5.12.2018

A DÉCADA DE 1930

Revolução Constitucionalista de 1932
A era do getulismo é marcada por uma série de conflitos. O rádio é o grande canal de comunicação. Ao final da década, ele anuncia o início da II Guerra Mundial.

Ouem tinha 20 anos em 1930, hoje deve estar beirando os 80. Vão desaparecendo assim, inexoravelmente, os homens e mulheres que foram jovens durante a década de 30 no Brasil. São as últimas testemunhas oculares das revoluções de 30 e de 32, da política dos tenentes e dos interventores à sombra de Vargas, das tentativas de golpe dos comunistas de Prestes e dos integralistas de Plínio Salgado. São os últimos com recordações de infância datando da República Velha, no tempo em que o Brasil era um país diferente, com outros costumes, outros temores e outros anseios.

Ao começar a década de 30, ninguém se preocupava com poluição, que não se sabia o que fosse, nem com cigarros, considerados por muitos médicos como um hábito higiênico, nem com drogas — morfina e cocaína eram encontradas à venda, livre, em qualquer farmácia. Em compensação, havia o medo obsessivo da tuberculose que contaminava todos os anos meio milhão de brasileiros e levava para o túmulo nada menos do que 100 000. A tuberculose não fazia distinção entre velhos, crianças ou jovens, mesmo os de talento, como o compositor Noel Rosa, falecido em 1937, aos 27 anos, na sua casa de Vila Isabel.

E não era só a tuberculose que assustava, mas a difteria, a paralisia infantil, a varíola, a sífilis e todas aquelas outras doenças hoje benignas, mas terríveis antes da vacinação em massa e da revolução dos antibióticos.

Talvez por sentir-se tão vulnerável, a sociedade levava a religião a sério, muitíssimo mais a sério do que hoje em dia, a começar pelos preceitos da liturgia. Semana Santa, por exemplo, era Semana Santa, um período de recolhimento espiritual, com seu cerimonial, missas e procissões e até regras de vestuário. A Casa Mappin, de São Paulo, costumava oferecer à sua clientela “finos acessórios para a grave toalete desses dias, gravatas-borboleta de seda preta, meias de seda preta da marca Guillochet e lenços de linho branco com mancha central e tarja preta”.

Nessa época, aliás, a Casa Mappin ainda ficava na praça do Patriarca. Mudou-se para a praça Ramos de Azevedo já no fim da década (1939), atravessando o Anhangabaú pelo novo viaduto do Chá. A obra fora inaugurada no ano anterior para facilitar a ligação entre o centro antigo e o que seria mais tarde o centro novo, mas não passava então de uma região residencial. Tudo estava no começo, tão no começo que se um paulistano de hoje voltasse àquele tempo não saberia se orientar. A rua Marconi nem estava totalmente calçada. A praça onde hoje se encontra a Biblioteca Municipal Mário de Andrade era a chácara da família Souza Queiroz. Em 1930, as avenidas Nove de Julho, Rebouças e Brasil simplesmente não existiam. Seriam iniciadas pelo prefeito Fábio Prado (1934 — 1938) e terminadas pelo seu sucessor (Prestes Maia). Permitiram elas, pela primeira vez, um acesso confortável às regiões de Pinheiros e do Ibirapuera e abriram caminho para os bairros que iam se formando na vertente da avenida Paulista, em direção oposta ao centro da cidade. Eram bairros de traçado elegante, loteados pela companhia City com nomes de jardins — Jardim Paulista, Jardim América e Jardim Europa — e o lançamento foi um sucesso, apesar dos novos moradores reclamarem da proliferação infernal de borrachudos.

O Rio de Janeiro também passou por grandes reformas, abençoadas agora pelo Cristo Redentor. Com seus trinta metros de altura, dominando a cidade do alto do Corcovado, a estátua apareceu brilhando pela primeira vez sob a luz dos refletores ao cair da noite de 12 de outubro de 1931. Mas as transformações se multiplicaram na paisagem carioca, sobretudo a partir de 1937, quando Henrique Toledo Dodaworth assumiu a prefeitura. Surgiram duas novas avenidas: a Brasil, acompanhando o litoral no rumo norte, e a Presidente Vargas, revolucionando o centro da cidade. Multiplicaram-se os arranha-céus, alargaram-se ruas, desafogando o Teatro Municipal e a Cinelândia. Demolido o prédio da Imprensa Nacional, criou-se espaço para um novo terminal de transportes coletivos no largo da Carioca, que passou a ser conhecido como o “Tabuleiro da Baiana”.

Quantos se lembrarão ainda do Rio de Janeiro anterior a todas essas mudanças? Nesse tempo mais antigo, a estação central de bondes ficava na Galeria Cruzeiro. Os andares superiores eram ocupados pelo Hotel Avenida e o térreo por uma enfiada de lojas como a Americana, o Bar e Restaurante Ao Franziskaner e a Leiteria Mineira. E quem se lembrará ainda dos “chope-duplo”, não a bebida, mas os ônibus de dois andares que circulavam pelas ruas cariocas? E dos fogões a lenha que só vieram a desaparecer, mesmo, nessa década de 30?

Com o aumento do número de automóveis, surgiram outras novidades como a dos táxis que já não cobravam as corridas por tempo, mas por percurso, segundo o registrado num novo aparelho chamado taxímetro. E eram tantos os automóveis que, em 1930, foram instalados os primeiros sinais luminosos para disciplinar o trânsito nas esquinas.

Apesar de todo esse progresso, a década de 30 começou à sombra de gravíssima crise econômica, consequência da quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929. Em agosto de 1929, a saca de café estava cotada a 200000 réis. Em janeiro de 1930, mal alcançava 21000 réis. Como relembra o historiador Barbosa Lima Sobrinho: “Tinha-se a impressão de um terremoto ou de um furacão, pela enormidade de prejuízos e a subitaneidade do cataclismo. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, mais de quinhentas fábricas foram obrigadas a fechar suas portas. Os salários perderam quase metade do seu poder aquisitivo. Do dia para a noite, desapareceram o crédito externo e o financiamento externo. Sufocadas pelas hipotecas, velhas fazendas pertencentes à aristocracia paulista vão parar na mão dos agiotas. Dois milhões de desempregados vagueiam pelo país”.

A situação política também não era das mais tranquilas. Nas eleições presidenciais de 1930, concorreram à sucessão de Washington Luís o paulista Júlio Prestes e o gaúcho Getúlio Vargas. Júlio Prestes ganhou nas umas obtendo mais de um milhão de votos, enquanto Getúlio mal chegara a 750000. Mas, alegando uma infinidade de motivos, a começar pela fraude eleitoral, militares do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba uniram-se para derrubar Washington Luís e empossar Getúlio Vargas. Começava assim a era do getulismo, que atravessaria a década inteira de sobressalto em sobressalto.

O primeiro deles, e também o mais violento, foi a Revolução Constitucionalista de 1932. Na memória coletiva dos paulistas que viveram nessa época brilham até hoje jma série de nomes, siglas, apelidos e datas de intenso significado emotivo, embora pouco signifiquem para os brasileiros de outras gerações e outras paragens. Por exemplo: “MMDC”, “O Túnel”, “Vermelhinhos” e Matraca”. MMDC é a sigla feita com as iniciais de quatro rapazes mortos num conflito entre manifestantes políticos no dia 24 de maio de 1932, na esquina da Barão de Itapetininga com a praça da República: Miragaia, Martins, Dráusio e Camargo. “O Túnel” significa o túnel da Estrada de Ferro Central do Brasil na serra da Mantiqueira, divisa com Minas Gerais, onde foram travados alguns dos combates mais sangrentos da revolução. Os “Vermelhinhos” eram os aviões do governo federal que bombardeavam São Paulo. E, finalmente, a “Matraca”, uma curiosa invenção do professor Otávio Teixeira Mendes, do batalhão de Piracicaba. Rodando-se uma manivela, fazia-se girar uma roda dentada que tocava numa lâmina de aço. Com este artifício, os soldados paulistas produziam rajadas de estampidos semelhantes aos de uma metralhadora pesada. Na falta de armas de verdade, as “matracas” serviam, muitas vezes com sucesso, para retardar o avanço do inimigo.

Os revolucionários de 32 foram também os últimos brasileiros para quem a poesia épica serviu à paixão política. Não há veterano que não guarde de cor pelo menos a estrofe mais célebre de todas, aquela que permanece gravada em bronze numa placa da Faculdade de Direito do largo de São Francisco: “Quando se sente bater/ No peito a heróica pancada/ Deixa-se a folha dobrada/ Enquanto se vai morrer”, ou o início da 'Bandeira Paulista' de Guilherme de Almeida: “Bandeira da minha terra/ Bandeira das treze listas/ São treze lanças de guerra/ Cercando o chão dos paulistas”.

Essas poesias, como os discursos e o noticiário político, eram veiculados não apenas pela imprensa escrita, mas também, e pela primeira vez, através das ondas de rádio. São Paulo, rebelado, contava com apenas três emissoras: a Educadora, a Cruzeiro e a Record, enquanto o governo federal dispunha de dezenas, o que lhe dava superioridade na batalha da propaganda, inclusive interferindo na faixa de emissão das rádios revolucionárias para tomar a escuta impossível. Vingavam-se os paulistas instalando emissoras clandestinas no Rio de Janeiro. Uma delas funcionou durante alguns dias num apartamento do Hotel Copacabana Palace.

Essas transmissões só não tiveram impacto maior porque a era do rádio no Brasil estava apenas começando. Desde 1922, é verdade, existiam algumas emissoras pioneiras, mas funcionavam como “rádio sociedades’’ ou “rádio clubes” financiadas pelos sócios com fins unicamente culturais e audiência muito restrita. Os primeiros ouvintes brasileiros eram amantes de música clássica ou apreciadores de conferências sobre temas intelectuais como, por exemplo, a crítica dos dois grandes livros da década: 'Casa Grande e Senzala' de Gilberto Freire e 'Raízes do Brasil' de Sérgio Buarque de Holanda.

Em 1932, entretanto, pouco antes do início da revolução paulista, um decreto de Getúlio Vargas permitiu a entrada da propaganda no rádio, transformando aquela diversão de elite em veículo de comunicação de massa. Os anunciantes queriam o grande público, e o grande público queria ouvir os grandes sucessos populares: “O teu cabelo não nega” (1932), “Fita amarela” (1933), “Cidade maravilhosa” (1935), “Pierrô apaixonado” (1936), “Mamãe eu quero” (1937), “Pastorinhas” (1938). Os aparelhos receptores ainda eram caros: em 1934, um modelo dos mais baratos custava um conto de réis, quatro salários de um balconista. Mas a compra era facilitada por outra invenção da época: o crediário.

Assim o rádio se tomou para os brasileiros o companheiro de todas as horas, inclusive as horas políticas. Percebendo sua força e poder de penetração, Getúlio criou em 1936 'A Voz do Brasil', programa inicialmente muito menos enfadonho do que o atual e que apresentava não somente a palavra de Getúlio e seus amigos políticos, mas também cantores populares. Vários deles, como Mário Reis e os integrantes do Bando da Lua, costumavam frequentar as recepções do Palácio.

Na política os brasileiros dividiam-se, naturalmente, em getulistas e anti-getulistas. Mas não era essa a única divisão. Comunistas de Prestes e integralistas de Plínio Salgado combatiam-se sem acordos e sem tréguas. E se hoje, com meio século de distância, os integralistas com suas camisas verdes (mais tarde proibidas por lei) e suas curiosas saudações levantando o braço e exclamando Anauê parecem-nos um tanto folclóricos, na época, eles chegaram a reunir centenas de milhares de militantes.

Repetindo aqui as táticas experimentadas lá fora, os comunistas, em 1935, e os integralistas, em 1938, tentaram conquistar o poder pela força. Ambos fracassaram. Foi o próprio Getúlio quem levou a melhor. Com o golpe continuísta de 1937, fundou o Estado Novo e encerrou a década de 30, como tinha iniciado, segurando as rédeas do poder.

A grande notícia do final da década de 30, no entanto, viria de fora, muito longe de nossas fronteiras. Em setembro de 1939 os brasileiros souberam pelo rádio que as tropas nazistas acabavam de cruzar as fronteiras da Polônia. Começava a II Guerra Mundial, a grande divisora de águas do século XX, separando a história e a memória dos homens em dois grandes capítulos, o que aconteceu antes e o que veio depois.

Publicado em "Almanaque Abril Especial- Brasil Dia-a-Dia", Editora Abril, São Paulo, 1990, direção de Lucila Camargo, excertos pp. 6-10. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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