se ainda tivessem dez anos, surpreendendo-se com a naturalidade do gesto.
— Amata disse que estava esperando por mim.
Ela virou a cabeça, com os olhos voltados para a fumaça lá no alto.
— Queria suas preces para libertação da minha alma e para a proteção de meu marido e filhos quando eu partir. Eu sei que vou morrer, Conrad.
Ele mal sentia a fraca pressão dos dedos dela na palma de sua mão.
— Também preciso confessar uma coisa — arrematou ela.
Conrad soltou-lhe a mão e assumiu uma posição mais ereta. Rosanna riu baixinho na penumbra.
— Não, não, nada tão formal assim. Confessei-me com o padre de Ancona antes de deixar a cidade, caso a viagem acabasse sendo dura demais para a minha saúde. Com você, a confissão é apenas entre amigos. Por favor, segure minha mão de novo.
Ele obedeceu, mas dessa vez segurou-lhe a mão de modo mais acanhado.
— Durante todos esses anos de meu casamento com Sior Quinto — continuou Rosanna — estive apaixonada por outro homem. Isso escandaliza você?
A respiração de Conrad ficou suspensa por um momento. Não fosse pelo débil estado de saúde dela, soltaria sua mão. Embora ela tivesse afirmado se tratar de uma limpeza de consciência informal, ele reagiu como um padre severo.
— Você o amou no sentido carnal? — perguntou, receoso da resposta.
De novo Rosanna deu uma risadinha, o som saindo em tênues sopros de ar.
— Não. Apenas nas minhas fantasias de menina. E agora nos meus sonhos de mulher madura. Acho que ele é o tolo mais ingênuo que existe, por jamais ter percebido nenhum dos indícios.
— Você o conhecia quando era menina? Por que não declarou seus sentimentos em vez de se casar com um estranho?
— Você bem sabe que as filhas não têm direito de fazer escolhas matrimoniais, Conrad. Declarei, sim, meu amor a ele, para meus pais, na noite em que me avisaram que fora prometida em casamento a Quinto. Tive o pior dos acessos de raiva que você pode imaginar e jurei que só me casaria com... você. Por que acha que o levaram correndo para o mosteiro?
O colchão rangeu sob o esforço que ela fez para ficar de lado.
— E veja onde fomos parar. Dois velhos bonecos de trapos aos frangalhos, que deveriam ter formado o casal mais feliz do mundo. Sei que você também me amou, mesmo que tivesse sido apenas um amor de adolescente.
O aperto em sua garganta o impediu de responder. A lua nascente iluminou um canto do quarto, insinuando-se através das folhagens e de uma brecha na parede. De repente, ele reconheceu a solidão de sua vida inteira naquele único e pálido raio de luar.
— Fale, Conrad. Deixe-me dizer addio a você em paz.
Apertou a mão dela entre as suas, acompanhando os dedos frágeis da mulher com as pontas dos seus. Falou, enfim, com voz rouca:
— Sabemos que nossas almas não morrem, Rosanna. Não devemos dar tanta importância assim a dizer adeus. Conversaremos outra vez um dia, num lugar mais feliz.
— Diga, Conrad. Por favor.
Ele tento se levantar, mas a mão dela o reteve:
— Conrad!
Ele soltou-lhe a mão e pousou-a sobre o corpo dela.
— Deus sabe como a amei, Rosanna. Até este instante, só Deus sabe que nunca deixei de amá-la. Só agora me dou conta disso. — Sorriu. — Acho que isso prova que sou mesmo um tolo ingênuo, como você diz.
Tocou com os lábios a testa úmida de Rosanna; depois, passou as mãos por baixo dos ombros dela e soergueu-a do colchão. Segurou-a contra seu peito por um longo momento, lutando contra as lágrimas. Deitou-a no colchão, e dessa vez permitiu que seus lábios tocassem os dela.
— Obrigada Conrad — sussurrou ela.
— Addio, Rosanna. Adeus, minha amiga.
Num esforço, ficou de pé e andou com dificuldade para a porta, onde parou vacilante. Apoiou-se no umbral e levantou os olhos para o céu que brilhavam além do claustro. Fez um leve gesto de cabeça para as estrelas e disse:
— Vejo você lá.
Em um impulso, Conrad atravessou o portal. Seguiu a trilha do luar e foi até o pátio de Amata. Lá, a luz resplandeceu em sua barba prateada, atraindo uma chuva de mariposas claras, que dançaram em volta de seu rosto e depois pousaram em seu cabelo. Desejou poder fincar raízes ali, no meio dos escombros deixados pelo incêndio, criando musgo como um carvalho venerável, servindo de lar para milhões de besouros e de sombra ao tranqüilo ambiente familiar de Amata, com suas folhagens, seu tronco e seus galhos sendo escalados pelos alegres bambinos dela.
Sua peregrinação, porém, não lhe permitia essa vida de prazer. Seu destino estava bem distante dali. Não só o monte LaVerna, uma simples parada no meio do caminho, mas nada menos do que o reino de Deus — escondido dentro de si, como Jesus ensinara.
Amanhã transmitiria o fardo de Leo para o companheiro que escolhera para a viagem: o frade da geração futura, frei Ubertino. Em toda aquela busca, não havia encontrado Deus, nem mesmo na túnica cinzenta e remendada que agora lhe cobria o corpo trêmulo. Sabia que o Pai habitava um lugar bem mais profundo do que todas as batalhas dos homens, do que aquele pedaço de pergaminho carbonizado que guardava no bolso e que representava a pureza da alma da Ordem, e até mesmo do que a imensa basílica que desalojara essa mesma alma. Muito além de qualquer coisa que Conrad pudesse nomear ou pensar, do que a sua mais inteligente noção de um Deus, que era apenas uma invenção.
Teve certeza de que o caminho para Deus iria desaparecer em mistério, talvez num lugar de absoluto nada, ainda que certamente não seria um lugar, e nem mesmo um vazio — nada além do puro amor. O Apóstolo, inspirado pelo espírito Santo, profetizara: "Deus é Amor"
E lá, no âmago do Amor Original, Conrad sabia que encontraria Rosanna unira vez.
Autoria de John Sack em "A Conspiração Franciscana", Sextante, Rio de Janeiro, 2007, excerto capitulo XLIV. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa

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