Juscelino |
Os "anos dourados" têm Marta Rocha, Taça do Mundo, lança-perfume nos carnavais e Romi-lsetta. O rádio perde sua glória para a TV. E Juscelino quer avançar 50 anos em cinco.
Na madrugada do dia 24 de ago. de 1954, Getúlio Vargas deu um tiro no coração. Saía da vida para entrar na história, como previra ao final de sua carta-testamento. E levava consigo os últimos anos de um Brasil antigo, mais provinciano, mais romântico e mais lento do que o nosso, Brasil do passado, que iria se consumir de vez no grande incêndio de entusiasmo dos anos JK.
Nos anos 50, os brasileiros assistiram ao choque de duas correntes contrárias. Havia, de um lado, uma grande nostalgia pelo passado e, de outro, a ânsia de inaugurar o futuro. E é por isso talvez que os homens e as mulheres que foram jovens ou crianças nesses chamados “anos dourados” sofrem mais do que os outros de um crônico problema brasileiro. É a dupla personalidade, que nos faz alternar, ao longo dos anos, crises opostas de depressão e euforia nacional.
Começou assim: estava todo mundo na silenciosa penumbra das boates ouvindo Maysa Matarazzo no auge da fossa contando que “Meu Mundo Caiu” porque “Ninguém me ama, ninguém me quer” e “risque meu nome do seu caderno, que eu não suporto o inferno do nosso amor fracassado”, quando de repente, sem mais nem aquela, descobrimos que temos a Marta Rocha que é a mulher mais linda do mundo, apesar das duas polegadas a mais, e que “a taça do mundo é nossa” e “com brasileiro não há quem possa”, e levantamos Brasília, uma capital encantada no meio do deserto e, como se tudo isso não bastasse, lançamos a indústria automobilística, construindo com nossas próprias mãos o “prodigioso Romi-Isetta”.
Nessa estranha década de 50, dividida em duas partes, todas as transformações eram possíveis. Ligava-se o rádio à espera do trio Los Panchos com aquele som de bolero envolto num perfume de gardênias e aparecia o pato da Bossa Nova “cantando alegremente qüém qüém”. “Ao balanço das horas”, a linda normalista que costumava chegar “vestida de azul e branco, trazendo um sorriso franco no rostinho encantador”, surgia no meio da juventude transviada gritando frases numa língua estranha: “One, two, three o’clock, four o’clock rock”.
No início dos anos 50, tudo parecia mais simples. Havia getulistas e anti-getulistas; nacionalistas e “entreguistas” que eram, respectivamente, a favor e contra o monopólio estatal do petróleo, logo concretizado com o nome de Petrobrás. Os comunistas acreditavam em Stalin e na ditadura do proletariado, porque Kruschev ainda não havia pronunciado o seu célebre discurso do XX Congresso em 1956. E os católicos seguiam a orientação que vinha do Papa. Colégios de freiras educavam meninas e colégios de padres educavam meninos. E a idéia que em um dia próximo viriam a ser mistos não passaria pela cabeça de ninguém. Assim como não ocorreria a ninguém que, antes do final da década, um barbudo chamado Fidel Castro desceria da Sierra Maestra para instalar um governo comunista na Cuba de Fulgêncio Batista.
Naquele tempo, maconha era coisa de maconheiro, ou seja, sujeito desclassificado, marginal. Em compensação, os lança-perfumes Rodo, Rodouro, Flirt e Rigoletto eram presença obrigatória em todos os bailes de carnaval. Não havia pílula. Moças casavam virgens, mães solteiras acabavam expulsas de casa e as mais pobres, quando se desesperavam ao ser abandonadas, o que não era raro, tomavam guaraná com formicida ou “ateavam fogo às vestes”, porque nos anos dourados a moral era assim. Não havia divórcio. Quem se desquitasse podia apenas recasar no México ou no Uruguai, o que, socialmente, era pouco melhor do que casar “atrás da porta”. O Brasil era um país católico com padres que usavam batina. As seis horas da tarde,- ligava-se o rádio, não para ouvir notícias de engarrafamentos, ainda raros, mas para seguir a hora da Ave Maria.
Ligava-se o rádio, aliás, a todas as horas. Com a multiplicação dos aparelhos e os novos transistores — uma invenção de 1947 —, a era do rádio chegara a seu auge, enquanto a televisão mal ensaiava seus primeiros passos no Brasil. A televisão ainda era, ao que se dizia, novidade insuficientemente testada, com inúmeros riscos para a saúde. Não se recomendava assisti-la por mais de quinze minutos seguidos é sempre a uma distância superior a três metros. Além do mais, ameaçava desencaminhar a juventude, afastando-a da leitura séria, já comprometida pelos gibis. Isso, e mais o despropósito que já se anunciava de eliminar o latim do curriculum escolar, só poderia produzir uma geração incapaz de raciocínio. E a prova desse perigo iminente era o enorme sucesso das chanchadas estreladas por Oscarito e Grande Otelo, como 'Carnaval no Fogo', 'Nem Sansão nem Dalila' ou' Matar ou Correr'.
No cinema, as ambições artísticas maiores ficavam a cargo da companhia Vera Cruz, cujos estúdios paulistas chegaram a cobrir, em 1953, uma área de 25 000 metros edificados, incluindo seis estúdios de filmagens, oficinas mecânicas, fábricas de cenários e uma falsa cidade construída para tomadas exteriores. Mas em 1954, após 22 filmes, a maioria dos quais deu prejuízo, a Vera Cruz encerrou suas atividades. O cinema intelectualizado não foi o forte da década de 50. Apesar de grandes sucessos, como 'O Cangaceiro', dirigido por Lima Barreto e que levou o prêmio especial do júri para o melhor filme de aventuras no festival de Cannes em 1953.
O rádio, o onipresente rádio, supria aliás a sede de comunicação, informação e entretenimento do grande público brasileiro. Havia novelas bem naquele estilo drama- lhão que nos veio de Cuba, programas humorísticos como o 'PRK-30' e o 'Edifício Balança Mas Não Cai', e os anúncios que de tanto serem ouvidos entraram para a memória emotiva de toda uma geração: “Ela é linda.../Aaah.../Mas é noiva.../Oooh.../Usa Ponds...”
Mas o coração do rádio batia sobretudo com seus cantores. Nos programas de auditório organizavam-se eleições apaixonadíssimas para a escolha de reis e rainhas do rádio. Em 1953, Emilinha, a favorita da Marinha, foi eleita rainha do rádio com mais de um milhão de votos, um recorde de fazer inveja às suas muitas rivais como Dalva de Oliveira (1951), Ângela Maria (1954), Vera Lúcia (1955) e Dóris Monteiro (1956). Marlene, rainha de 1949, a favorita da Aeronáutica e maior rival de Emilinha, deixou sobre tudo isso um depoimento contristador: “O negócio era comprado. A Antárctica deu um cheque em branco para eu comprar os meus votos e eu ganhei.”
Os cantores eram alvo da mesma idolatria. A morte de Chico Alves em set. de 1952, quando o seu Buick chocou-se a 130 km por hora com um caminhão na via Dutra, nas proximidades de Taubaté, foi uma tragédia nacional. No velório, realizado na Câmara Municipal, na Cinelândia (RJ), mais de 500 000 pessoas passaram para se despedir do Rei da Voz. Mas não lhe faltaram sucessores: Orlando Silva, o cantor das multidões, Nélson Gonçalves, ex-garçom, ex-lutador de boxe e ex-calouro, reprovado no programa de Ari Barroso, que encontrou o seu rumo em 1952 com uma série de sucessos fulgurantes: 'A Volta do Boêmio', 'Mariposa' e 'Fica Comigo Esta Noite'. E também Ivon Curi, que se lançou cantando músicas francesas ('La Vie en Rose') mas se tomou milionário do disco com 'Xote das Meninas' e 'Amendoim Torradinho'. Já no fim da década, em 1958, Francisco Carlos, o cantor “Namorado do Brasil” foi eleito Rei do Rádio com o apelido de “El Broto”.
No dia 10 de jun. de 1955, o Programa César de Alencar, núcleo dessa galáxia de astros e estrelas, comemorou o seu décimo aniversário com 20 000 pessoas no estádio do Maracanãzinho. Foi o ponto mais alto da era do rádio. A partir daí começou a perder terreno para a televisão que ia se firmando cada vez mais.
O primeiro programa da televisão brasileira — 'TV na Taba' — foi ao ar no dia 18 de setembro de 1950, às 22 horas. O apresentador, Homero Silva, mostrou aos telespectadores as diversas possibilidades da nova invenção, exemplificando com pequenas intervenções do cômico Mazzaropi, do comentarista Aurélio Campos falando sobre esportes e dos atores Lima Duarte e Walter Foster. Lima Duarte, juntamente com Tônia Carreiro, a dupla John Herbert e Eva Wilma do 'Alô Doçura' e Hebe Camargo fazem parte do pequeno grupo de pioneiros que conseguiu chegar aos dias de hoje sem perder a popularidade. Mas havia muitas outras estrelas, algumas de um tipo inesperado. Na falta de filmes publicitários, os anúncios eram feitos ao vivo por garotas-propaganda, como Rosa Maria, que logo reuniam um grande fã-clube. Uma das primeiras publicidades filmadas tinha como vedete uma garotinha-prodígio, Sônia Maria Dorse, que corria para atender o telefone com um vestidinho da casa Clô.
Apareceram logo as primeiras novelas como 'Sua Vida me Pertence', programas de entrevistas como 'Almoço com as Estrelas' e a série infantil 'Sítio do Pica-Pau Amarelo', uma adaptação da obra de Monteiro Lobato que atravessou décadas. Mas, de longe, o preferido dos anos 50 era 'O Céu é o Limite', programa de perguntas e respostas apresentado por Aurélio Campos em São Paulo e Jota Silvestre no Rio de Janeiro, no qual especialistas na vida e obra das personalidades mais desencontradas estarreciam o público com os detalhes de sua erudição e ganhavam pequenas fortunas.
As notícias eram transmitidas pelo 'Repórter Esso', o 'Mappin Movietone', o 'Imagens do Dia' e o 'Edição Extra', esse último apresentado diariamente por Maurício Loureiro Gama e José Carlos de Morais (o Tico-Tico), ao meio- dia.
A televisão dessa época, anterior à invenção do videotape, era feita ao vivo com muita improvisação, jeitinho e doses maciças de bom humor e boa vontade, no que, aliás, coincidia exatamente com o estado de espírito nacional durante a presidência de Juscelino Kubitschek. Na TV, os cenários de papelão desabavam ao toque de atores desastrados, sofás-camas que deveriam se abrir com um leve toque permaneciam teimosamente fechados, enquanto as garotas-propaganda se desfaziam em ataques de riso nervoso. E esses incidentes minúsculos, sempre contornados de uma maneira ou de outra, divertiam o público dias a fio. No fundo, havia a convicção de que na TV, como na vida, tudo iria acabar dando certo.
O próprio presidente, com seu programa de metas e o slogan dos cinquenta anos em cinco, sempre voando de um lado para o outro, transbordava de dinamismo e alegria de viver. Lá, dizia a música de Juca Chaves: “Bossa Nova mesmo é ser presidente/ Desta terra descoberta por Cabral/ Para tanto basta ser tão simplesmente/ Simpático, risonho, original, Voar da Velhacap para Brasília/Ver o Alvorada e voar de volta para o Rio”.
Juscelino, é claro, também tinha inimigos. Mas geralmente conseguia desarmá-los graças a uma política de tolerância e entendimentos, tão típica dessa segunda metade dos anos 50 quanto o óleo de bronzear Dagelle, os óculos Ray-Ban, a Aqua Velva, o náilon, o banlon, o cuba libre e o bambolê.
Apenas duas semanas depois de sua posse, um grupo de oficiais-aviadores rebeldes conseguiu dominar algumas localidades do Pará: Jacareacanga, Santarém, Belterra e Cachimbo. Foi um movimento reduzido e mal preparado, que dias depois viria a se render. Mas na Aeronáutica havia um número considerável de oficiais que, sem chegar a se solidarizar com os rebeldes, eram simpáticos às teses golpistas de direita e lacerdistas radicais. Juscelino não apenas anistiou imediatamente os rebeldes como promoveu os principais cabeças, dissolvendo qualquer veleidade de se retomar e expandir o movimento. Poucos meses depois, estudantes e trabalhadores iniciaram uma série de quebra-quebras no Rio de Janeiro por causa de um aumento de preço dos bondes. Juscelino chamou ao palácio o presidente da União Nacional do Estudantes (UNE), Marcos Heusi Neto, e acertou um acordo terminando logo com os tumultos.
O seu milagre político mais impressionante, no entanto, foi o de ter conseguido contentar ao mesmo tempo liberais e nacionalistas, utilizando capital estrangeiro para lançar as bases da grande indústria nacional. De 1955 a 1961, entraram no país 2 180 milhões de dólares destinados às áreas prioritárias do programa de metas: indústria automobilística, construção de estradas, transportes aéreos, eletricidade e aço. Enquanto isso o PNB subia alegremente a 7,9% ao ano. Havia liberdade. Tudo parecia possível.
Publicado em "Almanaque Abril Especial- Brasil Dia-a-Dia", Editora Abril, São Paulo, 1990, direção de Lucila Camargo, excertos pp. 30-34. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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