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Jânio Quadros se elege e renuncia. Os militares tomam o poder. Caetano Veloso é vaiado ao cantar é proibido proibir e o AI-5 acaba com a legalidade constitucional.
De repente, nos anos 60, tudo começou a acontecer ao mesmo tempo. Como se as transformações da moda e dos costumes, as conquistas da técnica e as reviravoltas políticas tivessem se concentrado nessa única década, privilegiada entre todas, na qual os homens chegaram à Lua e aprenderam a técnica dos transplantes de coração.
Nesses dez anos, o mundo assistiu às guerras do Vietnã e de Biafra, além de outras quinze intervenções estrangeiras e um total de 53 golpes de Estado. Alguns homens se transformaram em mito como o presidente John Kennedy, seu irmão Robert, Martin Luther King e Ernesto Che Guevara. No Brasil, desfilaram nada menos do que seis presidentes: Jusceíino, Jânio, João Goulart, Castello Branco, Costa e Silva e Medici, sem falar das passagens de Ranieri Mazzilli e das duas juntas militares. Em 1964, com a derrubada de Jango, e em 1968, com o Ato Institucional n.° 5, há um desvio violento da trajetória democrática, rompendo-se então com a legalidade constitucional.
A lembrança mais forte dos anos 60, entretanto, não será esse ou aquele acontecimento isolado, mas um estado de espírito, a rebeldia juvenil que contagiou o Brasil junto com o resto do mundo, sobretudo no ano mágico de 1968. Por mais diversas que tenham sido as formas de protesto — maio de 68 em Paris, a primavera de Praga, manifestações pacifistas nos EUA, passeatas no Rio de Janeiro e em São Paulo, mini e maxissaias na Inglaterra, cabelos longos dos Beatles, músicas de Chico e Caetano — houve uma unidade global, uma grande fraternidade juvenil por cima das barreiras das línguas. “O Tietê não é o Sena”, observou o então ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho. Mas não importa. Durante algum tempo, era como se fosse.
Era o tempo em que os Beatles, segundo o próprio John Lennon, tinham se tornado “mais populares que Jesus Cristo”. E todos os ídolos brasileiros andavam na casa dos vinte — Glauber Rocha, Chico Buarque, Caetano Veloso, Roberto Carlos, Elis Regina, Gal, Nara Leão, Maria Bethania, Pelé. Em 1968, Maria Bethania tinha apenas 22 anos e o mais velho do grupo, Glauber Rocha, com 29, ainda não alcançara a idade-limite dos trinta. “Não confie em ninguém com mais de trinta anos”, advertia uma canção.
De toda essa geração, os que se entregaram à militância política não foram certamente os mais felizes. Nas amargas palavras do ex-líder estudantil Vladimir Palmeira: “Fomos presos, torturados, mortos, exilados e não chegamos a lugar nenhum”.
Talvez o início de tudo o que estava por vir tenha sido a eleição de Jânio Quadros. Ele tomou posse na presidência do Brasil na chuvosa manhã do dia 31 de janeiro de 1961, em meio a uma enorme euforia popular. Eleito com 48% dos votos, a maior porcentagem já alcançada, Jânio trazia vastos planos de reforma na política interna e externa, alguns singularmente ousados como a aproximação com Cuba. Mal empossado, no entanto, entrou numa espécie de fúria moralista, proibindo maiôs em concursos de beleza, biquínis nas praias, lança-perfumes no carnaval, corridas de cavalo, brigas de galo e espetáculos de hipnose. Inesperadamente condecora Che Guevara e, então, no dia 29 de agosto, esmagado por “forças ocultas”, renuncia. Assume seu vice, João Goulart.
Assim terminou o que talvez tenha sido o primeiro de uma série de grandes enganos da década. Logo em seguida, haveria outros: no início do mês de março de 1964, às vésperas de sua queda, o presidente João Goulart dormia em paz, tranquilizado pelas palavras do chefe de sua Casa Militar, general Assis Brasil, para quem nenhum outro presidente da República no Brasil tivera um dispositivo militar tão seguro e leal. E de qualquer maneira (muitos acreditavam) os sargentos, cabos e praças das Forças Armadas estavam com o presidente e se negariam a seguir ordens contra ele.
Como prova definitiva, apresentavam-se os acontecimentos do dia 26; quando um destacamento de fuzileiros navais, que deveria prender marinheiros amotinados reunidos no Sindicato dos Metalúrgicos, aderira ao movimento. E se algum perigo restasse, acrescentavam os mais crédulos, lá estavam as milícias populares, os “grupos dos onze” organizados por Leonel Brizola, prontos a pegar em armas ao menor sinal de alerta.
Dividido entre as duas forças que o apoiavam, as esquerdas e o PSD, Jango acabou optando pelas esquerdas. No dia 13 de março, à sombra de um enorme esquema de proteção montado pelo I Exército, subiu a um palanque armado no centro do Rio de Janeiro, ao lado de Brizola e Arraes, para anunciar uma série de medidas ainda mais radicais. Mais tarde, esse comício seria ironicamente conhecido como o “comício das lavadeiras” pois, dizia-se, reuniu uma excepcional presença de “trouxas” e “tanques”. Na época, no entanto, foi tomado como sinal evidente de uma insurreição geral, insuflada de cima para baixo.
Em resposta, as forças mais conservadoras da sociedade, atendendo aos apelos da freira Ana de Lourdes, do deputado Cunha Bueno e do publicitário José Carlos Pereira de Souza organizaram em São Paulo a célebre “Marcha da família com Deus pela liberdade”. O comício do dia 13 reuniu 250 000 pessoas e a marcha da família, 500 000.
No grande redemoinho ideológico dos anos 60, nem Deus sabia mais de que lado estava. Com o Concílio Vaticano II comandando um gigantesco “esquerda volver”, os religiosos à maneira antiga, das circunspectas “madres” dos colégios femininos aos amigos das “beatas de novela”, transformaram-se, de um dia para o outro, segundo a caricatura traçada por Nélson Rodrigues, em “freiras de minissaia” e “padres de passeata”. Entre os políticos civis que apoiaram o movimento de 64, destaca- se a atuação de Carlos Lacerda. Mas em 1966, convencido de que tão cedo os militares não largariam o poder, Lacerda deu uma guinada de 180 graus, aderindo à Frente Ampla e embarcando para o Uruguai para apertar as mãos de seu arquiinimigo, João Goulart.
Nestas circunstâncias, não é de se estranhar que os jovens da década de 60 tivessem dificuldades em compreender o que estava acontecendo no mundo e no Brasil. E que também tenham se enganado, apesar da generosidade de propósitos e da curiosidade intelectual excepcionais.
Ser intelectual na década de 60 — obrigatoriamente de esquerda e se possível marxista — era a atitude e comportamento indispensáveis para se estar na moda. Basta dizer que a visita ao Brasil de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir em 1960 causou, em certos círculos, uma comoção nacional só comparável à passagem de Frank Sinatra, anos depois. Chegar na mesa dos bares levando debaixo do braço 'Os pensamentos do Presidente Mao', 'Revolução na Revolução', de Régis Debray, ou o 'Diário de Guevara' fazia parte da etiqueta obedecida nos anos 60 pela “esquerda festiva”,- expressão inventada justamente nessa época. A juventude não gostava de esportes, atividade considerada intelectualmente suspeita. Não passaria, então, pela cabeça de ninguém que estivesse “por dentro”, a idéia de “pegar jacaré de pé numa tábua” ou, pior, “sair correndo pela rua feito um louco”. Mal se poderia imaginar que tais esquisitices iriam virar manias nacionais com os nomes de surf e jogging.
Zuenir Ventura, em '1968, O Ano Que Não Acabou', lembra muito bem o ambiente da época: “Discutia-se nas universidades, nas assembléias, nas passeatas, nos bares, nas praias: a altura das saias, o caráter socialista da revolução brasileira, o tamanho dos cabelos, os efeitos da pílula anticoncepcional, as teorias inovadoras de Marcuse, as idéias de Lukács, o revisionismo de Althusser. (...) Mais do que discutir, torcia-se: pela vitória dos viet- congs, a favor ou contra as guitarras elétricas na MPB, por Chico e Caetano, pela participação política dos padres e, claro, contra a ditadura”.
Nem todos, porém, estavam ligados nesse tipo de preocupações. Como cantava Roberto Carlos — e Roberto Carlos era o ídolo máximo da Jovem Guarda, O Rei—, “Quero Que Você Me Aqueça Nesse Inverno", e "Que Tudo Mais Vá Para O Inferno”. Mas um sem número de artistas participavam a fundo no engajamento dos anos 60. Foi uma boa época para o cinema nacional. De 1960 a 1964, rodava-se uma média de trinta filmes por ano, inclusive os antológicos 'Vidas Secas, 'Deus e o Diabo na Terra do Sol e 'O Pagador de Promessas', vencedor do primeiro e único Palma de Ouro brasileiro do Festival de Cannes, em 1963.
Cinco anos mais tarde, o diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa conseguia um escândalo de bom tamanho montando a peça 'Roda Viva', de Chico Buarque, segundo as regras do que ele chamava Teatro da Agressão, Teatro da Grossura ou Teatro da Porrada. Tratava-se, em suma, de agredir a platéia “intelectualmente, formalmente, sexualmente e politicamente”. Mas, no caso, o feitiço virou-se contra o feiticeiro pois, uma noite, o teatro foi invadido por um bando do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que espancou sem distinção atores, atrizes e funcionários.
A intolerância da direita, assini como algo que ainda não se chamava “patrulhamento ideológico” das esquerdas, também era freqüente nos festivais da MPB, outra paixão dos anos 60. No III Festival Internacional da Canção, as vaias impediram que Caetano Veloso cantasse “É Proibido Proibir”. O público exigia que o americano Johnny Dandurand, que fazia parte do número, fosse retirado do palco. Inconformado, Caetano improvisou um curioso discurso, que hoje soa profético: “Se vocês em política, forem como são em estética, estamos fritos. Vocês não estão entendendo nada, nada, absolutamente nada’’.
A essas alturas, é verdade, corria o ano de 1968, e os jovens, sobretudo os estudantes, estavam mais preocupados com ações consideradas urgentes do que com análises. As passeatas, uma constante na vida das grandes cidades brasileiras desde 66, quando começaram as campanhas por mais verbas e pelo fim do acordo MEC-USAID, foram tomando-se cada vez mais numerosas e mais violentas, com os jovens recorrendo às pedras e aos coquetéis molotov contra os cassetetes, as bombas de gás lacrimogênio e, finalmente, os tiros de revólver da PM. Deu-se o inevitável. No final de março, durante um confronto no Calabouço, o restaurante dos estudantes cariocas, o jovem Edson Luís caiu ferido mortalmente por uma bala. O seu enterro e a missa de sétimo dia celebrada no dia 4 de abril na igreja da Candelária por d. José de Castro Pinto, vigário-geral do Rio de Janeiro, e quinze concelebrantes, transformaram-se em manifestações que relançaram a escalada. No dia 21 de junho, uma sexta- feira, os choques no centro do Rio de Janeiro duraram nada menos do que dez horas e introduziram uma novidade. Do alto dos edifícios caíram sobre os soldados garrafas, cinzeiros, cadeiras, vasos de flores e até uma máquina de escrever. O balanço parcial dos hospitais cariocas naquela sexta-feira indicava 79 feridos (35 soldados e 44 civis, entre os quais 23 por bala) e quatro mortos.
Menos de uma semana mais tarde, os manifestantes voltaram às ruas para um gigantesco protesto conhecido como a passeata dos 100 000. Não houve repressão. Pelo contrário, o presidente Costa e Silva, irritando profundamente seus colegas militares da linha dura, recebeu os líderes dos estudantes para uma conversa. Foi o último momento de lucidez na escalada de reações extremadas e insensatas de parte a parte.
Já era tarde demais. No mesmo dia da passeata dos 100 000, uma caminhonete da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) era lançada contra os portões do quartel do II Exército, em São Paulo. Começara a luta armada que, no ano seguinte, iria se agravar com o seqüestro do embaixador americano Burke Elbrick. Na Câmara, o deputado Márcio Moreira Alves chamava o exército de “valhacouto de torturadores”. Em resposta, veio o AI-5 fechando o Congresso e interrompendo as garantias constitucionais como o Habeas Corpus. Assim terminou a década da juventude no Brasil. Morreu Costa e Silva. Subiu Medici. Começava o tempo do “Brasil grande”, do “Brasil ame-o ou deixe-o”, do “Milagre”.
Publicado em "Almanaque Abril Especial- Brasil Dia-a-Dia", Editora Abril, São Paulo, 1990, direção de Lucila Camargo, excertos pp. 42-46. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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