Ditadura militar: repreensão |
A era do "milagre" teve Medici, repressão política e a Copa. Mas terminou com Lula no palanque, o fim da censura e a volta dos exilados políticos.
Marli Pereira entrou para a crônica dos anos 70 como um desses cidadãos que emergem do anonimato por um inesperado infortúnio. Após o assassinato de seu irmão, no violento subúrbio de Belfort Roxo no Rio de Janeiro, em 12/10/1979, essa empregada doméstica, negra e com o curso primário incompleto, compareceu a um quartel e identificou, um a um, os policiais militares suspeitos do crime. Dias depois, um incêndio consumiria sua casa; mas nem diante desse intimidante aviso Marli desistiu de lutar pela punição dos culpados.
O caso ganhou destaque e valeu manifestações de apoio à solitária heroína — mas carregava uma particularidade a qual só o tempo deu cores nítidas. O fato é que poucos acontecimentos terão sintetizado tantas questões daquele momento da história do país como a saga da irmã em busca de justiça.
A luta contra os homens que lhe invadiram a casa punha Marli em confronto com os resíduos de um poder arbitrário que marcara dolorosamente o país nos primeiros anos da década. Resíduos porque, então, no final dos anos 70, jazia desativada a máquina repressora que por muito tempo reduzira certos direitos do indivíduo a uma espécie de ficção. Já não havia tortura ou o desaparecimento de opositores do regime; pelo contrário, velhos adversários, beneficiados por uma Lei de Anistia, começavam a retomar do exílio.
Apesar dos estigmas adicionais da condição social e da cor da pele — ou sobretudo por isso —, Marli Pereira encarnava uma figura a quem ninguém mais conseguia ser indiferente: a da mulher que vai à luta. A mais vistosa representante da espécie surgira na televisão, no seriado 'Malu Mulher'. Marli, mesmo sem ter a beleza, o charme e o preparo intelectual da personagem vivida na tela pela atriz Regina Duarte, procedia como uma típica combatente do gênero, num instante em que gritos de libertação partiam também de outros setores da sociedade. Eram grupos que tinham em comum apenas o desejo da afirmação de seus direitos: desde homossexuais decididos a desafiar a moral tradicional até operários prontos a encarar os cassetetes da polícia em busca de melhores salários.
O movimento gay desinibira-se tanto que ostentava publicações próprias como o semanário 'O Lampião', disponível em qualquer banca de jornais. Já os trabalhadores começavam a descobrir o trunfo das greves. Com o relaxamento da censura à imprensa, soube-se então que em 1973 o governo adulterava índices de inflação, surrupiando 11% à realidade, em prejuízo dos assalariados. Ainda assim, em mai. de 1978, quando os empregados da fábrica de caminhões Scania cruzaram os braços, em São Bernardo do Campo (SP), seus dirigentes de classe viveram um instante de perplexidade. “Nem eu nem meus colegas de diretoria tínhamos participado de uma greve antes”, revelaria mais tarde Luís Ignácio da Silva, o metalúrgico Lula, que começava a despontar como o maior líder sindical da história do país. “Quando fomos avisados, a gente não sabia se pulava de alegria ou se ficava com medo.”
Nesse clima de liberdade incipiente, em que os parceiros do drama brasileiro tinham que dar o passo sem saber bem as conseqüências, a coragem da empregada doméstica do subúrbio fluminense aliciava simpatias por todos os lados. “Sou preta e pobre, mas não me considero pior do que ninguém”, resumiu ela. “Tenho pavor de barata, de polícia não.”
Vitórias da mulher
Marli ainda se referia à própria cor como um atributo restritivo de seus direitos, mas já agia em dissonância com o preconceito embutido na idéia. Com suas palavras, ela podia cair ainda na armadilha de um velho condicionamento, mas seu gesto aproximava-se do figurino que ficaria como uma das heranças da década: muitas minorias, e particularmente os negros, adquiriram então maior consciência e orgulho da própria identidade. As mulheres negras, por exemplo, antes preocupadas em alisar os cabelos, agora se dedicavam a criar vistosas trancinhas, às vezes entremeadas de miçangas — soluções estéticas incompatíveis com cabeleiras de outras etnias.
Foi uma singularidade do período esse tipo de reviravolta, em que determinado valor adquiria significado inteiramente oposto ao que ostentava na véspera. E não era raro que a prática de um modismo chegasse à exacerbação. O escritor Jorge Amado não hesitou em declarar sua irritação com o fenômeno, que a seu ver estava “desvirtuando as tradições da Bahia e transformando os baianos em artigos de consumo e folclore”. Mas isso não ocorria apenas no Brasil. Em todo o mundo, por exemplo, o jeans, que na década anterior fora uma espécie de uniforme dos inconformados que negavam a sociedade de consumo, acabou virando roupa chic. Esse era apenas um entre os muitos sinais de que o maniqueísmo radical dos anos 60 ficara definitivamente para trás. No Brasil, os ventos dessa liberalidade sopraram sem muita pressa, em diferentes graus de intensidade, conforme o setor. Afinal de contas, o país, que iniciou a década sob a tutela de um carrancudo regime militar, andou mais devagar no terreno político que na área dos costumes. De fato, se Marli Pereira era novidade ao apagarem-se as luzes da década, Leila Diniz, que morreu em 1972, vivera o suficiente para tomar-se o maior símbolo da emancipação da mulher no Brasil.
A atriz, que mesmo grávida não parou de ir à praia usando sumaríssimos biquínis, e com isso criou aquela moda de jovens gestantes com barrigões à mostra, definia- se como “uma mulher meiga”, capaz de ser compreendida por vários homens, aos quais não prometia fidelidade. “Somos uma grande família”,-ela dissera, referindo-se a esses parceiros, numa célebre entrevista dada no final de 1969 a 'O Pasquim', o irreverente semanário que se consagraria nos anos 70 como o principal porta-voz das idéias e atitudes mais contestadoras da época.
O jornal viveu sob censura prévia durante cinco anos e meio, mas mostrou-se muito mais resistente do que todos os seus congêneres, em geral condenados a uma existência meteórica. Este foi o caso do 'Flor do Mal', 'Pato Macho', da edição brasileira da Rolling Stone e muitos ou tros. Cultura, humor e política eram a substância básica dessas publicações, que nos anos 70 fizeram a idade de ouro da imprensa alternativa no Brasil. Algumas delas, como 'Opinião', 'Movimento', 'Versus', 'O Bicho' ou 'Ovelha Negra', chegaram a ter um público fiel, que aguardava com ansiedade a saída — ou não — da edição seguinte. Em certos casos, uma publicação morria para logo depois surgir em seu lugar uma outra, feita pela mesma equipe. Foi assim que um grupo de jornalistas pôde se manter ativo por mais tempo no universo da chamada imprensa nanica, publicando primeiro 'O Bondinho', depois o 'Ex'.
Edições seguidas eram apreendidas nas bancas, levando à insolvência as pequenas redações, enquanto muitos dos leitores, pelo simples fato de assumirem um estilo de vida diferente do comportamento da maioria, davam pretexto à ação truculenta da polícia. Acostumada a prender estudantes por motivos políticos, ela agora estendia sua vigilância ao comprimento dos cabelos dos jovens, além de vê-los sempre como potenciais consumidores de drogas. Em 1971, o ator e diretor americano Julien Beck, sua mulher Judith Malina e vários integrantes de seu grupo 'Living Theatre', que tinham vindo ao Brasil para participar do Festival de Inverno de Ouro Preto, foram presos naquela cidade mineira sob acusação de consumo de maconha e atividades subversivas. É quê na casa alugada por Beck foram encontrados livros de Karl Marx, Mao Tsé-Tung e Celso Furtado.
Um festival como o de Ouro Preto era sempre uma atração para aqueles jovens cabeludos, descendentes diretos dos contestadores da década anterior. Havia quem ainda os chamasse de hippies, mas não só o termo se desgastara como, neles, o ímpeto da negação fora substituído por uma atitude de maior indiferença, repassada às vezes de misticismo.
Esses peregrinos elegeram como um de seus templos favoritos uma até então desconhecida colônia de pescadores, Arembepe, a 50 km de Salvador. Ali havia, em jan. de 1972, mais de duzentos jovens, muitos abrigados em barracas, mas em plena harmonia com a comunidade local — a ponto de poderem usar como esconderijo as casas dos pescadores, naquele mesmo verão, quando a polícia chegou em busca de tóxicos.
Outro reduto histórico desses últimos legionários da contracultura foi o píer de Ipanema. Naquela praia do Rio de Janeiro construía-se um super-esgoto, cujas tubulações, ao avançar mar adentro, tiveram o efeito de alterar o regime das ondas, fazendo-as quebrar mais forte. Os primeiros a chegar, portanto, logo no início da década, foram os surfistas. Mas ao redor daquela armação de ferro, a princípio associada à desagradável idéia da finalidade de um esgoto, floresceu uma comunidade descontraída e democrática, que misturava dourados filhos da classe média, moradores do subúrbio, feministas, gays, gente anônima e celebridades. A movimentação das máquinas usadas na construção do superesgoto fez surgir na praia pequenos montes de areia, que forneciam um providencial assento para quem se cansasse da agitação. Assim nasceram as “dunas da Gal’' pois a famosa cantora baiana também dava a contribuição de sua presença ao folclore do píer.
Ideias em voga, que faziam de Marx, Marcuse e McLuhan os autores mais citados da época, embora nem sempre lidos, habitavam as conversas dessa tribo de muitas faces, que à noite se dividia por outros recantos onde se podia sentir a pulsação cultural do momento. No Teatro Ipanema, a peça 'Hoje é Dia de Rock' impressionava alguns espectadores, a ponto de fazê-los voltar para revê-la uma infinidade de vezes. A cumplicidade com o público levou o pessoal do teatro a dar um tom polido e curioso à normalmente seca proibição do uso de cigarros. “Infelizmente não fume”, dizia uma placa. Afinal, ainda ressoava no ar a polêmica música “É proibido proibir”, de Caetano Veloso, que por um momento se achava às turras com o que chamou de “público universitário de esquerda”.
Maria Bethânia, por sua vez, apostava na emoção ao fascinar os cariocas com o show 'Rosa dos Ventos', que se tomou um marco pela inserção de textos da lavra de autores como Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes e Clarice Lispector. E havia, por fim, o deboche do Dzi Croquettes, aquele grupo de dançarinos que, com lábios pintados, cílios postiços e pernas cabeludas à mostra, faziam questão de levar para o palco “a parte feminina que todo homem tem”.
Esse espírito de pilhéria na abordagem da sexualidade ganhava trânsito não apenas entre os homens. No início dos anos 70, as mulheres começavam a usar despojadas batas, sob as quais algumas acomodavam uma pequena almofada, destinada a criar a ilusão de gravidez. Em matéria de moda feminina, aliás, experimentou-se um pouco ae tudo — tanto que, quando a década terminava, a minissaia, que já vivera seus tempos gloriosos nos anos 60, voltou à cena.
Ao longo da década, de um modo geral, as mulheres puderam sentir-se muito menos cerceadas. Festejaram numerosas vitórias — da instituição do divórcio, que permitiu legalizar a situação de muitos casais, à desinibida invenção da tanga, moda nacional que chegou a cruzar fronteiras, ou ainda ao prestígio do feito de Rachel de Queiroz, primeira mulher a conquistar uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Mas conheceram também duros tropeços, e o maior deles foi uma sentença judicial que, em meados de 1979, absolveu Raul Fernando do Amaral, o “Doca” Street, da morte da colunável mineira Angela Diniz, sob a arcaica alegação de “legítima defesa da honra”. (Um novo julgamento condenaria o assassino a quinze anos de prisão, mas só na década seguinte.)
Nesse capítulo de violências contra as mulheres, não foram poucos os crimes em que se misturavam a presença de gente rica ou influente, o uso de drogas e uma renitente frouxidão da polícia em apurar o que acontecera. Foi assim nos casos das meninas Aracelli Cabrera Crespo, no Espírito Santo, e Ana Lídia Braga, em Brasília, ambas drogadas, seviciadas e mortas em 1973. Outro assassinato que chocou a opinião pública foi o da carioca Cláudia Lessin Rodrigues, morta numa festa regada a cocaína e cujo corpo, com sinais de violência sexual, apareceu num penhasco da avenida Niemeyer, no Rio de Janeiro. Dos envolvidos, só o cabeleireiro George Khour foi preso, enquanto o milionário Michel Frank se safava indo morar na Suíça.
O caso Aracelli inspirou um livro em que o jornalista carioca José Louzeiro expunha a displicência das investigações. Poucos, no entanto, puderam ler a obra: o ministro da Justiça, Armando Falcão, valeu-se do mecanismo ainda vigente da Censura para impedi-la de circular. A polícia, naquele início dos anos 70, exibia uma inabalável morosidade em casos como esse, mas, no geral, tinha uma consumada imagem de afoiteza — ainda em vigor bem mais tarde, no episódio da invasão da casa da doméstica Marli.
Madrugadas de medo
Era uma atitude que deixava a todos inseguros: mesmo os homens de bem, pagadores de impostos. O compositor Chico Buarque tratou do assunto na música “Chame o ladrão” com uma sutileza capaz de driblar a Censura — embora para isso tivesse de se ocultar sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide, já que as obras com seu verdadeiro nome esbarravam na vigilância sistemática da tesoura. A letra do samba narra o drama de um cidadão que acordou com o pesadelo de ter a polícia à porta, e o original apelo contido no título — invertendo o tradicional grito de “pega ladrão!” — dá bem a idéia do quanto ansiavam pela presença de qualquer testemunha os que recebiam tão ameaçadora visita. Ela acontecia com tanta freqüência na vida real que logo passou a alimentar uma amarga estatística. Em 1974, num único mês, a prática das prisões ilegais gerou um saldo de 23 dirigentes comunistas desaparecidos sem deixar rastros. Mesmo quando as famílias recebiam os corpos das vítimas, os órgãos de repressão saíam-se com enredos inverossímeis para explicar o que acontecera. Um dos casos mais célebres, o do ex-deputado Rubem Paiva: ele nunca mais foi visto depois de ser levado para prestar depoimento à polícia do Exército, em 1971, no Rio de Janeiro. Alegou-se que tinha sido arrebatado das mãos de seus captores por um comando terrorista. Esse Brasil atormentado era o tributo que o cidadão comum pagava ao confronto entre militantes políticos que tinham optado pelo caminho da força e o dispositivo montado pelo governo para replicar no mesmo tom. Os que tinham trocado a palavra pelo fuzil entraram em cena com estardalhaço no alvorecer da década. Num único ano, 1971, eles sequestraram os embaixadores Ehrenfried von Holleben, da Alemanha e Giovanni Enrico Bücher, da Suíça, e o cônsul japonês em São Paulo, Nabuo Okuchi, exigindo como resgate o vôo de companheiros presos para a liberdade no exterior. Nesse jogo duro, logo ficou evidente o maior poderio do lado oficial: em pouco tempo foi reduzida a pó a chamada guerrilha urbana. Ela, que praticara assaltos a bancos e ações como a que fuzilou numa rua de São Paulo o industrial Henning Boilensen. tido como um dos financiadores da Operação Bandeirantes, afiado instrumento de combate aos inimigos do regime. Também não foram longe os ativistas que cultivaram a utopia da guerrilha rural. Poucos deles escaparam ao círculo de ferro que se fechou sobre seus redutos — vale do Ribeira, em São Paulo, Cascavel, no Paraná, e Xambioá, no Araguaia.
Ufanismo na avenida
Esse capítulo da história contemporânea, naturalmente, não era acessível ao público. Retidos no filtro da Censura, assuntos desse tipo ficavam submersos numa enxurrada de notícias e imagens que enchiam os olhos, e eventualmente o peito, do brasileiro comum. Era só ligar a televisão e ver aqueles colonos que partiam do Sul, cheios de esperança, para povoar pedaços intocados de um Eldorado distante, a Amazônia — agora, aliás, bem mais próxima graças à maravilha da rodovia Transamazônica. Ou para acompanhar na TV, pela primeira vez ao vivo e em cores, graças à Embratel, as imagens da Copa de futebol, em que o Brasil demonstrou definitivamente sua superioridade, ao tornar-se tricampeão mundial, no México, em 1970. Também por essa época a imprensa começou a dedicar mais espaço à carreira de um jovem e talentoso piloto de automobilismo, Emerson Fittipaldi, que em 1974 já seria bicampeão mundial de Fórmula 1.
Havia, então, dois Brasis. O das façanhas memoráveis tinha seu retrato pintado pela propaganda oficial, já que o clima de euforia fomentava adesões fáceis. De fato. ocorreram episódios quase surrealistas: em 1973 o governo do gen. Garrastazu Medici teve a excelência de seus programas sociais celebrada na passarela do carnaval carioca, quando a escola de samba Beija-Flor empunhou o enredo “PIN-Proterra-Funrural”. E qual era a canção que mais fazia sucesso no rádio naquele início dos anos 70? A marchinha 'Eu te amo, meu Brasil', da dupla Don e Ravel, que chegou a ser recebida no Palácio do Planalto.
O outro Brasil, oculto do grande público pelo véu da Censura, mal podia esconder a olhos atentos uma das mais dilacerantes chagas de toda a sua história: a existência de sombrios porões onde se praticava a tortura. Já em 1970, a 5ª Assembléia da Federação Luterana Mundial deixou de ser realizada em Porto Alegre — a instituição decidiu transferi-la para a França em protesto contra o tratamento dispensado a presos políticos no Brasil. De fora e de dentro do país levantaram-se vozes exigindo o respeito aos direitos humanos. Seria no entanto necessário esperar o transcurso de mais da metade da década, para finalmente se ter certeza de que não havia mais tortura de presos políticos no país.
Entorpecidos por um clima que não encorajava o debate e a participação política, muitos resumiam seu ponto de vista numa mensagem já adquirida impressa em adesivos que fixavam nos vidros de seus automóveis: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Como não havia outra escolha, tratavam de encarar as questões imediatas do cotidiano. E se o processo de concentração de renda, só denunciado mais tarde, aprofundava o abismo entre ricos e pobres, a verdade é que a classe média pôde ter em alguns momentos a sensação da afluência. A produção de bens de consumo crescia e escoava-se sem dificuldade. E havia ainda o sonho da riqueza fácil no jogo das Bolsas de Valores — que chegaram a provocar alguns tombos monumentais — ou a sua versão mais popular, as loterias, que viraram febre nacional.
Mais vantajoso, porém, foi o investimento que muitos fizeram na obtenção de um corpo saudável. Em meados dos anos 70, teste de Cooper era uma dessas expressões agregadas ao linguajar diário com a força de uma novidade irresistível. Sem procurar entender exatamente o que propunha Kenneth Cooper, muitos brasileiros aderiram ao que lhes parecia o essencial do programa desse professor de educação física tomado mundialmente célebre da noite para o dia: correr.
Na segunda metade da década de 70, gastaram-se como nunca solas de tênis nesse singelo exercício. Assim como muito suor foi derramado nas academias de ginástica. Também os homens se soltaram nas pistas de dança, inspirados pela atração do ator americano John Travolta no filme 'Os Embalos de Sábado à Noite', deixando desconcertadas suas parceiras, nas recém-criadas discotecas. Da mesma forma, segundo uma tendência mundial, os brasileiros aderiram com gosto aos patins, ao skate, à asa delta e ao windsurf, bem no espírito de uma década que passou da contracultura ao culto do corpo. Dentro desse espírito, em 1978 viu-se com naturalidade, estampada em todos os jornais, uma foto do então candidato ungido à presidência da República, o general João Baptista Figueiredo, trajando uma sumária sunga e exercitando-se com halteres.
A batalha final
É certo que então o país já não era o mesmo dos primeiros anos 70. Entre um e outro momento tinham ocorrido os decisivos acontecimentos do período de governo do gen. Ernesto Geisel. Foi durante a gestão desse presidente, o penúltimo do ciclo dos militares, que se travou nas entranhas do poder um surdo conflito, em que triunfou a ala disposta a encaminhar o país rumo à conciliação e ao estado de direito.
Ocorreram então uma sucessão de episódios conturbados e dramáticos que antecederam a distensão política proposta pelo governo. No ano de 1975, em São Paulo, o jornalista Vladimir Herzog, incluído numa leva de cidadãos detidos para prestar depoimentos sobre supostas atividades subversivas, aparece morto na cela onde se achava preso. A versão oficial foi de suicídio por enforcamento, mas a manifestação pública de 8 000 pessoas que compareceram ao culto ecumênico em memória do morto, na catedral da Sé, adquiriu o sentido e a força de um protesto inédito durante os governos militares. Três meses depois, as circunstâncias da morte do jornalista repetiam-se no caso do operário Manoel Fiel Filho, que também saiu sem vida de uma cela sob jurisdição do II Exército. Numa ação fulminante, o presidente Geisel demitiu o comandante da unidade, general Ednardo D’Ávilla Mello. Ficou claro, mesmo naqueles tempos de laconismo oficial, que a partir dali os superiores hierárquicos responderiam pela segurança dos presos sob sua guarda — e, como num passe de mágica, a triste crônica dos torturados e desaparecidos tornou-se coisa do passado.
Restaria ainda, a assombrar o projeto da normalização institucional, a ação de extremistas, agora de direita, cuja lógica parecia ser a da aposta no caos, e que se dedicavam à periódica promoção de atentados. Em set. de 1976, um Volkswagen voou pelos ares diante da sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no Rio de Janeiro. Seu ocupante, o bispo de Nova Iguaçu, d. Adriano Hypolito, fora pouco antes retirado do automóvel por um grupo de desconhecidos. Logo depois o transferiram para outro veículo e o encapuzaram. A vítima teve o corpo manchado com tinta vermelha — sarcástica alusão dos sequestradores a sua suposta inclinação comunista, negada publicamente pelo religioso. Antes de abandoná- lo despido numa rua deserta e os agressores avisaram: “Você só escapou desta porque o chefe ainda não quer mortes”.
Também aqueles que se valerem de métodos mais civilizados para se opor à liberalização do regime faziam seus lances. Pela metade da década, eles se aglutinavam em torno da figura do então ministro doExército, gen. Syivio Frota, para fazer dele o sucessor de Geisel na Prepresidência da República. Era o sonho dos nostálgicos de tempos mais duros do regime. Mas eles viram ruir suas chances de vitória em out. de 1977, quando o presidente Geisel jogou e venceu sua definitiva queda-de-braço em favor da abertura política, ao demitir Sylvio Frota do Ministério. O caminho, agora, não tinha volta. Em 1978, o gen. Figueiredo, o último dos presidentes fardados, expressou com rude clareza — e numa curiosa mensagem em que a forma contrastava com o conteúdo — a afirmação de que os dias de regime duro estavam contados: “É pra abrir mesmo”, bravateou Figueiredo, “quem não quiser que abra, eu prendo e arrebento”. Não foi preciso.
Os novos tempos
Seguiu-se uma ampla reconciliação nacional, institucionalizada em ago. de 1979 pela Lei da Anistia. Foi um momento feliz para uma nação que então amargava tropeços de outro tipo, pois ao contrário do que imaginara anos atrás, seu território não era mais aquela ilha de prosperidade num mundo às voltas com a escassez.
Tinham-se esfumaçado certas miragens do início da década, quando dólares excedentes disponíveis convergiam para aquela espécie de última fronteira do capitalismo em que se convertera o Brasil. Havia agora uma imensa dívida externa a pagar, agravada pelo impacto da crise do petróleo que afetou todos os países ocidentais, especialmente os mais pobres. Era, portanto, compreensível a excitação provocada pelas sondas da Petrobrás que passaram a perfurar o subsolo brasileiro. Em 1974, entusiasmado com a aparente extensão de uma bacia petrolífera no litoral fluminense, o ministro das Minas e Energia Shigeaki Ueki, declarou-se pronto a dançar fantasiado de barril de petróleo na praça dos Três Poderes. Os frutos da prospecção, no entanto, acabaram não justificando o arroubo cívico-carnavalesco, e a população teve que aprender a conviver com postos de combustível fechados nos fins-de-semana, altas tarifas de pedágio nas estradas e outras formas de desestimulo ao uso do automóvel.
Mas, pelo menos, já se podia protestar nas praças públicas. E houve até casos de excessos que fizeram subir a temperatura política — o mais delicado aconteceu em Florianópolis, em 1979, quando o presidente Figueiredo foi apupado por uma multidão. Alguns estudantes foram presos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Podia-se também lançar um olhar crítico sobre o que tinha sido aqueles anos de mudez compulsória. Com a abertura política, ganhavam direito à existência pública algumas letras de músicas trancadas por muito tempo nas gavetas da Censura, bem como textos teatrais antes impedidos de chegar ao palco. Entre esses, 'Rasga Coração', a obra-prima de Oduvaldo Vianna Filho, o jovem dramaturgo que morrera em 1974 sem ver a peça encenada.
Em seus anos de atuação mais feroz, a Censura olhara tudo com desconfiança, a ponto de proibir em 1976 um show do balé Bolshoi, suspeitíssimo por vir da União Soviética. Também nesse ano ela barrara o livro 'Feliz Ano Novo', de Rubem Fonseca — uma coleção de contos. Antes, em 1975, naufragara no festival de vetos o plano da Rede Globo de pôr no ar a novela 'Roque Santeiro', de Dias Gomes — quando ressuscitada um decênio depois, cativou com risos uma audiência de porte nacional; mas dificilmente chegou a ser considerada uma obra capaz de abalar um governo.
Durante todo o período de bloqueio ao direito de expressão, fermentou uma sólida coesão contra o regime, uma aliança de forças onde parecia impossível a divergência. Quanto tempo duraria, sob os novos ventos da liberalização, aquela estranha unidade? Muito pouco. Em 1979, o cineasta Cacá Diegues denunciou um novo tipo de censura, representado por gente de esquerda que, com influência nos meios culturais e de comunicação, tentava determinar rumos e limites às manifestações dos artistas. Eram as “patrulhas ideológicas”, na definição do cineasta. “Elas ficam te vigiando nas estradas da criação para ver se você passou da velocidade permitida”, acusou Diegues.
Foi uma dura pancada, pois poucas coisas poderiam doer mais à intelectualidade do que um rótulo evocativo de uma repressão que se costumava debitar, até então, exclusivamente ao lado oposto. A idéia do patrulhamento ideológico, expressivo legado da década para os dicionários do futuro, seria um eficiente antídoto contra aquelas investidas que pretendiam colocar um novo autoritarismo no lugar do antigo. Os tempos, definitivamente, eram outros: terminara a fase das unanimidades, fossem elas de que lado fossem, e a sociedade brasileira passava a viver os desafios da vida com liberdade.
Publicado em "Almanaque Abril Especial- Brasil Dia-a-Dia", Editora Abril, São Paulo, 1990, direção de Lucila Camargo, excertos pp. 56-65. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
No comments:
Post a Comment
Thanks for your comments...