Carmen Miranda |
Corria o ano de 1942 quando chegou ao Brasil uma nova bebida americana. Pela cor, lembrava café, mas era gasosa e bebia-se gelada como guaraná. Vendia-se em pequenas garrafas de forma estranha e seu slogan era: “ Está pra mim!” . Chamava-se Coca-Cola.
A chegada dessa novidade fazia parte de uma gigantesca operação econômica e cultural, lançada pelos EUA, para conquistar ou conservar aliados latino-americanos durante a II Guerra Mundial. Era a “ política da boa vizinhança”, início da grande era de supremacia americana que iria marcar os brasileiros da época de 40 e também todas as gerações seguintes até, pelo menos, os anos 80.
Novidades no estilo da Coca-Cola havia muitas. Um dia eram as meias de náilon, no outro a caneta Parker 51 “ para escrever seco com tinta líquida” ou, mais revolucionária ainda, a caneta Reynolds Pen que, segundo um anúncio redigido com algum exagero, podia escrever dois anos sem encher de tinta. Por ter uma esfera de aço no lugar da pena, a Reynolds — mais tarde classificada como “ caneta esferográfica” — era capaz de duas façanhas invejáveis para a época: tirava até oito cópias com papel carbono e permitia que se endereçasse cartas sem o risco de rasgar envelopes aéreos, um acidente rotineiro com as penas de aço disponíveis nos correios.
Junto com essas invenções práticas, típicas, segundo se dizia, do espírito ianque, os brasileiros descobriram uma nova filosofia de vida e costumes extraordinários. Nos EUA as moças eram tão livres que chegavam a dividir a conta do restaurante com seus namorados. Ou pelo menos, era o que se lia nas páginas do 'Seleções do Readers Digest', revista de enorme influência nos anos 40.
Hoje, quem folhear um exemplar do 'Seleções' daquela época terá a impressão de uma viagem no tempo. Ali estão as velhas seções: “ Meu tipo inesquecível” , “ Rir é o melhor remédio” , “ Piadas de caserna” . E também os anúncios de alguns aparelhos estranhos nunca vistos antes e que nunca se veriam depois, como o Gasogênio Spagas, que “ Não prejudica a estética do seu carro” . Na falta de gasolina, racionada durante a guerra, recorria-se ao gasogênio, uma engenhoca que chamava a atenção sobretudo por dois enormes cilindros fixados na parte traseira dos automóveis e que transformava carvão em gás combustível.
Havia também curiosas sugestões que nada tinham a ver com a guerra, como esse anúncio das lâminas e aparelhos de barbear Gillette: “ Economize para o cinema, barbeando-se em casa” .
Ia-se muito ao cinema na década de 40. E havia uma paixão toda especial pela vida dos astros e estrelas, explorada em fofocas intermináveis nas páginas da revista 'Scena Muda'. Hollywood vivia então uma fase extraordinária, com Errol Flynn, Gary Cooper, Clark Gable, Esther Williams, Vivien Leigh e Marlene Dietrich, tão jovens e românticos quanto Humphrey Bogart e Ingrid Bergman no imortal 'Casablanca'.
A “ política da boa vizinhança” logo resolveu tirar proveito da popularidade do cinema. Surgiram assim comédias e filmes de aventuras com temas e galãs latino-americanos. Por uma questão de facilidade, atores mexicanos como Cesar Romero e Ricardo Montalban representavam heróis de todos os países, inclusive brasileiros, recorrendo nesse último caso a algumas palavras de portunhol, para dar um “ toque realista” . Havia também uma certa confusão com acidentes geográficos. Nos cenários de Hollywood, o Pão de Açúcar aparecia, às vezes, do lado errado da baía da Guanabara. Quanto aos produtos mais pitorescos do continente, como “lindas señoritas”, sombreros, revólveres, golpes de Estado, tangos, congas, rumbas, sambas e serpentes, estes atravessavam livremente as fronteiras segundo a inspiração dos roteiristas. Essa geografia maluca desesperava as platéias mais nacionalistas como as argentinas, que chegaram a quebrar as poltronas do cinema de Buenos Aires onde estreiava 'Serenata Tropical', mas não parece ter incomodado muito os brasileiros. Fomos brindados, é verdade, com um personagem genuinamente nosso, o Zé Carioca, criado pelos estúdios Disney para figurar em 'Saludos Amigos' (1943) e 'Você já foi à Bahia ?' (1944).
E de qualquer maneira as maiores liberdades com o nosso folclore não foram tomadas por americanos, mas por nós mesmos, ao mandarmos de volta para os EUA a falsa baiana Carmem Miranda, também conhecida como “a pequena notável” ou “a fruteira humana”. Descoberta pelo empresário americano Lee Shubert, no Cassino da Urca, Rio de Janeiro, Carmem Miranda embarcou para os EUA a fim de participar por algumas semanas em duas revistas da Broadway.Teve tanto sucesso que poucos meses mais tarde, depois de gravar dois discos ('South American Way' e 'Touradas em Madri'), tornara- se uma personalidade recebida pelo presidente Rooseveit na Casa Branca. Até 1953 apareceria em duas dezenas de comédias, das quais apenas duas ambientadas no Brasil: 'That night in Rio' (Aquela noite no Rio) e 'Nancy goes to Rio' (Romance carioca).
A força desse mundo de fantasia era tão grande que, às vezes, invadia a realidade, transfigurando o espetáculo das chamadas coisas sérias da vida. No dia 24 de julho de 1941, como parte das comemorações do quarto aniversário do Estado Novo de Getúlio Vargas, todos os hierarcas mais austeros do regime, incluindo os ministros e diplomatas de smoking, acompanhados pelas senhoras em casacos de peles compareceram ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro para assistir a uma revista musical intitulada 'Joujoux e balangandans'. Dividida em dois atos e 27 quadros, a revista contava a viagem pelas Américas da pitoresca família Mota Durães, a bordo de um navio da “Frota da Boa Vizinhança”.
Iniciativa da primeira dama, dona Darcy Vargas, a produção milionária foi financiada inteiramente pelo empresário Joaquim Rolla, o que aliás ninguém estranhou. Como proprietário de alguns dos maiores cassinos do país, como os da Urca, Icaraí, Pampulha e Araxá, Rolla não recusaria nenhum pedido vindo de tão alto. E se precisasse de algun favor, também saberia a quem recorrer. Bejo Vargas, irmão mais moço de Getúlio, era figura constante nos cassinos, onde costumava agradar os músicos atirando de longe, em direção à orquestra, punhados de fichas de jogo no valor de quinhentos mil reis ou um conto de réis.
Fora do Rio de Janeiro, a vida brasileira na década de 40 era bem mais pacata. Em São Paulo, por exemplo, a grande diversão das pessoas de classe média alta era frequentar a Casa Mappin. De preferência na hora do chá, servido em porcelana inglesa e talheres de prata sobre toalhas de linho branco. O Mappin vivia a sua época de maior prestígio e — mal comparando, porque sua influência era muitíssimo maior — representava o papel de um grande shopping center de nossos dias.
Às vezes, o chá se convertia em chá dançante, animado por orquestras típicas como “Los Bohemios de Buenos Aires” ou cantores como Pedro Vargas (“El México que canta y encanta”). Entre meio dia e duas da tarde, o salão de chá convertia-se em restaurante capaz de atender até setecentos fregueses por dia. Esses almoços eram célebres pela freqüência de políticos, por algumas especialidades culinárias exclusivas, como o “marrequinho recheado a Cumberland” e pela qualidade das bebidas importadas.
E não eram só as bebidas que vinham de fora. Até a década de 40, todas as lojas mais finas só ofereciam artigos importados. Mesmo durante a guerra, apesar de todos os transtornos no transporte marítimo, volta e meia um comboio de navios mercantes furava o bloqueio e chegava a Santos carregado de mercadorias, tais como perfumes da Yardley e da Bourjois, Cretones de linho ingleses Sanderson, cachimbos, garrafas para sifão, graxa para calçados Nugget e outras tantas que a elite paulistana julgava necessárias para amenizar a vida nos trópicos.
A queda do preço do café, dificultando as importações, e o progresso da indústria nacional vieram acabar com tudo isso. Em 1946 e 1947, houve uma última febre de importações, sobretudo de eletrodomésticos, dilapidando os 708 milhões de dólares acumulados durante a guerra.
Mas o espírito já não era o mesmo. Para grande espanto deles próprios, muitos brasileiros descobriram durante a década de 40 que os produtos nacionais, antes conhecidos pelo nome genérico de “marca barbante”, podiam ser comparados, eventualmente de maneira favorável, aos que vinham de fora. Nossa participação na guerra também favorecia opiniões e sentimentos nacionalistas. Por precaução, várias empresas ou organizações com nomes estrangeiros resolveram abrasileirá-los. Assim, em São Paulo, a Casa Alemã foi rebatizada de Galeria Paulista de Modas, o Clube Germânia tomou-se Esporte Clube Pinheiros e o Clube Palestra Itália deu lugar à Sociedade Esportiva Palmeiras. Até a São Paulo Railway trocou de nome para Estrada de Ferro Santos-Jundiaí.
Essa última mudança pode parecer desnecessária porque, afinal de contas, éramos aliados dos ingleses. Mas até 1942, quando entramos na guerra para valer, não se sabia bem qual seria o nosso lado. O general Goes Monteiro, ministro da Guerra, e Filinto Müller, chefe da polícia política, eram favoráveis aos nazistas. Oswaldo Àranha, ministro das Relações Exteriores, liderava o grupo dos que apoiavam os aliados. O próprio Getúlio Vargas hesitava, negociando com ambos os lados. (Volta Redonda, por exemplo, foi construída nessa época com dinheiro americano, cobrindo uma oferta da empresa Krupp, alemã.) Somente em janeiro de 1942, ao final da Conferência de Chanceleres Americanos, o Brasil resolveu romper relações com o Eixo. E ainda assim talvez não tivesse entrado realmente na guerra se os submarinos nazistas não tomassem a iniciativa de torpedear nossos navios. No total, perdemos durante a guerra 36 navios mercantes, ocasionando a morte de quase mil marinheiros.
Nessas circunstâncias, os germanófilos ou mudavam de opinião ou ficavam de boca calada. A revolta contra os submarinos nazistas era tanta que a opinião pública não apenas concordou, mas praticamente exigiu que o país participasse da guerra com uma força expedicionária. Inicialmente deveríamos combater na África, mas, afinal, os 25334 soldados da FEB, comandados pelo general João Batista Mascarenhas de Moraes, desembarcaram na Itália, no dia 16 de julho de 1944.
Nos 239 dias em que participamos da campanha da Itália, sofremos 1610 baixas, sendo 465 mortos e 1145 feridos. Em compensação, na localidade de Fomovo di Taro, junto à cidade de Parma, no final de abril de 1945, obtivemos a rendição incondicional da MS.” Divisão alemã, dos remanescentes da 90.a Divisão Panzer e da Divisão Itália, fascista, com um total de quase 15000 homens.
Uma das consequências quase imediatas dessa participação foi a queda do Estado Novo. Não fazia muito sentido lutar com armas na mão em defesa da democracia lá fora e preservar a ditadura dentro do país. Era o que muita gente pensava, embora não se pudesse dizê-lo abertamente por causa da censura que vigorava desde 1937. A pressão exercida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), dirigido por Lourival Fontes, estendia-se a todas as manifestações de caráter público: desde livros escolares até as escolas de samba. Só em 1940 foram vetadas 370 letras de músicas populares. E a lista de temas proibidos que o DIP entregava mensalmente à imprensa incluía toda e qualquer referência que pudesse ser interpretada como negativa, até as mais banais, como a eventual escassez de pescado durante a Semana Santa.
Terminada a guerra essa pressão abusiva tomou-se intolerável. A revolta contava, aliás, com o apoio moral dos EUA, nosso maior aliado, que além da Coca-Cola, das esferográficas e das comédias malucas de Hollywood, também nos exportara sua ideologia favorável às eleições regulares e imprensa livre. Em rápida sucessão, multiplicaram-se os manifestos, as passeatas, as manifestações de estudantes e as brechas na censura. Em 29 de outubro de 1945, finalmente, um golpe militar liquida com o Estado Novo. Logo depois é eleito o presidente Eurico Gaspar Dutra. Deposto, Getúlio Vargas viaja para o Rio Grande do Sul. Mas voltaria outra vez.
Publicado em "Almanaque Abril Especial- Brasil Dia-a-Dia", Editora Abril, São Paulo, 1990, direção de Lucila Camargo, excertos pp. 18-22. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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