7.31.2018

MITOLOGIA OCIDENTAL: DISSOLUÇÃO E TRANSFORMAÇÃO


No culto matinal, um padre da Igreja Anglicana se dirige à origem e base do Universo com a seguinte invocação: "Deus Eterno e Todo-poderoso, Rei dos Reis, Senhor de todos os Senhores, Regente único de todos os Príncipes, que em Vosso Trono olhais por todos os habitantes da Terra, a vós imploramos com fervor que volteis Vosso olhar para nossa soberana Rainha Elizabeth e toda a família real. Concedei-lhe em abundância os bens celestiais, vida longa, riqueza e saúde etc."

Obviamente, é uma linguagem de adulador profissional na corte. Pois o mais básico modelo, ou imagem, em vigor na civilização ocidental tem sido a idéia do universo à semelhança de uma monarquia política, o que é extremamente problemático para os cidadãos dos Estados Unidos, onde se espera que acreditemos que a república é a melhor forma de governo. Mas um imenso número de nossos cidadãos acredita que o universo é uma monarquia e, se o universo é uma monarquia, essa é, evidentemente, a melhor forma de governo. Assim, até muito recentemente, ninguém podia se opor em sã consciência a lutar numa guerra, a não ser que declarasse solenemente acreditar que recebia ordens de um Ser Supremo e portanto de um escalão de comando superior ao do Presidente dos Estados Unidos.

Isso criava grande dificuldade para budistas ou taoístas, que não acreditam num Ser Supremo nesse sentido. Entretanto, adverti muitos pacifistas convictos de que, quando dizem as palavras "Ser Supremo", os legisladores estão tentando usar uma expressão vaga e não a definição de uma crença teísta. Em 1928, o Parlamento Britânico se reuniu para discutir a autorização de um novo livro de oração para a Igreja Anglicana. A autorização não foi concedida porque julgaram o livro muito "alto clero". Mas, durante o debate, alguém se levantou e disse: "Não é meio ridículo que esse corpo legislativo secular seja chamado para decidir sobre as questões da Igreja? Afinal, há tantos ateus entre nós!" Outro membro do Parlamento respondeu: "Ah, não creio que haja ateus aqui. Todos acreditamos que exista alguma coisa em algum outro lugar." Assim, penso que a expressão "o Ser Supremo" significa alguma coisa em algum outro lugar.

A base do senso comum por trás de grande parte das leis e instituições sociais dos Estados Unidos é uma teoria do universo fundamentada nas antigas monarquias despóticas do Oriente Próximo. Na verdade, títulos como "Rei dos Reis" e "Senhor de todos os Senhores" eram típicos dos imperadores persas. Os faraós do Egito e o legislador Hammurabi forneceram um modelo de pensamento sobre este mundo. Pois a idéia fundamental subjacente ao imaginário do livro do Gênesis e, conseqüentemente, das tradições judaica, islâmica e cristã é a de um universo como um sistema de ordem imposta de cima pela força espiritual, à qual devemos obediência. Essa idéia comporta o seguinte complexo de subidéias:
(1) Que o mundo físico é um artefato. É algo feito, construído. Ademais, implica a idéia de que é uma criação em cerâmica.

O livro do gênesis diz que o Senhor Deus criou Adão com barro e, tendo feito o modelo em argila, soprou o sopro da vida em suas narinas e a figura de argila tornou-se a incorporação de um espírito vivo. Esta é a imagem básica inserida profundamente no senso comum da maioria dos povos do mundo ocidental. Assim, é natural que uma criança educada na cultura ocidental pergunte à mãe: "Como foi que me fizeram?" Achamos muito lógico perguntar: "Como foi que me fizeram?" Mas acho que uma criança chinesa não faria essa pergunta. Não ocorreria a ela. A criança chinesa poderia dizer: “como foi que eu cresci?", mas não "Como foi que me fizeram?” no sentido de ter sido construído, montado, formado por alguma substância básica, inerte e, portanto, essencialmente boba. Pois quando tomamos a imagem da argila, não esperamos ver a argila por si só formando um vaso. A argila é passiva. A argila é homogeneizada. Não tem uma estrutura especial. É uma espécie de grude. Para assumir uma forma inteligível precisa ser trabalhada por uma força e uma inteligência externas. Assim, temos a dicotomia da matéria e da forma, que encontramos em Aristóteles e mais tarde na filosofia de Santo Tomás de Aquino. A matéria é uma espécie de coisa básica que só toma forma com a intervenção da energia espiritual. Esta tem sido uma questão básica para todo o nosso pensamento — o problema da relação entre matéria e mente.

Pois como pode a mente exercer influência sobre a matéria? Afinal, todo espírito que se preza atravessa paredes, e, se ao atravessar a parede não desloca um tijolo sequer, como um espírito que habita a máquina, um espírito que habita o corpo, levanta o braço e mexe a cabeça? Esta tem sido uma questão fundamental para o pensamento ocidental, porque fizemos uma distinção entre a matéria bruta não-inteligente e o espírito ativo inteligente.

Muito da filosofia da arte no Ocidente imagina o trabalho do artista como uma imposição da vontade sobre um material intratável. O escultor bate a pedra até que se submeta à sua vontade. O pintor pega óleos e pigmentos inertes e lhes dá forma... e tantos pintores e escultores sentem que o material com que trabalham é sempre intratável, que nunca conseguem dominá-lo completamente porque a natureza física, material e, portanto, diabólica da coisa com que trabalham resiste sempre à visão que o espírito quer representar. Mesmo um grande historiador da arte como André Malraux fala dessa tensão entre a visão do artista, sua vontade e sua técnica, e a intratabilidade material, grosseira, da coisa. Também no senso comum, no cotidiano, pensamos o mundo material como uma espécie de amálgama de argila, de matéria formada. Chegamos à estranha depravação de pensar que as árvores são feitas de madeira. Ou que as montanhas são feitas de pedra, da mesma maneira que este tablado é feito de madeira pelo carpinteiro, e talvez não seja insignificativo que Jesus fosse filho de um carpinteiro, bem como filho do Arquiteto do universo. Obviamente, a árvore não é feita de madeira. A árvore é madeira. A montanha não é feita de pedra. É pedra. Toda a questão da ciência ocidental para entender a natureza do mundo físico foi originalmente a tentativa de descobrir qual é a matéria básica e, além dela, qual é o plano, o projeto, na mente do fabricante.

A essa altura os físicos ocidentais já abandonaram a questão "O que é a matéria?", porque sabem que só podemos descrever os processos físicos em termos de estrutura, em termos de forma, em termos de padrão. Não se pode dizer o que é a coisa. Quando uma descrição científica toma a forma de uma equação, como a + b = b + a, ou l +2 = 3, todo mundo entende o que significa. É uma afirmação perfeitamente inteligível. Sem que ninguém precise dizer o que a significa, o que b significa, nem um o-quê, dois o-quê, três o-quê. O padrão, por si só, é suficiente. Pois a física moderna entende que o que acontece no mundo, o que somos, é apenas padrão. Imagine, por exemplo, uma corda em que o primeiro metro é feito de cânhamo, o segundo de seda, o terceiro de algodão e o quarto de náilon. Você dá um nó nessa corda, um nó corrediço simples, e o movimenta pela corda. O material do nó vai mudando, mas o nó permanece o mesmo. Da mesma maneira, cada um de nós é reconhecível como indivíduo em virtude de ser um padrão consistente de comportamento. Tudo o que poderia ser descrito como nossa substância, isto é, o leite, a água, o bife etc., que nos compõe (pois somos o que comemos), está em mudança constante, e qualquer coisa que pudesse ser considerada como componente do nosso corpo está sempre de passagem. Hoje você conhece o seu amigo de ontem porque reconhece um padrão consistente de comportamento. O que a ciência estuda, o que a ciência descreve hoje, é apenas padrão. Mas o indivíduo médio ainda não se recuperou da superstição de que, por baixo dos padrões, dentro dos padrões, existe algum tipo de coisa. Pois quando examinamos algo, vemos primeiro o padrão, a forma, e só depois perguntamos: "Essa forma é composta de quê?", e então pegamos o microscópio para olhar atentamente o que pensávamos ser a substância de, por exemplo, um dedo. Descobrimos que a suposta substância é um belo desenho minúsculo de células. Vemos uma estrutura, mas quando vemos esses pequenos padrões chamados células individuais, tornamos a perguntar: "De que são feitas?", e isso exige um microscópio de maior precisão, uma análise mais minuciosa. Aumentando um pouco mais o grau de ampliação, descobrimos que as células são moléculas, mas continuamos perguntando: "Qual é a coisa que compõe a molécula?" O que de fato descobrimos nesse processo é que o que chamamos de "coisa" são apenas padrões vistos fora de foco. É impreciso, e a coisa toda é uma imprecisão. Quando saímos da imprecisão e ajustamos o foco, se tornam padrões. Então, o que realmente existe é o padrão. Esse mundo é energia dançante.

Embora este seja o ponto de vista do mais recente pensamento científico ocidental, não é o senso comum da média das pessoas. Ainda não é a imagem segundo a qual os indivíduos dão sentido ao mundo, e essa é minha definição de "mito". Mito, não com o significado de falsidade, mas num sentido muito mais profundo do mundo, é um imaginário a partir do qual extraímos sentido da vida. Quando alguém tenta explicar a eletricidade a um leigo, por exemplo, usa a imagem da água ou de como a água flui. O leigo entende. O que o leigo não entende é o comportamento da eletricidade. Ou um astrônomo que, tentando explicar a natureza do espaço curvo, pode comparar a construção do espaço à superfície de ura balão com pintinhas brancas. Quando se enche o balão, as pintinhas se afastam cada vez mais umas das outras, o que é mais ou menos como o universo em expansão. Ele está usando uma imagem, e não dizendo que "o mundo é um balão"; está dizendo que "é como um balão". Assim, da mesma maneira, nenhum teólogo sensato jamais disse que Deus é literalmente o pai do universo, que Deus é um pai cósmico, mas que Deus é como um pai. É uma analogia. Más a imagem tem sempre uma influência mais forte sobre nossos sentimentos do que idéias abstratas e sofisticadas. Portanto, a imagem de Deus como o rei político, o pai legítimo, teve ampla influência sobre os sentimentos de cristãos, judeus e muçulmanos durante muitos e muitos séculos. No decorrer do tempo, tornou-se uma imagem descabida e teve de ser abandonada porque ninguém quer se sentir observado o tempo todo por uma autoridade que o julga, por mais benéficas que sejam suas intenções. Vocês devem se lembrar dos seus tempos de escola, cada um em sua carteira escrevendo uma redação ou fazendo um exercício de matemática, e de vez em quando a professora chegava devagarinho por trás e olhava por cima do seu ombro para ver o que você estava fazendo. Ninguém gosta disso. Ainda que você tenha o maior respeito pela professora, nem por isso quer ser vigiado. A idéia de que estamos sempre sendo observados por alguém que nos conhece a fundo e nos julga é profundamente constrangedora: precisamos nos livrar disso. Assim sobreveio a "Morte de Deus", isto é, a morte dessa idéia específica de Deus, que foi substituída, no curso do desenvolvimento do pensamento ocidental nos séculos XVIII e XIX, por um outro modelo de universo, conservando porém uma continuidade com o modelo do universo que nos foi passado pela Sagrada Escritura e pela tradição cristã.

Vamos recordar que o modelo do mundo, o mundo feito por Deus, era basicamente um artefato, um constructo, um mecanismo e, portanto, governado pela lei. Supunha-se que todos os processos no universo funcionavam em obediência à palavra de Deus. Pois, como diz a Bíblia, "pela palavra do Senhor se fez o céu e todos os seus habitantes pelo sopro de sua boca." No princípio era a Palavra... então
""Droga!", disse certa vez um jovem
Pois pareço ser de fato
Uma criatura que se move,
Em trilhos determinados:
Nem ao menos sou um ônibus, sou um bonde!"

Toda a busca de conhecimento no mundo ocidental foi para determinar as leis, a Palavra que foi lançada no princípio e é obedecida por todos os processos vivos. Se pudéssemos entender a palavra de Deus, poderíamos predizer o futuro. Logo, grande parte das profecias, principalmente o Velho Testamento, consiste em livros escritos pelos que ouviram a palavra do Senhor e sabiam o que iria acontecer. Esta é a base da ciência ocidental. É a idéia de profecia, de previsão, porque se você conhece o futuro, pode se preparar para ele e assumir o controle. Mas ao mesmo tempo isso contém uma espécie de nêmesis porque, se você conhece o futuro, a única coisa que o futuro diz com certeza é "morte e prestação de contas". Principalmente a morte... você vai morrer. Você vai acabar. O futuro só pode dar certo por algum tempo, mas no fim é o Juízo Final, a não ser que você consiga acreditar que, por meio de uma intervenção sobrenatural depois do Juízo Final, da inevitável decadência de todas as formas físicas, haverá uma ressurreição do corpo. A morte é conseqüência da intratabilidade e da estupidez inerentes à matéria. No fim, o espírito não pode dominar a matéria, e todas as coisas de barro que criamos se quebram porque o peso e a amorfia da matéria prevalecerão. Mas indo além, acalentamos a esperança de que no fim o espírito será mais forte e capaz de miracular a matéria, tornando-a imortal. A idéia de ressurreição do corpo implica a transformação da matéria cm vida eterna.

Esse é o empreendimento tecnológico do Ocidente. E o que buscamos. Toda a tecnologia, sobretudo na medicina, que hoje transplanta corações, tenta tornar a matéria subserviente à vontade, ao espírito, e torná-la imortal. Mas é realmente isso o que queremos? Em minha opinião, ao entrar na escola, todo aluno deveria ser obrigado a escrever uma redação com o título "Minha Idéia de Céu", com a recomendação de que fosse extremamente específico e expusesse nos termos mais explícitos o que ele realmente deseja. Danem-se os custos, esqueça a parte prática, e diga: o que você gostaria, de verdade? Qual seria seu maior ideal de prazer? Seria muito possível que, pensando bem, não quiséssemos a imortalidade da personalidade individual. Talvez descobríssemos que seria um tédio horroroso. Mas em geral não pensamos muito sobre essas coisas. É fascinante ver a diversidade de imagens que as pessoas têm do céu, saber o que esperam do céu. Mas as pessoas se limitam a tocar no assunto, nunca entram em detalhes. Todos detalham muito mais a imagem do inferno; esta sim, é extremamente detalhada. Todas as torturas já foram especificadas. (quanto à imagem do céu, dizemos apenas: "Ah, vai ser maravilhoso! Ruas calçadas de ouro, harpas tocando", e as crianças protestam imediatamente: "Quer dizer que, depois da morte, vamos ficar o tempo todo na igreja?" Que coisa horrível! Veja a arte religiosa do mundo ocidental. Lembro-me particularmente do quadro O Juízo Final, de Jan van Eyck. O céu em cima, o inferno embaixo. O céu é uma massa sólida de pessoas sentadas em bancos de igreja, uma fileira de cabeças parecendo um calçamento de paralelepípedos. Têm uma expressão recatada, muito séria, e lá embaixo... que legal! Uma massa de corpos nos contorcidos em atitude erótica, picados por serpentes, presididos por um crânio com asas de morcego. A visão do inferno é sensacional A do céu, não. Assim, de uma maneira ou de outra, não pensamos bem no que desejamos. Como diz o provérbio: "Cuidado com o que você pedir, pois pode ser atendido." Assim, tivemos de nos livrar dessa imagem de Deus como governante autocrático, pois era muito desagradável. Mas justificamos essa decisão fazendo uma imagem ainda mais desagradável, em termos de racionalização. Passamos a adotar a crença num universo que está a nosso favor, numa "base do ser" pessoal e interessada em nós. É uma idéia confusa gerada pelo desejo. Muito bom para velhas senhoras e para histórias infantis, mas as pessoas pensantes, tomando emprestada a frase de William James, encaram os fatos, e o fato é que o universo não liga a mínima para seres humanos e de nenhuma outra espécie. É um processo mecânico completamente irracional, cujos princípios serão explicados por analogia com o jogo de bilhar. Certamente, foi o modelo pelo qual Newton pensou o mundo. Alinhado com Newton, Freud pensou o mundo físico em termos hidráulicos — a psicohidráulica é a base do pensamento de Freud — com a idéia do inconsciente como um rio contido por uma represa que deve ser controlada porque o rio não tem cabeça. É também chamada de libido, que poderia significar "luxúria cega". Da mesma forma, Ernest Haeckel pensou a energia do mundo como uma energia cega. Tudo é mecânico, e o nosso segundo grande modelo do mundo, a que chamo modelo completamente automático, veio a reboque do modelo judaico-cristão. Era um artefato, conseqüentemente uma máquina, mas tanto o artífice quanto o controlador, o Deus pessoal, desapareceram e para nós só sobrou o mecanismo.

Nesse estado de coisas, o ser humano foi considerado um golpe de sorte, um acaso estatístico, com a mesma chance de que milhões de macacos batendo em milhões de máquinas de escrever durante um milhão de anos acabassem por escrever a Enciclopédia Britânica. A visão do ser humano como golpe de sorte não é muito diferente do ser humano como produto da excentricidade divina. No Livro do Gênesis, Deus é muito excêntrico, De repente criou as baleias! Sem mais nem menos! Depois olhou para elas e viu que eram boas. Nem sabia se elas seriam boas ou não, mas, ao ver Sua obra, disse: "Está bom. Aprovado!" Há sempre essa sensação de golpe de sorte. De fato, a crença em que somos um golpe de sorte numa rotação mecânica é hoje a mais difundida.

Há muito poucas pessoas religiosas no mundo ocidental, porque a maioria delas não acredita realmente no cristianismo, ainda que sejam Testemunhas de Jeová. Mas acreditam que devem acreditar e se sentem muito culpadas quando não acreditam. Por isso pregam uns para os outros, dizendo: "Você deve acreditar!", mas eles mesmos não acreditam. Se acreditassem estariam gritando pelas ruas, comprando páginas inteiras para anunciar diariamente nos jornais e fazendo programas de televisão tenebrosos sobre o Juízo Final. Contudo, quando as Testemunhas de Jeová batem a sua porta são muito corteses. Não acreditam realmente. Tornou-se simplesmente implausível e todo mundo acredita é na imagem do modelo totalmente automático, em que somos rotações do acaso num universo no qual somos como bactérias que habitam uma bola de pedra na órbita de uma estrela insignificante na franja externa de uma galáxia sem importância. E em breve será isso mesmo. Quando morremos, morremos. Acaba tudo. Na linguagem do dia-a-dia, no pensamento cotidiano, dizemos frases do tipo: "Vim ao mundo" ou, para citar o poeta Housman: Eu, estrangeiro e infeliz Num mundo que não fiz.

Fica a sensação de sermos alguma coisa que não faz parte. Certamente, se você é um golpe de sorte, não faz parte. Da mesma forma, se você é um espírito encarnado vindo de um mundo espiritual muito diferente desse mundo material, você não faz parte. No senso comum de muita gente civilizada existe o sentimento de olhar o mundo como algo fora da pessoa, estranho à pessoa, e por isso se diz: "Você tem de encarar os fatos. Você tem de enfrentar a realidade." O "Encontro  Existencial"! A verdade é que você não vem ao mundo. Você sai do mundo, da mesma maneira que uma folha sai da árvore e um bebê sai do ventre. Você é sintomático desse mundo.

Se você é inteligente (e somos obrigados a supor que o ser humano é inteligente), é sintomático de um sistema de energia inteligente. Como Jesus disse, não se pode colher figos de cardos, nem uvas de espinheiros. Da mesma forma, não se pode colher gente de um mundo que não dá gente. Nosso mundo dá gente da mesma maneira que a macieira dá maçãs o que n videira dá uvas. Somos sintomáticos de um ambiente extremamente organizado e complexo. Não se encontra um organismo inteligente num ambiente não-inteligente, da mesma maneira que não se colhem maçãs de uma amendoeira. Portanto é curioso que, principalmente no século XIX, quando a filosofia da ciência era chamada naturalismo científico (envolvendo o repúdio da noção de que o mundo era governado por uma inteligência externa e sobrenatural), as pessoas que se intitulavam naturalistas tivessem dado início a uma guerra sem precedentes contra a natureza. Os naturalistas achavam a natureza estúpida, e para que os valores da inteligência humana prevalecessem, era preciso vencer a natureza e submetê-la à nossa vontade. Assim começamos a formar uma tecnologia cuja premissa básica era que o homem deveria dominar e não cooperar com a natureza. Nossa tecnologia foi motivada por um espírito hostil cujos dois maiores símbolos mitológicos são o tanque militar e o foguete espacial.

O foguete espacial é obviamente um símbolo fálico, mas um falo hostil. Isso deve ter algo a ver com nossas inadequações sexuais. No sentido biológico, o falo não é uma arma; é um instrumento de carícia. A idéia do falo gira em torno de proporcionar êxtase, e talvez um filho, a mulher. Não se destina a perfurá-la como uma espada. Assim, a concepção correta de foguete não deveria ser para conquistar o espaço... mas alguém pode conceber a idéia de dar prazer ao espaço, de ir ao espaço para dar amor e alegria a quaisquer outros seres que possam viver por lá, ou fertilizar planetas áridos? Da mesma forma, o símbolo do tanque de guerra é uma terrível realização da profecia bíblica de que "todo vale será exaltado e toda montanha será rebaixada e os lugares acidentados serão aplainados", numa atitude de achincalhar o mundo. Portanto, para nossa própria sobrevivência, temos urgência absoluta de rever a tecnologia com uma atitude e um espírito totalmente diferentes. Não seria uma atitude antitecnológica. Não significa dizer que a ciência é um erro deplorável, pois o que precisamos não é de menos ciência, mas de mais.

Precisamos estudar e entender cada vez mais nossa dependência e a complexidade de nossas relações com plantas, insetos, bactérias, gases, processos astronômicos, e quanto mais entendermos que nossa existência e a existência de todas as coisas e todas as criaturas são um único processo, mais poderemos usar a tecnologia de uma forma inteligente, vendo o mundo externo a nós como uma extensão ou parte de nosso corpo. Mas a transformação da mitologia ocidental exige ainda outro passo. Temos vivido com a imagem política do universo dominado por um legislador essencialmente violento. Aliás, toda a organização das igrejas, com toda a sua doutrina, é violenta, militar. Em O Paraíso Perdido, Milton descreve o que estava acontecendo no Céu muito antes que Lúcifer pensasse em se rebelar: havia exércitos com bandeiras e toda a heráldica da guerra e da força. Quem estava procurando confusão? Pense em todas as imagens que amamos nas igrejas, em quantos sentem o coração bater forte ao ouvir o hino “Avante, Soldados de Cristo". E a "Cruz de Jesus, marchando à frente" — a bandeira militar. In hoc signo vinces. Mas o modelo militar de imposição de ordem ao mundo através da violência não funcionou e toda a história da religião é a história do fracasso da doutrinação. A pregação só faz hipócritas. As pessoas imitam a virtude porque temem a ira de Deus ou, com maior sofisticação, temem ser pessoas falsas, nãoautênticas, que é a nova versão de ir para o inferno. Não funciona. O modelo totalmente automático também não funciona porque é apenas outra forma de hostilidade. Significa dizer: "Sou um sujeito durão porque encaro os fatos, esse universo é só uma coisa boba, e se você é realista vai encarar também, não vai? Quem acredita em Deus, ou em alguém que cuida de tudo, são as velhinhas sentimentais. É duro admitir, entende? Quanto mais acredito que o universo é horrível, mais me anuncio como uma personalidade forte, que encara os fatos."

Mais adequada a ciência do século XX seria uma imagem orgânica do mundo, o mundo como um corpo, um amplo padrão de energia inteligente que tem um novo relacionamento conosco. Não estamos no mundo como súditos de um rei, nem vítimas de um processo cego. Não estamos no mundo de modo algum. Somos o mundo! O mundo é você. Nesse mito orgânico do mundo, cada indivíduo deve ver a si próprio como responsável pelo mundo. Não pode olhar para trás e dizer a seus pais: “Vocês me meteram nisso, miseráveis!" Nos juizados de menores, as crianças que ouviram falar em psicanálise podem dizer: "Não tenho culpa de ser delinqüente. Foi minha mãe que me prejudicou e tenho complexo de Édipo." E a imprensa diz: "Não é culpa da criança; temos de cuidar dos pais", e os pais dirão: "Não podemos evitar a neurose; foram nossos pais que nos prejudicaram." O que remete a história do Jardim do Éden, quando o Senhor Deus perguntou a Adão: 'Acaso comeste do fruto da árvore que eu tinha ordenado que não comesses?", e Adão disse: "A mulher que me deste por companheira deu-me do fruto da árvore e comi." E quando o Senhor perguntou a Eva: "Por que fizeste isso?", ela disse: 'A serpente me enganou...", e o Senhor Deus olhou para a serpente e a serpente não disse nada. Ela simplesmente não culpou o outro. Ela sabia a resposta porque o Senhor Deus e a serpente haviam combinado nos bastidores, muito antes que isso acontecesse, que iriam representar essa cena, pois a serpente é a mão esquerda de Deus e "não deixe que a sua mão direita saiba o que a esquerda está fazendo".∗ Como vimos, é um jogo de esconde-esconde. Não vejo a menor possibilidade de haver o que chamo de uma atitude basicamente saudável na vida quando se culpa o outro pelo que acontece. Como se diz no budismo, tudo o que acontece é seu carma, o que significa que é obra sua. Pode parecer um pouco megalomaníaco, como se você dissesse: sou responsável por tudo, como se fosse Deus. Mas só é megalomania se você usar a imagem monárquica de Deus, e é por isso que não se pode dizer no Ocidente: "Eu sou Deus." Se disser, vão enfiá-lo num hospício, porque você está dizendo: "Sou o dono daqui e você deve me adorar como divindade."

Mas se temos outra imagem de Deus, uma imagem orgânica semelhante ao corpo humano, quem é que manda? A cabeça? O estômago? O coração? Você pode argumentar a favor de cada um. Pode dizer que o estômago é fundamental porque chegou primeiro. É o órgão que distribui vitalidade, alimentando todos os outros órgãos. Portanto, o estômago é primordial. Pode argumentar que a cabeça, um gânglio de nervos no ponto mais alto do canal alimentar, é um acessório do estômago e evoluiu a fim de parasitar o ambiente com mais inteligência para arrumar alguma coisa que alimente o estômago. A cabeça protesta: "Não, está certo que cheguei depois e o estômago já estava lá, mas João Batista chegou antes de Jesus Cristo. Eu, como cabeça, sou o produto mais recente e mais evoluído, e o estômago é meu servo. O estômago é que fica parasitando o ambiente a fim de dar energia para que eu possa me dedicar à filosofia, cultura, religião e arte." As duas argumentações são igualmente válidas ou inválidas. O que importa num organismo é a cooperação, ou como diz Lao-Tzu, "ser ou não ser surgem mutuamente. Longo e curto subentendem um ao outro; difícil e fácil se implicam mutuamente". Da mesma forma, sujeito e objeto, eu e você. Dentro e fora. Todos vêm a ser juntos. Tal como coração e cabeça, cabeça e estômago. São recíprocos e há uma cooperação na qual a ordem não deriva da imposição de cima, de um ordenante.

Assim Lao-Tzu fala do Tao, curso e ordem da natureza: "O grande Tao se estende a toda parte, a esquerda e a direita. Ama e nutre todas as coisas mas não se impõe a elas, e quando o mérito é alcançado, não o reclama para si." E ainda: "Quando governar um grande país, faça-o como se cozinhasse um peixe pequeno", pois quando você cozinha um peixinho, não fica mexendo muito. Tenha muito cuidado. Não cozinhe demais.

(Todas as passagens bíblicas foram retiradas da Bíblia Sagrada: traduzida da Vulgata e anotada pelo Pe Matos Soares, São Paulo - Edições Paulinas, 1961)

Assim, podemos ter esperança de que talvez chegue o dia em que o presidente dos Estados Unidos seja tão anônimo quanto o chefe do departamento de engenharia sanitária da cidade de Nova York, que é um indivíduo de grande valor no exercício de uma função de grande utilidade. Mas quando o chefe do departamento de Nova York anda pelas ruas não há fanfarras, não há uma imensa escolta policial, pois quem se importa com o chefe do departamento sanitário? A tradição cristã já traz uma estranha alusão a isso. Na Epístola aos Filipenses, São Paulo diz: "Tende em vós os mesmos sentimentos que Jesus Cristo teve: Ele, subsistindo na condição de Deus, não pretendeu reter para si ser igual a Deus. Mas se despojou de si mesmo, tornando a condição de servo feito semelhante aos homens. E, apresentando-se como simples homem, humilhou-se, feito obediente até a morte, até a cruz." Esse esvaziamento de si, ou renúncia ao poder por parte do Deus é chamado pelos gregos de kenosis. É a idéia de que Deus cria o mundo abrindo mão do poder, instituindo uma monarquia constitucional, e não tirânica.

Pois todos os que realmente entenderam o poder e o jogo do poder, como certos sábios iogues asiáticos que exercitaram todo tipo de poderes psíquicos, sabem que a resposta não está no poder psíquico. Todos os livros de práticas de ioga e budismo afirmam que siddhi, os poderes sobrenaturais, devem ser abandonados porque a resposta não e o poder. Não é o que você quer. Assim voltamos a questão de refletir sobre o que você quer. Se você tivesse poder absoluto e perfeito controle sobre tudo o que acontece, o que seria a idéia final da tecnologia, sabe o que aconteceria? Você teria um futuro absolutamente previsível, seria o profeta perfeito, saberia tudo o que vai acontecer e, no momento em que souber tudo o que vai acontecer, tudo já aconteceu. Porque o futuro perfeitamente conhecido é o passado. Quando estamos no meio de um jogo e já sabemos o resultado,  interrompemos aquele jogo e começamos outro porque o que queremos é a surpresa. Como um homem muito sábio disse certa vez: "Gnosis, a perfeita sabedoria e iluminação, é se surpreender com todas as coisas."

Texto de Alan W. Watts em "Mitos,Sonhos e Religião", organizado por Joseph Campbell, Ediouro, Rio de Janeiro, 2001, traduzido de "Myths,Dreams and Religion" por Angela Lobo de Andrade e Bali Lobo de Andrade, excertos pp.10-26. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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