7.23.2018
O BAILE DA ILHA FISCAL: ENTRE "DOIDOS" E "BESTIALIZADOS":
O sol diverte-se como um grande olho, arregalando sobre nós as pestanas louras, olhando de cima o quadro dramático dos nossos desgostos e as nossas festas, admirando profundamente o dramaturgo de tão curiosos enredos e tão vivas situações. O recrutamento e a febre. Não começa bem o ano de 89.”
O vaticínio foi lançado, em janeiro, por Raul Pompéia (1). O ano de 1.889 não começava bem aqui, mas, lá fora, Levasseur terminava o extenso ensaio que publicaria na Grande Encyclopédie sobre o império, e o país participara da Grande Exposição Universal, em Paris, com um pavilhão decorado com ramos de café, vitórias-régias e frutas tropicais (2). O fatídico ano foi, também, próprio para páginas do que alguns, de nariz torcido, chamam "petite histoire". Ela se passa no Rio de Janeiro, então capital do Império. Mais precisamente nos últimos meses desse ano. Teve vez, aí, uma série de acontecimentos que preencheram a crônica mundana. Eles culminaram no histórico evento que ocorreu numa ilha. Uma das muitas disseminadas nos 412 quilômetros quadrados de superfície da Baía de Guanabara. Uma dessas "pedras soltas no colar da cidade", como já dissera um cronista (3).
Na imediata vizinhança da Ilha das Cobras existia um parcel rochoso e elevado mais conhecido como Ilha dos Ratos. Foi arrasado e cercado de cais de atracação para servir de depósito de materiais e armazém aduaneiro. Nos últimos anos da monarquia, o governo mandou construir ali um edifício em estilo manuelino, destinando-o a servir de sede da Guardamoria e quartel dos guardas da Alfandega. Encomendado o projeto a Adolfo Dei Vecchio, o futuro palco da história que vamos narrar passou, então, a ser conhecido como Ilha Fiscal.
Diante dela, estendia-se o Rio de Janeiro comercial, como queria Raul Pompéia. Na Rua do Ouvidor, o negócio fino das jóias e das idéias, estas últimas distribuídas em livrarias e cafés. Nas confeitarias, segundo ele, o também comércio inocente do namoro. Alfaiatarias populares, como a Baliza, se acomodavam na Rua do Hospício, enquanto as sapatarias exibiam seus produtos na Rua do Carmo. Tipografias cervejarias concentravam-se na Rua Nova do Ouvidor, rua impregnada de um “cheiro” de Leipzig, deduzido das emanações combinadas da tinta de impressão e do lúpulo.
A carne verde preferia as Ruas da Assembléia e da Uruguaiana. Chá, cera e rapé formavam o clã mercantil da Rua da Candelária. Ferragens, na Rua Direita. Café, “o grande café em sacas, o rei café em grão, com sua entrada de símbolo na própria bandeira nacional”, tinha seu endereço na cruz das ruas Municipal e dos Beneditinos. O comércio da carne seca estendia-se em mantas pela Rua do Rosário abaixo, “acentuando-se em apuro seboso com a pujante variedade de toucinho e queijos, aldeada, além da rua Direita, por todos os arredores da igreja da Lapa dos Mercadores” (4).
A cidade era conhecida por sua insalubridade e sujeira. Tinha entranhas feitas de ruas estreitas e sinuosas e prédios colados e superpovoados. Surtos epidêmicos fustigavam a população indefesa. As questões de higiene e salubridade eram ignoradas pelas autoridades, assim como os problemas ligados a transportes, abastecimento e esgotos. Às vésperas da Proclamação da República – quem informa é Sylvia Damazio –, a abertura das ruas se fazia “sem a menor atenção ao futuro estado higiênico. Qualquer indivíduo, por exemplo, o caixeiro, do leiloeiro encarregado de vender o terreno riscava as séries de lotes separados pelas ruas de direção que ele imaginou. Tirava-se a planta impressa, fazia-se o anúncio e vendia-se tudo; as construções começavam imediatamente, sem preparação prévia do terreno nem estabelecimento dos encanamentos necessários às habitações das grandes cidades” (5).
Na última década do século a população carioca aumentara expressivamente em virtude da imigração estrangeira e nacional, predominantemente constituída por adultos. Mesmo considerando a expansão do setor manufatureiro, da construção civil e dos serviços em geral, o aumento acelerado tornava inviável a absorção de toda essa mão-de-obra. A solução de sobrevivência significava improvisar com trabalho autônomo.
Multiplicavam-se os vendedores ambulantes, empalhadores, amoladores, lustradores, pequenas oficinas de reparação, além da enorme gama de ocupações que João do Rio arrolou como “profissões ignoradas”: tatuadores, trapeiros, apanha-rótulos, selistas, ledores de buena-dicha, ratoeiros (6). Além das oficinas artesanais e de pequenos consertos, a feitura de comestíveis para venda e o pequeno comércio fixo, as pessoas lutavam pela sobrevivência no imenso espaço de trabalho que eram as ruas do Rio. “Aparentemente confuso, esse espaço possuía uma organização própria e uma articulação com o sistema capitalista que se afirmava.”
Os vendedores ambulantes, licenciados ou não, tinham uma área de atuação determinada, onde se tornavam conhecidos e constituíam freguesia. As fotos de Marc Ferrez e João Goston revelam seus rostos (7). Seus gritos e pregões que enchiam os ares foram repertoriados por Luís Edmundo (8). Trabalhadores autônomos e assalariados representavam mais de 2/3 da população que contava, em 1890, com cerca de 1.230 professores, 266 jornalistas, perto de seis mil funcionários públicos e cerca de onze mil militares entre Exército, armada e polícia (9).
Enquanto a cidade formigava sob o “calor senegálico” – como queria Raul Pompéia –, na cena política moviam-se atores de dois grupos distintos: os militares e a burguesia comercial. Escrevendo sobre o assunto no fatídico ano, e às vésperas da República, Rui Barbosa observara que datavam do lusco-fusco do Segundo Reinado as comoções capazes de abalar a autoridade moral da monarquia no espírito do soldado brasileiro (10). As “junturas do arcabouço”, diz, já interiormente corroído “pelos vícios do poder pessoal”, começavam a estalar quando o país deixara de saber quem era o chefe de Estado. Não eram contraditórias suas afirmações de que o poder pessoal desgastara o edifício monárquico. Rui simplesmente resumia a idéia de que o poder do imperador, embora exercido com brandura e moderação, preservara o país dos riscos a que poderia estar submetido.
“Enquanto D. Pedro II governou este país, nunca houve o menor estremecimento entre o governo e a força militar. Sua Majestade soube alimentar sempre e com extrema delicadeza, se não o entusiasmo pelo rei, ao menos essa tranqüilidade nas fileiras militares, a observação automática dessa disciplina que faz das organizações armadas a base da paz ambicionada pelos governos liberais e confundida por eles com a verdadeira segurança.”
Tudo isto significava que, da maneira como fora exercido, o poder pessoal permitira esconder a deterioração existente no aparelho militar. A ausência ou presença de um chefe de Estado normalmente atuante não teria sido bastante para animar ou deter a ação destruidora que já começara. Tanto o país quanto o regime ainda deram mostras de pujança sob o ministério de Rio Branco. Mas a crise mundial de 1875 colocou tudo a perder. Dois anos mais tarde, seguiu-se a grande seca de 1877-80 impondo à nação sacrifícios superiores aos ordinários e produzindo devastação comparável nas finanças públicas, as quais exigiriam uma guerra externa. Em 1888, resolveu-se a questão do “elemento servil” sem pensar em estratégias de integração dos cativos. Nos nove anos que antecederam o fim da monarquia sucederam-se dez governos diferentes, representando pontos de vista diversos e opostos.
O câmbio despencara a partir da grande seca, indo de 27 pence por mil réis a 22 dinheiros e mantendo a queda. “As finanças públicas prosseguiram no seu caminho para o desconhecido”, escrevinhava um político. Por outro lado, o mercado de fundos públicos desenvolvia extraordinária atividade; organizavam-se companhias industriais e comerciais todos os dias e os bancos elevavam o capital, esperando poder converter-se em estabelecimentos emissores, nos termos do decreto de 6 de julho de 1889. Na Bolsa do Rio de Janeiro, os títulos de empresas recém-fundadas eram imediatamente negociados a prêmio. O visconde de Figueiredo era um dos novos milionários. Raul Pompéia o tinha na conta de “rei de ouro do baralho financeiro na atualidade”. Recebia com feéricas festas como a que ofereceu no cassino Fluminense, na qual reuniu “a aristocracia da Corte, todo o orgulho dos crachás da nossa sociedade, toda a coleção marmórea de belas espáduas nuas do high-life feminino” (11).
Diz Buarque de Holanda que, “vista a distância, a queda do regime não pode surpreender muito. E não seria este o primeiro caso na história, e nem o único, a mostrar como um surto rápido de progresso material, seguindo-se a uma prolongada era de prostração, longe de sustar, pode, ao contrário, apressar mudanças de caráter revolucionário. Por outro lado, a recuperação mostrada pelo país encobria um fundo falso. A situação não deixava de oferecer aspectos curiosos. O valor total das exportações não aumentara muito e as importações subiram um pouco. As fontes de renda continuavam a provir da alfândega e nada prometia aumento de renda. Aconteceu que o governo conseguira três anos antes um empréstimo de seis milhões de libras. Em 1888, outro de mais seis milhões. O império era bom pagador e tinha crédito: fazia dívidas novas para pagar dívidas velhas e com isso melhorava a situação cambial”.
Ao quadro financeiro e econômico somava-se outro. Este, político. Em março, o imperador caíra gravemente doente. Agravara-se seu quadro de diabetes e imediatamente entraram a correr boatos alarmantes sobre seu estado de saúde: “insânia”, “caduquez imperial”, “já não regula”, “espírito obscurecido…”, os rumores constantes gotejavam nas páginas dos jornais, impregnavam as salas das câmaras. Aumentava a sensação de desgoverno. Em junho, a fim de fazer um tratamento, embarcou o imperador para a Europa e a princesa Isabel assumiu, pela terceira vez, a regência do Império. Era o prenúncio, ainda que longínquo, de um Terceiro Reinado.
Com esse aviso, a campanha republicana começou a ganhar musculatura. Caía o ministério do conservador Cotegipe, assumindo outro conservador, instigado, contudo, pela a Abolição. O 13 de Maio, decretado sob o gabinete João Alfredo, estabeleceu um armistício entre os que se batiam contra “o emperro” do regime. Passada a euforia diante do ato, o medo tomou conta dos que não queriam um reinado de Isabel I e seu consorte, o conde d’Eu. Sem ter parte direta no governo, o real cônjuge preenchia as condições previstas na Constituição para receber o título de imperador. E já se tinha certeza de que seria um reinado de beatices e camarilhas.
A 22 de agosto de 1888, voltou D. Pedro, que recebeu acolhida triunfal. Sobre sua chegada, Raul Pompéia deixou um emocionado relato:
“Ao cais Pharoux, vimos em todo o correr da amarração uma considerável massa de povo que começava a afluir para esperar a entrada do vapor francês. No alto do Pão de Açúcar, alunos da Escola Militar estenderam com a inscrição Salve, em letras encarnadas de seis metros, uma toalha como um bilhete de saudação ao monarca de volta. Os passageiros do Aimoré correram à amurada, desempenhando-se as comissões de entusiasmo que vinham a bordo, por conta de não sei quantas corporações oficiais, com toda a efusão de sinceridade aclamatória […]. No Arsenal formavam a Escola da Marinha, a Escola Militar, muitos colégios, as escolas municipais fardados de branco como pequeninos soldados, de polainas, patrona aos rins e comblain em descanso. No Arsenal ainda e pela rua Direita, formava a tropa em grande gala. Por todo o itinerário determinado dos imperantes, perfilava-se a ornamentação de colunatas de escudos e galhardetes, às sacadas flamejavam colchas abertas e apinhadas as senhoras ao sol com a coragem feminina da curiosidade […] o entusiasmo popular não foi o que se chama verdadeiramente um delírio, mas foi evidente e sincero. À porta do Arsenal, vi uma pobre velha enxugando lágrimas nas costas da mão. Por todo o trajeto do coche do monarca manteve-se constante o fervor dos vivas e não tinham conta os lenços agiotados das janelas, como um escrutínio de cambraia, as famílias brasileiras, votando paz e felicidade ao velho esposo da imperatriz” (12).
Não havia lembrança de tão calorosa acolhida à pessoa do monarca. Nessa alegria pública residiria, explica Sérgio Buarque de Holanda, ao menos o desejo de provar o espírito de constante fidelidade de seus súditos. Havia, também, quem julgasse que apenas a pessoa do imperador, e só ela, podia assegurar a adesão popular ao regime. Entrementes, houve luminárias e fogo no Engenho Novo, Botafogo e São Cristóvão. E conclui Pompéia: “compreende-se bem como rodeou a cidade, sábia de lealdade e cortesã, a espiral ardente do regozijo público, coleando cerimônias de muito longe até centralizar-se e acabar nos jardins da imperial residência” (13).
Em entrevistas publicadas em Ordem e Progresso, Gilberto Freyre (14) confirma o apreço no qual transitava o imperador,apreço que se prolongou mesmo depois de seu exílio. Houve quem guardasse moedas e selos com sua efígie, quem considerasse que “moralidade, só na monarquia”, quem lembrasse as alusões lisonjeiras à sua figura. Um imenso saudosismo dos tempos do Império se prolongou por muito tempo depois da Proclamação da República.
Com o imperial casal voltava, também, D. Pedro Augusto, filho de D. Leopoldina e Augusto de Saxe-Coburg-Gotha, cujas ambições em relação ao trono não eram disfarçadas, fazendo até parte da correspondência trocada entre membros da família real (15). Ao noticiar o retorno do monarca, a imprensa internacional mencionava não só este detalhe, mas outro: a recente organização do partido republicano (16).
No campo das idéias, assistia-se às conferências de Silva Jardim no teatro Lucinda ou na Sociedade Ginástica Francesa. Falava-se muito na “revolução adorada” – a francesa – em soberania e em vontade popular (17). Os hotéis, conta-nos Freyre, começaram a ser pontos de reunião. Nas suas salas nobres e nos restaurantes, juntavam-se tanto os príncipes do comércio quanto da lavoura, das indústrias, das finanças, da política, das letras, do magistério. A nova ordem econômica encontrou nos restaurantes dos hotéis seus principais centros de rendez-vous. Centros por vezes luxuosos e até nababescos que se distinguiam pela pompa na decoração. Refletida em seus espelhos, a elite degustava sopas e sorvetes (de pitanga, de caju, de cajá), combinações desenvolvidas pelo italiano Francioni, o “maior importador de gelo do Brasil”. Nos terrasses a gente importante encontrava-se para saborear uísque Dewar’s e cerveja, muito ao gosto dos novos senhores da economia. Esses, segundo Freyre, “gente sempre de sobrecasaca preta e chapéu alto”. Célebre por sua cozinha e seu salão era o Globo, que reunia para banquetes os membros do Parlamento e publicava seu anúncio em francês: “Ce magnifique restaurant offre aux étrangers arrivant à Rio, toutes les commodités pour Lunch, Dîners…”. Membros da elite, todos ali passavam. Do conservador e radicalmente abolicionista João Alfredo, ao escravocrata barão de Cotegipe que aí encontrava cocottes, a Quintino Bocayuva, Aristides Lobo e outros “denodados propagandistas da República que discutiam os meios de empregar para o advento do novo regime” (18).
Os sifões Prana Sparklets se encarregavam de prometer água gasosa mineral igual em ação terapêutica às de Vichy. A mania das águas minerais servia para a burguesia lutar contra disenterias e febres tifóides. O rococó como estilo decorativo não podia deixar de corresponder psicologicamente a um estado de ânimo que se tornou, nessas várias expressões da vida republicana, característica de uma nova época, marcada pela ascensão repentina de indivíduos pobres à situação de ricos e até de nababos (19). Eram os filhos do Encilhamento.
Na segunda metade do ano, os fatos se aceleraram. A correspondência da família imperial já apontava os limites impostos pela saúde do imperador, alheio às notícias. Sua morte era aguardada e vislumbrada como momento de transição política. A apatia do monarca contaminara os homens públicos e havia que se implorar para que políticos ocupassem as pastas do governo, sempre disponíveis. Em julho caía o ministério João Alfredo afogado nos números de transações inescrupulosas. Ninguém queria substituí-lo; nem Paulino de Souza, chefe dos “ultras” do partido, numa tentativa de salvar a Coroa pela indenização aos antigos senhores de escravos. Nem o liberal Saraiva. O partido conservador mostrava assim sua fragilidade. Aceitou-a o visconde de Ouro Preto, estadista mineiro conhecido por inabalável intransigência. A leitura do programa de governo, feita a 11 de junho, já se passou entre vaias e apupos e gritos de “Viva a República”.
Em julho festejaram-se as comemorações do 14 de julho e a queda da Bastilha e pelas ruas da cidade chocaram-se os que cantavam a “Marselhesa” com os membros da Guarda Negra formada por antigos escravos fiéis à princesa Isabel, alguns deles capoeiristas armados de cacetes – os Petrópolis – e navalhas que revidaram a cantilena com truculência. Um tiro de revólver disparado contra o imperador por um jovem estudante português adepto do republicanismo na saída do teatro, no dia 15 de julho, reacendeu a simpatia pelo velho e combalido monarca. Incidentes com militares na forma de prisões, ou indicações recusadas, infrações disciplinares bem como o deslocamento de Deodoro da Fonseca, que deixava seu exílio em Mato Grosso, aumentaram a tensão. Um boato, contudo, fazia ferver os quartéis. O de que as remessas de batalhões para as províncias tinham por escopo deixar espaço de manobra para a Guarda Nacional, que garantiria sem maiores problemas a assunção do Terceiro Reinado. Crescia a indignação dos militares que, como Deodoro, ameaçavam levar ministros a julgamento em praça pública, assestar a artilharia e culpar o governo imperial por falta de patriotismo.
No mês de outubro começaram as articulações entre oficias descontentes e civis republicanos. O incidente em torno da demissão do tenente-coronel Medeiros Mallet pelo ministro da Guerra, somado aos boatos de que o governo pretendia dar um golpe no Exército, facilitou a aproximação. Outrora, durante a Questão Militar, a iniciativa dos contatos partira dos republicanos;agora, são os oficiais os que tomam a dianteira, a começar pelo major Sólon de Sampaio Ribeiro e pelo capitão Mena Barreto. A exaltação militar não tinha limite, nem conhecia conveniência, expandindo-se mesmo diante do comandante e dos oficiais do cruzador chileno Almirante Cochrane, então fundeados no Rio de Janeiro e que iriam participar dos festejos das bodas de prata dos príncipes imperiais.
Em baile organizado no então Cassino Fluminense, onde se achavam os oficiais da marinha chilenos, os príncipes receberam as maiores manifestações de simpatia. Em compensação, uma semana mais tarde, houve banquete na Escola Militar da Praia Vermelha em homenagem aos oficiais do navio chileno. Benjamim Constant tomou a palavra para saudá-los e aproveitou a ocasião para defender o Exército das acusações de indisciplina que lhe faziam os amigos do governo, achando-se presente o ministro da Guerra. Os alunos saudaram o orador estrepitosamente aos gritos de “Viva a República… do Chile”, forçando a pausa para marcar a intenção. A impunidade em que ficaram os responsáveis por essa e outras manifestações que tinham com freqüência por alvo o tenente-coronel Benjamim Constant parece indicar que o governo começava a temer uma incompatibilidade sem remédio com a classe militar.
Enquanto ferviam nos bastidores políticos as tensões, em cena e entre os grupos identificados com novas políticas, nunca se conjugou tanto o verbo festejar. Se o império de Pedro II fora grandemente marcado por celebrações festivas que misturavam datas religiosas, populares e oficiais, natalícios de monarcas e princesas, procissões, entrudos e carnavais (20), seu final prometia um desfecho singular, ele, também, em torno de um motivo festivo. Se por décadas a monarquia transformara suas aparições em espetáculos, às vésperas da República a agenda social se excedeu. A atenção estava focada na visita ao Rio de um navio chileno e o gabinete ministerial usou a ocasião para organizar uma série de eventos, cujo fim era demonstrar a saúde da nação e o prestígio do regime. A cereja do bolo, no entanto, foi o baile da Ilha Fiscal.
Na crônica urbana, não se falava em outra coisa que não os preparativos para o evento. E Pompéia registra:
“Ainda vibravam, no ânimo da família imperial, as impressões do grande baile que, nos salões do cassino Fluminense, ofereceu o comércio, em comemoração das bodas de prata da sereníssima princesa imperial e seu augusto consorte, gratas impressões, como devia produzir a homenagem dos representantes idôneos das classes poderosas da nação, que se andava imaginar distanciada do trono, em represália de despeito contra excelsa consumadora do grande golpe de maio do outro ano; ainda viviam recentes as recordações da festa, de uma festa efusiva e sincera como não é muito de uso na monarquia brasileira, consagra-se aos príncipes quando veio a notícia do passamento de el-rei d. Luís I abafar bruscamente toda a alegria. O momento nacional, caracterizado por uma precipitação vertiginosa de festas, paralisou-se repentinamente em respeito ao luto da Imperial Casa e, ao mesmo tempo, a imensa mágoa que veio contristar a nação portuguesa. Todas as festas projetadas em honra dos marinheiros chilenos foram declaradas suspensas. Nas ruas, onde, há pouco tremulava o pano largo das bandeiras arvoradas pela chegada dos ilustres viajantes despiram as meias hastes do funeral. Todas as repartições públicas brasileiras, acompanhando o Consulado português, todas as associações portuguesas, as inúmeras que há na Corte, muitas nacionais, muitas casas particulares decoraram-se com essa demonstração de condolência. Os negociantes portugueses cerraram as portas de seus estabelecimentos. As associações portuguesas vestiram de crepe as inscrições de suas fachadas. O edifício de granito retalhado e mármore do Gabinete Português de Leitura, na rua Luís de Camões, desfraldou das altas sacadas sobre as rendas do pórtico manuelino panejamentos negros […] foram proibidos espetáculos de toda espécie. Os bailes de algumas sociedades já anunciadas para sábado, dia imediato ao falecimento do monarca foram adiados, tal qual o famoso do governo aos chilenos, no edifício da ilha Fiscal que, falhando, rendeu a algumas instituições de caridade uma lauta e inesperada distribuição de manjares, tudo que se podia deteriorar, do que os comissários da festança tinham mandado preparar para o grande banquete” (21).
A imprensa, contudo, foi o mais eficiente termômetro para captar os signos desse “fim de festa” do Império. Às vésperas da Abolição contava o Rio de Janeiro com 70 jornais redigidos em língua francesa, inglesa, alemã e italiana. O mais importante, o Jornal do Commércio, contava mais de 66 anos de existência “dando de seis a oito páginas por dia a oito colunas e com tiragem de 16 a 18.000 exemplares”; se seguem o Diário Oficial, Gazeta de Notícias, País, Diário de Notícias, todos matutinos. Vespertinos eram a Gazeta da Tarde, Gazeta do Rio e Novidades (22). Fragmentos de jornais de época demonstram a agenda cheia que empurrava os visitantes chilenos entre grupos militares e os da sociedade civil. O que chama a atenção, aos olhos do historiador, é que, para além de retratar a pirâmide social, se lê nas entrelinhas das notícias a imbricação de laços, mais ou menos oficiais, suturando grupos locais. O estatuto desses grupos geradores de identidades comuns ia desde o reconhecimento público oficial – caso dos militares – à clandestinidade – caso de jornalistas que preferiam se manter anônimos. Mas ele se apoiava também na exibição de signos de vestuários – caso da Guarda Nacional criada para esvaziar o Exército durante a Regência devido à instabilidade política que os militares, de ofício, como os jornalistas e cronistas, que permitiam o reconhecimento mútuo, ao mesmo tempo em que definiam objetivos comuns – apoiar ou criticar o sistema. Não se deve perder de vista, na leitura da agenda que envolveu o baile da Ilha Fiscal, que, como toda forma de segmentação social, as identidades partilhadas podiam agir umas contra as outras, quando o jogo de interesses e as tensões as colocavam em concorrência (23).
Destaca-se nas notas da imprensa, reunidas na Coleção Festas Chilenas do Arquivo Nacional, o papel das comunidades de interesse envolvidas com a Proclamação da República. Atuando como “corpos” constituídos por cooptação, portadores de normas e regras de conduta, possuidores de privilégios comuns, os militares republicanos são as figuras mais evidentes. No mesmo nível, mas agindo de maneira fluida e funcionando como órgão de defesa coletiva contra mudanças, vê-se um segmento misto, solidário a um tipo de vida em comum, aos ensinamentos recebidos sobre a monarquia, marcados, aparentemente, pela proteção mútua, códigos e jargões próprios, uma concepção hierarquizada das relações sociais, a defesa de privilégios e a vontade de resolver problemas inerentes ao grupo em seu interior. Ambos disputaram uma agenda em torno da presença de oficiais chilenos de tirar o fôlego.
Acompanhemos, nesse sentido, uma seleção – um tanto arbitrária, como toda seleção – de documentos ilustrativos e inéditos sobre o evento. Eles conduzem, contudo, a uma tese tornada clássica na obra de José Murilo de Carvalho: a do alheamento em torno da Proclamação da República (24).
Na manhã de 31/10/89 o Jornal do Commercio anuncia “visita ao Museu Nacional onde o comandante e oficiais do Almirante Cochrane foram recebidos pelo diretor dr. Lacerda e Orville Derby”; à tarde, houve visita ao quartel do corpo militar da polícia para examinar as obras do novo edifício, capela e hospital. A visita foi seguida de “delicioso lunch e dessert” com vários brindes (25).
Dia 1º/11/89: visita ao Corcovado, com saída do Largo do Machado num “bond graciosamente cedido pela Companhia do Jardim Botânico… depois subiram em trem especial até o Corcovado. Infelizmente a cerração impediu que os nossos hóspedes pudessem apreciar o belo panorama que do alto se descortinava, mas, aproveitando pequenos espaços conseguiram ver alguma coisa.[…] Pouco antes da uma hora foi servido no hotel das Paineiras profuso almoço no qual se trocaram vários brindes”.
Às 18h30, o grupo de estrangeiros visitou o IHGB onde foram brindados com a presença do imperador, suas altezas reais, o príncipe D. Pedro e os ministros do Império; “grandes festões de flores enfeitavam o teto da sala profusamente iluminada. Distribuiu-se um retrato do Almirante Cochrane e o discurso do barão Homem de Mello. À esposa do comandante Bannen, foram oferecidos dois exemplares de Brazileiras Célebres e dois elegantes ramos de flores feitas de penas de aves do Brazil. Ao comandante foi oferecida uma medalha comemorativa da Lei Áurea de 13 de maio”. “O Conselheiro Olegário começou agradecendo a Sua majestade seu comparecimento e tudo o quanto lhe devia o Instituto para a celebração daquela festa […]. O Príncipe D. Pedro leu um importante trabalho sobre mineralogia no Chile, passando em resenha as minas de prata e cobre” (26).
Sobre esta visita escreve um jornalista que preferiu o anonimato:
“Os povos civilizados do estrangeiro não podem, não poderão nunca imaginar os requintados tormentos que temos infligido à república do Chile na pessoa de sua brilhante oficialidade. Ainda não os levamos à fogueira, mas já os levamos ao Instituto. O Instituto, essa abominável instituição que faz o terror da literatura indígena, é uma das poucas formas de suplício que escaparam da Inquisição. A roda, o palo são gozos celestiais ao pé daquilo. Ao menos, não se escapa vivo… É uma casa aparentemente inofensiva em que cavaleiros graduados em diferentes cousas, quase todos de mais de 40 anos, se exibem como homens de letras e ciências, fazendo uns discursos pesados que nos dão uma idéia aproximada do infinito e lendo uns trabalhos que são a própria eternidade em montanhas de papel almaço. As sessões do Instituto tiram aos estranhos a quem são propinadas todo o amor da existência; invade-os uma incrível melancolia, um desgosto da vida que lhes traz fatalmente um remate da morte… Pois nós levamos os chilenos ao Instituto![…] Martirizados oficiais, eu continuo a lamentá-los do fundo d’alma! Por que os não matam logo de um só golpe?… Mas este prolongamento de tortura, esta lentidão do amplexo sufoca, estas sessões do Instituto… oh! não! la mort sans phrases!” (27).
No dia seguinte, a manchete de O Jockey anunciava: “Corrida em Homenagem à Nação Chilena”. E o texto:
“Assombrosa a corrida que o Derby realizou domingo último em homenagem à nação chilena. Uma concorrência excepcional encheu as arquibancadas das mais famosas e elegantes senhoras de nossa alta sociedade. As mais finas toilettes emoldurando corpos graciosos e perfumados a heliotrópio e à malva, chapéus arabescados de rendas e fitas flamboiantes, estridentes, coroando cabeças louras de madonas místicas e aclamadas e privilegiando de graça primorosa as luzidias tranças negras, cujo perfume lembra uma floresta de sândalo incendiada, róseos bebês desempenados e garbosos rapazes, de grosso bengalão e monóculo rutilante ao olho, Mefistófeles esportivo, o Bilac, o adorável e harmonioso poeta, davam um aspecto fenomenal e deslumbrante à arquibancada. Na pelouse, fervilhavam os apostadores, suando as brancas camisas, sob um sol a 80º centígrados. Tudo se deu na melhor ordem sendo o supremo encanto da corrida o sexto páreo – Chile – Brazil – do qual foi vencedor a nervosa e incomparável égua (ilegível)” (28).
Dia 2/11/89, a manchete é esportiva:
“Foi uma festa brilhante a das regatas realizada ontem na enseada de Botafogo e cujos convites foram feitos pelo Sr. Ministro da marinha, Barão de Ladarío. À uma hora da tarde, partiram do cais Pharoux as duas barcas Ferry destinadas aos convidados. A família imperial foi na galeota a vapor e o ministério e o corpo diplomático numa barca”. Depois de oito páreos disputados, “[…] o prêmio dado aos marinheiros que tripulavam as embarcações vencedoras foram: aos do Cochrane, moedas de ouro de 20$; aos dos outros vasos de guerra, moedas de ouro de 5$000. Nos intervalos das regatas houve a bordo das barcas animadas danças. Foi servido um profuso lunch” (29). Segundo outro jornal, as barcas estavam enfeitadas de flores e arbustos, o lunch era da casa Ferreira, as medalhas foram entregues pelo imperador. “Depois das cinco horas deixaram a enseada de Botafogo as barcas e lanchas e vieram passar em continência pelo Almirante Cochrane levantando-se por esta ocasião muitos vivas e tocando a música o hino chileno” (30). Por fim, membros do gabinete e oficiais chilenos jantaram no Hotel Londres. No dia 3/11/89: o comandante Bannen recebeu professores e alunos do Internato Pedro II. Depois, visitaram junto com seus oficiais as oficinas e o museu do Arsenal da Marinha. Dele, passam a percorrer as ilhas da baía, inclusive Paquetá, onde o comendador Hasselman ofereceu “lauto almoço” aos chilenos. Na embarcação, “[…] cadeiras de lado a lado da proa à popa, solenemente estendidas, uma grande mesa, posta como se sabe pela casa Paschoal e muito inspecionado pelo Marcelino a julgar pela habilidade com que dirigiu sua falange de copeiros encasacados, todos muito diligentes, parecendo todos combinados no sinistro desempenho de garantir uma indigestão geral” (31).
“O primeiro serviço foi de café e licores logo ao embarque. Em seguida, e em viagem, sandwichs e aperitivos. Às 11,30 em frente à Paquetá e com o Orion fundeado, um almoço, um excelente e delicado almoço, saboreado ruidosamente sob o imenso pavilhão toldo à vista da formosa ilha, que mostrava a olho nu o verde claro de sua flora, as formas precisas das grandes pedras, as casinhas brancas destacando-se do matiz multicor das chácaras floridas. Hasselman foi levar o Orion a um ponto do qual se pudesse apreciar de um golpe de vista a maior extensão possível de nossa baía, que mereceu as honras de aclamação do mais sincero entusiasmo, quando patenteou-se no olhar de todos, majestosa e serena, desde a encosta do pão de Açúcar até a ponta do Arsenal […]. Os moradores da ilha fizeram festiva recepção aos nossos hóspedes que foram saudados pelo Dr. Campos da Paz.”
Seguiu-se uma visita à ilha, quando os moradores recebem os visitantes com fogos.
“O Orion regressou às 5 horas da tarde. Depois de profuso lunch foi submetida a votos a proposta do comandante Bannen de que as pessoas presentes fossem ao Almirante Cochrane. Aprovada por unanimidade de votos das senhoras que tinham estado a ouvir boa música todo o dia, mas, tinham dançado pouco e lembravam-se que o tombadilho do Cochrane é maior do que o do Orion. […] e não preciso dizer mais, porque o leitor já sabe que a música de bordo foi chamada a postos, que se organizaram quadrilhas, que dançou-se muito e animadamente.”
Dia 4/11/89: “Espetáculo de gala no teatro S. Pedro de Alcântara organizado pela imprensa fluminense”. Presentes “suas majestades e altezas imperiais, com o corpo diplomático, oficiais da armada nacional e do exército brasileiro e do couraçado Almirante Cochrane” (32).
As manchetes do dia 5 anunciavam: “Deve realizar-se hoje o jantar oferecido por Sua Alteza o Príncipe D. Pedro a oficialidade do Almirante Cochrane” (33); “Chapéus altos de palha de seda do fabricante Johnson, o que há de moderno em Londres, recebeu pelo vapor Plato a chapelaria Aristocrata, na rua do Ouvidor n.149 em frente à Notre Dame de Paris e vende-os por preços cômodos” (34); “Esteve brilhante o espetáculo de gala realizado ontem no teatro São Pedro em homenagem aos nossos ilustres visitantes […]”. Paranhos Pederneiras substitui Rui Barbosa, que não compareceu “por motivo de doença”, e saudou a nação chilena. “A concorrência foi extraordinária; nem lugar para um alfinete, quer na platéia, quer nos camarotes, quer nas galerias” (35). “O que é verdade é que depois disto [o jornalista refere-se à festa no teatro] só terão eles o baile da ilha Fiscal, antiga dos Ratos. O termômetro festeiro está baixando muito; ontem, o da Imprensa, teve brusca de um grau vizinho a zero à sombra no teatro São Pedro”. Assina a nota o jornalista Juvenal, sem esclarecer o efeito dos apupos endereçados à família imperial (36).
“O teatro apresentava o mais belo aspecto. Nas galerias viam-se bandeiras de todas as nacionalidades, na segunda ordem sanefas verdes e amarelas e na primeira, sanefas com cores chilenas e na fronte, troféus de bandeiras diversas, escudos com dísticos alusivos ao Chile, ao comandante, à oficialidade chilena. Nas frisas, as sanefas eram brancas e encarnadas. As comissões – compostas, entre outros, por José do Patrocínio,Paranhos Pederneiras, Carlos de Laet, Coelho Neto, Paula Ney – receberam Suas Majestades, Altezas e nossos convidados. Ouviu-se o hino chileno de pé. Seguiu-se a primeira parte do concerto, depois a comédia "Santo com a Minha Mãe", a segunda parte do concerto, representou dois atos dos Sinos de Corneville. Os camarotes estavam todos ocupados e se viam neles membros do ministério, do corpo diplomático e consular, senadores, deputados, generais e oficiais superiores da armada e exército, representantes de todas as classes sociais e avultado número de senhoras.”
No dia 6/11, a coluna “Foguetes” destilava ácido:
“Desventurados oficiais chilenos. Cada vez mais a sua sorte é digna de lástima. Tudo o que há de suplício lhes tem sido infligido desde o retrato zincográfico até a reportagem attachée. Não lhes faltava mais nada; deram-lhes de quebra dois espetáculos numa só noite. Eles suavam frio e suavam de cansaço e suavam de esforço para não se mostrarem fatigados. Foram agüentando e agüentando com cara alegre; mas, chegou um momento em que falou mais alta a natureza – o sono deitou-lhes seu véu transparente e quando acabou o espetáculo, os remoídos corpos dos massacrados oficiais restauraram as forças entregues às delícias dos lençóis. Ufa! Que suadouro! E chamarem aquilo de homenagem! Castigo é que foi. Uma homenagem que vai desde às 8 até 1 da madrugada é dura de roer, lá isso é mesmo. E tudo para quê? Para ouvirem a Companhia Emília Adelaide representar a moderna comédia histórica do século passado; o Vasquez cantar de tenor nos Sinos de Corneville e o Dr. Pederneiras fingindo de Rui Barbosa fazer o discurso oficial. Sombra implacável! Pavoroso espectro! No camarote de bordo, nas refeições, nos passeios, nas visitas, nas festas… por toda a parte a reportagem attachée… Ela surgelhes de um registro d’água ao voltar uma esquina […] persegue-os disfarçada de book-maker ambulante. Valha-me Deus! O que faltará para martirizar os briosos oficiais da armada chilena? […] Já suportaram uma missão do Instituto Histórico […] já suportaram um pedaço de discurso, sim, porque se o conselheiro Ruy Barbosa não estivesse doente, a saudação havia de ser outra. Para grandes festas, grandes discursos e o ilustre parlamentar não é homem de meias medidas; não podia fazer um discurso comprido, ficou em casa cuidando de restabelecer a saúde um tanto abalada pelos ataques que têm ferido o governo. Felizmente a família imperial deu o exemplo; retirou-se do seu camarote; a oficialidade fez outro tanto e o ministério e o corpo diplomático e as famílias e os respeitadores das Instituições foram saindo também, repletos, empanturrados, ameaçados de uma congestão cerebral. Só ficou o comandante do Almirante Cochrane. A platéia estava deserta, estavam desertos os camarotes… Mas, o bravo leão do mar não abandonou seu posto: sozinho afrontou os elementos até o final. Extrema coragem!” (37).
Dia 6/11/89:
“Entre as provas de simpatia e distinções com que têm sido acolhidos nesta capital os dignos oficiais do encouraçado chileno Almirante Cochrane, grata e indelével lhes há de ficar na memória a suntuosa festa de ontem no Paço Leopoldina. O elegante palácio à rua duque de Saxe abriu e iluminou seus salões, recebendo sua alteza o príncipe D. Pedro de Saxe e Bragança a oficialidade daquele navio com um suntuoso banquete que, pelo justo motivo da morte de sua majestade o rei de Portugal, havia sido adiado só podendo ser realizado ontem. Imponente e deslumbrante era o aspecto da mesa na grande sala de jantar do palácio, brilhantemente iluminado e ostentando flores em profusão. Artísticos candelabros de bronze e finíssimos cristais guarneciam os ângulos da sala, ornados de folhagens e os aparadores sobre os quais figuravam a antiga e rica baixela da família. Ao fundo, dominando a sala em elegante cavalete, via-se a bela marinha do artista brasileiro Castagneto, representando o Riachuelo e o Almirante Cochrane saudando-se mutuamente e esbatendo os seus perfis na luz serena do céu. Presentes à mesa de D. Pedro: visconde de Beaurepaire Rohan, conselheiro Duarte de Azevedo, conde de Carapebús, barão de Ivinhoim, chefe de divisão Foster Vidal, senador Dantas, marquês da Gávea, visconde da Penha, visconde de Garças, barão de Ladário, visconde de Cruzeiro, senador Taunay, barão de Santa Martha, conde da Estrela, barão de Maia Monteiro, entre outros. No menu: hors d’oeuvres: conserves, olives, radis, thon à l’huile, beurre frais. Potages: creme de Pluver, consommé à l’impériale Releves: Poisson fin bouilli au beurre d’anchois, cotelettes de pigeons à la Pompadour, Piéces froides: galantine de Poisson á la gelée. Aspic de foie gras em Bellevue Coup du millieu: punc à la ndives, gelé dánanas, parfait à la vanilla, dessert varie Vins: Madeire, Xerez, Sauterne, Rhin, Chateau Margaux, Champagne Roederer, Muscat, Tokay, Port Vieux. Não compareceram o presidente do senado, o presidente do supremo tribunal da relação, os generais do exército e da armada e o chefe de polícia: a festa foi bastante animada […] o que causou reparo, digamos francamente, o que deu motivo a estranheza foi o fato de não se acharem presentes – os acima citados. Se o distribuidor dos convites fosse o famigerado comendador alemão Hasselman não faltaria um só guarda da Alfândega ao banquete. E por não ter sido é que a gente fica a parafusar na história. Se foi esquecimento é outro caso, mas, mesmo assim é para se estranhar que tal cousa se desse, quando se tratava de um banquete embora íntimo”,
cutucava a Gazeta da Tarde. No mesmo dia do jantar, oficiais chilenos estiveram na Academia de Belas Artes onde foram recebidos por Vitor Meirelles.
No dia 6/11 foi feita visita ao Imperial Colégio Militar, um majestoso edifício construído pelo marquês do Bonfim. No antigo palacete foram os chilenos recebidos por guarda de honra sob o comando de um aluno de 12 anos, o tenente Mário Soares Pinto (38); lhes foi oferecido um “magnífico lunch” com muitos brindes; assistiram a uma “sessão literária” sob a presidência de Álvaro Fontenelle em que se recitaram poesias em francês. Seguiu-se um “assalto de armas” no qual se destacaram no florete Américo Leal, Alberto Figueiredo, Diogo Hermes da Fonseca, entre outros. Depois houve visita ao Asilo dos Meninos Desvalidos, “estabelecimento cuja boa ordem e asseio os impressionou favoravelmente” (39). Aí tocou a banda de alunos e os oficiais percorreram as oficinas. Bandeiras ornamentavam a estação de bonde onde desembarcaram os convidados, com bandeiras de várias nações.
No dia 7/11, a agenda é novamente voltada para a festa:
“Foram ontem visitar o encouraçado chileno diversos senhoras e cavalheiros. Visita ao Arsenal de Guerra com lunch e banda de música dos menores do Arsenal. Recebidos pelo conselheiro Cândido Oliveira, ministro interino da Guerra, ministro do Chile, conde da Estrela, barão Homem de Mello, diretor do Arsenal. O trapiche estava enfeitado com bandeiras, troféus e escudos etc… Lendo-se num deles ‘Viva Chile’. Flores desfolhadas foram atiradas sobre visitantes” (40).
Visitada a “oficina de obras brancas”. Encontro com os torneiros. “Sobre as Machinas, um troféu com o retrato de Sua majestade o Imperador e por cima o estandarte do pessoal dos machinistas; houve troca de brindes e presentes” (41). Uma barraca que servira ao imperador
“na Copacabana, bem enfeitada e servida encontrava-se na entrada. Na sucessão de brindes, o coronel diretor Fausto de Souza saudou o comandante e os oficiais chilenos. Bannen retribui e brinda a prosperidade do Brasil. Sublinhe-se que tenente coronel Leite de Castro saudou o Sr. Conde d’Eu, lembrando antes os importantes serviços por ele prestados na paz e na guerra do país que adotou como pátria. Os dois últimos brindes foram do Sr. Ministro do Chile e o coronel Fausto a S.M o Imperador, o primeiro cidadão, o mais patriótico defensor deste Império, homem generosos e o monarca querido do seu povo e admirado e respeitado no estrangeiro” (42).
Dia 9/11/89, lê-se que “corre como certo que o negócio da marinha não está liquidado, achando-se embrulhados no negócio o diretor, o lente, o ministro e o deputado intermediário […]. Que o barão de Ladarío estava de braço dado com o sr. Henrique de Carvalho, o que quer dizer que estavam se reconciliando[…] que o barão da ventania está com vontade de adoecer, hoje, para não ir à ilha dos Ratos” (43).
Os chilenos vão à tarde à Imprensa Nacional e ao Corpo de Bombeiros da Polícia em “bond especial que se achava na rua dos Arcos e que lhe foi oferecido pelo bacharel São Romão, ativo ajudante de tráfico da companhia de Carris Urbanos”, seguindo em direção ao Corpo de Bombeiros onde assistiram exercícios do tipo “pára-quedas, saco salva vidas, escadas de assalto, executados com grande habilidade pelos praças[…]. Com grande admiração viram ainda a um simples toque de clarim, saírem das respectivas baias, os animais para se colocarem pacificamente nos varais das bombas[…]. Às quatro horas, lunch e brindes, erguendo vivas à República do Chile, ao seu presidente e a Sua majestade o Imperador[…] Realizar-se-á hoje o baile da Ilha Fiscal oferecido aos oficiais chilenos, havendo das sete horas da noite em diante, barcas para conduzir os convidados” (44).
Dia 9, o dia da festa, ainda houve tempo para outras atividades: “pela manhã, visita ao Hospital São Sebastião e Laboratório pirotécnico de Campinho. No primeiro compareceram o Imperador com suas altezas e o príncipe D. Pedro”. Os jornais vespertinos, todavia, já publicavam informações sobre o “grande baile”:
“A ilha Fiscal foi transformada em ilha de fadas, uma verdadeira maravilha, um paraíso perdido em pleno oceano. E tudo isto devido ao bom gosto e, sobretudo grandíssima atividade do guarda-mor da Alfândega, o sr. Comandante Hasselman. Mais algumas horas e aqueles que nos honram com sua leitura reconhecerão que tudo aquilo do que imaginaram. Ao baile! Ao baile! É hoje a senha da cidade” (45).
“Dentro de poucas horas estará satisfeita a ansiedade dos que felizes puderam conseguir entrada para o baile aos oficiais chilenos no palácio da guardamoria, onde a gentileza do governo imperial e o apurado gosto artístico do sr. Comendador Adolfo Hasselman se uniram para saudar condignamente a República do Chile na briosa oficialidade do Almirante Cochrane. Muito terão de ver, de admirar e de aplaudir os que participarem da festa e nela figurarem; os que não puderam obter os cobiçados convites leiam esta pequena descrição de notícia da magnificência que se preparou e que hoje deslumbrará a todos na Ilha Fiscal. Os convidados embarcarão no cais Pharoux que estará brilhantemente iluminado e ornamentado e onde tocará a banda de música do corpo militar de polícia.”
Outra coluna exibe artigo em negrito sobre “A Festa de Hoje”:
“Chove… pingos d’água muito miúdos, como que peneirados… O jornalista tem destas descrições. O leitor é ávido em saber do que se passa; já não se contenta hoje com a notícia de um fato consumado, quando este fato tem antecedentes. Ele quer ser informado das minudências e dos detalhes desses antecedentes; não permite um trabalho metódico de acumulação de dados para que se lhe relate um acontecimento com prólogo, ação e epílogo, e fica na exigência de quem se habituou a esforços de reportagem que a gente lhes dá em pequenas doses o medicamento até debelar a sua gulodice de novidades […] se a chuva não persistir pondo uma nota fria nesta belíssima festa. Às 8 horas largará do cais Pharoux, em primeira viagem, uma barca que fará viagens sucessivas enquanto houver convidados a transportar. De meia noite em diante a barca começará a viagem de regresso, de meia em meia hora. O encouraçado chileno ficou em frente à ilha, mais ou menos no lugar em que está ancorado. Os navios de guerra brasileiros, saídos do porto, vão lhe fazer guarda de honra. Funcionando em todos eles poderosos projetores de luz elétrica que hão de fazer aquele lado da baía um verdadeiro lago de prata majestoso e fantástico. Desde o cais até a ilha estender-se-á uma linha de batelões iluminados em arco com lanternas venezianas e copos de cores. Em frente ao ponto de desembarque fundeará o Orion, cruzador da alfândega. O desembarque é feito numa ponte movediça que atravessará da ilha à barca, guardada por 12 marinheiros armados; na entrada, sobre dois postes, há quatro lâmpadas de força iluminativa de 800 velas.
Seguem-se outros quatro focos iguais no saguão onde vão ser armados dois quadros transparentes, um dos quais a alegoria – O Brazil recebendo o Chile. A linha de frente é ocupada por um enorme pavilhão onde está armada a grande lunette. Este pavilhão assenta em 24 colunas laterais e é iluminado por 96 lâmpadas com a força iluminativa de 1920 velas. À esquerda, levanta-se outro pavilhão, onde está o buffet e que tem duas salas. Na primeira, e em todo o comprimento, estendem-se duas mesas em forma de ferradura, de tapetes verdes e tem espaçosas janelas, cujos intervalos são preenchidos por panos das cores chilena e nacional. Em cada uma das colunas sobre que assenta este pavilhão, há um escudo, um brasileiro e outro chileno, com nome do Presidente da República, das províncias e dos mais ilustres nomes da marinha. A sala destinada á família imperial pode ser vedada por amplas cortinas que a separam inteiramente da outra sala; nesta, há 50 lâmpadas com força iluminativa de 1344 velas, além de 40 candelabros e 14 lâmpadas. A mesa desta sala foi posta para servir com cadeiras; toda a mobília é de apurado gosto. À direita e à esquerda são os salões de danças, três de cada lado e o de toilette das damas à esquerda e da família imperial, à direita. Duas orquestras tocarão nos terraços laterais; uma na sala do bufett, uma banda de música na torre a do Arsenal de guerra. A decoração das salas é inteiramente igual […] festões de flores ocultam lâmpadas; o espaço entre as janelas, preenchido por espelho em fundo veludo grená; o tapete é de um vermelho rubro artisticamente posto para quebrar o efeito de palidez da luz elétrica sobre as toilettes. Sobre os espelhos… coroas de flores, guardando âncoras de ouro e prata […] todas as dependências são iluminadas por luz elétrica. Há folhagens em todas as dependências” (46).
“Festa única em seu gênero nos anais da sociedade brasileira dificilmente ela será igualada. Desde as 6 horas da tarde, a população da Corte, em revoadas alegres e sedentas do feérico espetáculo, encaminha-se para o cais Pharoux, cais dos Mineiros, praia de D. Manuel e toda a extensão do cais de onde se pode avistar no salso elemento bem de perto, ao espetáculo […] as barcas ferry estavam apinhadas de passageiros que pagavam contínuas passagens para assistir ao esplendor da iluminação de cores variegadas. As eminências que estão mais próximas, achavam-se literalmente cobertas de povo e muitas famílias levaram grande parte da noite a observar os efeitos de iluminação, os acordes das bandas marciais e o movimento do povo. Não havia uma casa perto do local do baile que estivesse desocupada; tinham sido invadidas por famílias; os hotéis, casas de saúde, árvores do paço, chafariz, escadas que dão para o mar, tudo estava repleto […] os nossos encouraçados encandeavam o público com a projeção da luz dos seus holofotes movediços que relampejavam como um chicote luminoso todo o vasto horizonte da nossa cidade. Na baía vogavam lanchas a vapor e embarcações de todo o gênero garridamente empavesadas e iluminadas a giorno, algumas delas tendo à bordo excelentes bandas que executavam tépidas barcarolas e lânguidas habaneras […] cerca de 9 horas da noite chegaram Suas majestades e Altezas Imperiais ao cais Pharoux onde foram recebidos pelo sr. Presidente do conselho, barão de Sampaio Viana e comissão nomeada. Nessa ocasião, saudaram as fortalezas e como fora convencionado, subiu aos ares uma enorme girândola e no cais e na ilha queimaram-se fogos cambiantes de muitas cores. Recebidos na ilha por uma multidão enorme de convidados, Suas Majestades e Altezas foram saudadas calorosamente. Uma verdadeira ovação. Pouco depois começou o baile. O que ele foi, é difícil de dizer. A riqueza oriental das toilettes, o brilho e o ruge-ruge das sedas que mal cobriam as espáduas marmóreas das senhoras, o veludo, a pelúcia de seda que guardavam como as portas de um sacrário os colos alvos e palpitantes das brasileiras, salpicados de brilhantes, de safiras, de esmeraldas; os diademas rutilantes nos penteados artísticos das moças; o burburinho argentino do contentamento aflorando de lábios coralinos das avezinhas implumes que contam apenas 15 ou 18 primaveras; a galanteria fidalga dos cavalheiros, uns trazendo suas vistosas grã-cruzes, outros ostentando na lapela os miosótis, as violetas, as raríssimas camélias; o dourado sedutor das fardas, cobrindo peitos patrióticos – como descrever tudo isto?” (47).
“As danças estiveram sempre animadíssimas e é impossível nomear os convidados que nelas tomaram parte, pois que no baile concorreram os mais elevados representantes de todas as classes sociais e as mais distintas senhoras do Rio de Janeiro […] as danças continuaram depois da ceia, prolongando-se até o amanhecer” (48).
O comportamento da Guarda Nacional não escapava aos jornalistas mais identificados com as idéias republicanas:
“quando cheguei e alonguei os olhos na ponte de embarque das barcas Ferry, cegou-me um deslumbramento: era por toda a parte uma fulguração de penachos ondulantes, branco e rubro, desafiando o vento do mar. Parecia que um bando de aves fantásticas pousara na ponte para dar às plumas um banho apoteótico de luz elétrica. E os oficiais não se continham. Rodopiavam, giravam, acotovelando a multidão, amarrotando com as espadas os vestidos das senhoras, arranhando as casacas dos senhores com as dragonas. Disse eu, de mim para mim – temos batalha naval! A dançar, santo Deus, a dançar! Não há como oficiais da guarda-ouro-pretoriana para ter uma noção exata do que são as regras da grande tênue de baile. Dançar de capacete e espada – é um cúmulo […] [na volta para terra firme] um moço achou que a guarda era engraçada e riu. Riu.[…] Todos da Guarda caíram sobre ele de espada desembainhada, rasgaram-lhe a casaca, ensangüentaram-no, deixaram-no quase morto […] Bravo! Não pode haver maior heroísmo. Todos contra um […] com as proezas da Guarda consentidas e patrocinadas pelo governo, coincide a dispersão do exército. Destacam-se os regimentos, retalham-se os batalhões” (49).
Ainda sobre a festa:
“Viu-se que não houve pena, nem escrúpulo de gastar dinheiro do estado contanto que a obra saísse limpa, asseada e perfeita, na grandiosa proporção dessa maravilhosa chuva de ouro que inunda e fertiliza todo o país […] se a festa esteve suntuosa e esplêndida pelo conjunto de sua decoração, sob outros pontos de vista esteve abaixo de toda crítica. […] (presença de muito ‘bicho careta’) […] o mau exemplo partiu do próprio presidente do conselho que, em nome do governo, oferecia aquele baile […] sua exma. como que atordoado com aquele estranho movimento não conservou a compostura correta de um homem de estado […] percorria os salões com passo apressado e desmedido como quem andasse corrido da justiça. Com a cabeça calculadamente levantada, visivelmente fora de alinhamento, como para mostrar que vive de fronte erguida, envolvia-se no meio de compacta multidão, movendo-se descompassadamente, com gestos desordenados e petulantes, com ar afetado de suficiência, impondo-se com estudada arrogância, inculcando-se o único homem deste país, depois do conde de Motta Maia que é o primeiro estadista da América do Sul como está escrito em sua biografia prestes a chegar da Europa. Era tal a sua agitação que se o viu, no salão do buffet, arrastando violentamente pela mão, o barão de Drummond como que o conduzindo para ver algum animal raro no Jardim Zoológico. Aquele estado de perturbação, antes parecia filho da inquietação do que resultado de deslumbramento. Dois fatos se deram naquele dia […] antes da hora da festa o gabinete tinha assistido à sessão do conselho do estado pleno para ouvir sua opinião sobre o crédito de seis mil contos para acorrer as despesas coma seca do norte […] a essa reunião esteve presente o conselheiro Andrade Figueira que se constitui o terror dos governos dissipadores dos dinheiros públicos ( e sobre este), só vive e só tem vivido de corrupção, pela corrupção e para a corrupção […] até o senhor Mayrinck, o conselheiro, o deputado geral, o incorporador do banco Constructor, o presidente do banco Predial e de Crédito Real do Brazil fez sua entrada triunfante envergando vistoso fardão que pelo brilho parecia do generalíssimo Terra Marinque, e adornado de suas gloriosas condecorações. […] O ilustre conselheiro preferiu apresentar-se fantasiado em oficial de mentira a comparecer como representante da nação, embora também de mentira, envolvido em sua casaca, que mais assenta em um homem circunspeto que não pertence à nobre classe militar. Engana-se quem acredita que pelo nome e prestígio tem o poder de reabilitar uma instituição que caiu fatalmente pelo ridículo. [Sobre o comendador Malvino Reis disse o conde Motta Maia] ‘é um militar de bobagem que só tem pelejado em campos de salmoura, trazendo ao peito penduradas amostras de lata de goiabada; é com esta gente piramidalmente ridícula e colossalmente desfrutável que pretende o governo organizar a milícia que defenderá as instituições monárquicas intimidando o exército que procura enfraquecer, disseminando por todo o Império, para com mais segurança e mais comodamente decretar sua dissolução. Quando chegar o momento da ação, travando-se a luta, a debandada não será deste mundo’” (50).
Na coluna “Corte e Praça” da Revista Semanal, se registrava: “Segundo rezam os melhores apreciadores, a rainha do baile foi S.A a Princesa Imperial. Aquela seda preta de reflexos cambiantes do vestuário, opulentada pelas formas régias da ilustre princesa, coroava-se artisticamente com um magnífico cabelo engastado de brilhantes fascinadores” (51).
“Para fazer honras ao comandante Bannen, capitão de fragata, todos os nossos almirantes e generais estiveram no baile, a principiar por sua Majestade que é generalíssimo e pelo conde d’Eu que é vice-generalíssimo”
(52).
Dia 10/11: “Pela manhã, visita ao Hospital São Sebastião e Laboratório Pirotécnico de Campinho. No primeiro compareceram o Imperador com suas altezas e o príncipe D. Pedro. No segundo, assistiram a fabricação de cartuchos de pólvora e espoletas; depois, se seguiram profusos lunchs e danças até 5 horas”.
Dia 13/11: “comissão da Sociedade Club de São Cristóvão foi a bordo do Almirante Cochrane convidar o comandante Bannen e o ministro do Chile para o baile que lhes será oferecido no dia 30 do corrente. Visita também de uma comissão de ‘torpedistas da nossa marinha’” (53). No dia 14/11, a oficialidade chilena fez uma visita ao príncipe Pedro Augusto.
No mesmo dia da Proclamação da República, o jornal Tribuna Liberal dá notícias da visita que fizera Bannen ao colégio Salesiano em Niterói, enquanto O País trombeteia a nova festa a realizar-se daí a seis dias no convés do Almirante Cochrane para “os companheiros de armas”. Nesse mesmo dia, segundo o mesmo jornal, os chilenos teriam ido a Petrópolis, onde se refugiara D. Pedro II fugindo do calor carioca. O Diário de Notícias, por sua vez, informava que o “High-Life fluminense ainda teria mais algumas ocasiões de encontrar-se com a digna oficialidade do cruzador chileno. Pretende-se fazer as seguintes festas: Sua Majestade a princesa imperial vai abrir amanhã – dia 16, portanto – os salões de seu palacete, oferecendo a essa oficialidade uma bonita soirée, onde em magnífico concerto se fará ouvir o que há de melhor no mundo artístico e elegante”.
A julgar por essa agenda, nenhuma informação circulava, pouco ou nada se sabia dos preparativos para o golpe, as festas seguiam seu ritmo.
Num desabafo sobre o 15 de novembro, o barão de Muritiba resumiu esses dias de festas e sociabilidades como a saída de um sonho em direção ao pesadelo. Não lhe passaram despercebidos os comentários sarcásticos emitidos no dia do baile da Ilha Fiscal, espécie de prenúncio agoureiro do episódio que iria viver a família imperial.
Conta ele que, “Poucos dias antes da explosão, a 9 de novembro, por ocasião do faustoso baile, quando o Visconde de Ouro Preto, empunhando a taça saudou em brilhante discurso a Nação amiga […] quando, acompanhando a saudação erguiam-se estrepitosos vivos, soavam os hinos e troava a artilharia, conta-se que um oficial general da Armada, o Vice-Almirante Wandenkolk postado a pouca distância, em tom zombeteiro, ouvido pelas circunstâncias disse: ‘rira bien qui rira le dernier’” (54).
Muritiba recorda também que, sabedor da volta do imperador à capital, o comandante Bannen foi ao Paço da Cidade e colocou à disposição do imperador o encouraçado Almirante Cochrane. E respondeu-lhe D. Pedro, segundo o mesmo narrador, “não parecendo estar totalmente compenetrado da situação: ‘Isto é um fogo de palha, eu conheço os meus patrícios’, palavras que o Oficial estrangeiro ouviu com visível mostras de verdadeira surpresa”. Não foi à toa que, ao embarcar para o exílio no dia 17/11, despediu-se de seus algozes dizendo: “Os senhores são uns doidos!”. Enquanto isso, o representante diplomático do Chile, Wilamil, soluçava de desgosto.
A cidade que a família imperial viu de longe, ao cruzar a Baía de Guanabara, no paquete Alagoas, numa manhã radiante, mergulharia num turbilhão de transformações, para além daquelas políticas. O vaticínio de Raul Pompéia se realizara. O ideário da belle époque simbolizado “en tout splendeur” no cenário, nos trajes e na música que animaram o baile da Ilha Fiscal escondia uma face perversa, que doravante se exporia. A visão racista que permitia enquadrar e controlar os recém-libertos, por exemplo, é parte das mudanças que se instalavam.
A medicina legal, obcecada em perseguir feios, sujos e pobres, outra. O Bota-Abaixo que mudou o espaço urbano colonial, fruto de uma adaptação milenar da arquitetura portuguesa, mais outra. Todas mudanças nascidas da mesma política que cortaria avenidas e expulsaria famílias desfavorecidas da capital, inventaria a favela e o pivette, política que viria à tona com a República.
Jamais saberemos se ao referir-se aos “doidos” D. Pedro intuía que, visto a distância, o cenário por trás do baile apenas reorganizaria as instituições políticas, sem maiores transformações econômicas e sociais. Houve até quem interpretasse o novo sistema político como “um salto para trás” no tempo histórico, uma ruptura com a tendência centralizadora do Império que acabou dando no domínio de fazendeiros no quadro político nacional. Outras interpretações, ao contrário, vêem o fortalecimento do poder central, coincidindo com a decadência econômica dos proprietários rurais de diversas regiões, doravante dependentes de recursos e proteção proporcionados pelo aparelho público federal. Outras, ainda, sublinham o aparecimento de grupos oligárquicos capazes de barganhar favores, empregos e verbas em troca de apoio político. A recém-nascida República trazia muita coisa do Império. Ela já nascia Velha (55).
José Murilo de Carvalho e mais recentemente Lúcia Bastos Pereira das Neves e Humberto Fernandes Machado (56) vêm discutindo exaustivamente o sentido do alheamento dos diversos grupos que participaram como atores – os “doidos” –, ou simples espectadores – os “bestializados” – da Proclamação da República. Os documentos da Coleção Festas Chilenas do Arquivo Nacional encorajam a reflexão sobre como em grupos de solidariedade formal ou informal, de “doidos e de bestializados”, se teceu uma rede de pertenças comunitárias em favor de participar ou de ignorar os fatos que se apresentavam. Afinal, os laços de solidariedades locais, políticas ou corporativas mostram que a sociabilidade dos indivíduos, no ocaso do Império, não tinha por limite as categorias sociais, mas outras identidades ainda por iluminar.
Notas
1 Em crônica escrita a 17/1/89 em Crônicas do Rio (Rio de Janeiro, Biblioteca Carioca/Secretaria Municipal de Cultura, 1996, p. 65).
2 Lilia Moritz Schwarcz, As Barbas do Imperador – D.Pedro II, um Monarca nos Trópicos, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p. 445.
3 Vivaldo Coaracy, Memórias da Cidade do Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Itatiaia, 1967 (de quem empresto as informações a seguir.
4 Raul Pompéia, op. cit., 19/5/89, pp. 40-1.
5 Sérgio Pechmann & Lílian Fritch,“A Reforma Urbana e seu Avesso: Algumas Considerações a Propósito da Modernização do Distrito Federal na Virada do Século”, in Revista Brasileira de História, 5 (8; 9), 138, São Paulo, set./1984, abr./1985. Ver também Myriam Bahia Ramos, O Rio em Movimento – Quadros Médicos em História, Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, 2001.
6 Empresto a seguir informações de: Sylvia F. Damazio, Retrato Social do Rio de Janeiro na Virada do Século, Rio de Janeiro, UD/UERJ, 1996, pp. 12 e passim.
7 Ver sobre o assunto: Pedro Corrêa do Lago e Rubens Fernandes Junior (orgs.), O Século XIX na Fotografia Brasileira, Rio de Janeiro/São Paulo, Francisco Alves/Faap, s/d.
8 O Rio de Janeiro do Meu Tempo, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1938, 3 volumes.
9 Damazio, op. cit., p. 165.
10 Sérgio Buarque de Holanda. O Brasil Monárquico – do Império à República, vol. II, História Geral da Civilização Brasileira, São Paulo, Difel, 1977.
11 Pompéia, op. cit., p. 46.
12 Idem, ibidem, p. 32.
13 Idem, ibidem, p. 37.
14 Gilberto Freyre, Ordem e Progresso,Rio de Janeiro, Record,1990.
15 Ver a correspondência do conde d’Eu, a condessa de Barral e D. Isabel em: Roderick J. Barman, Citizen Emperor – D.Pedro II and the Making of Brazil, 1825-91, especialmente o capítulo “The Hand of Fate, 1887-1889” (pp. 335 e passim).
16 É o que informava em outubro o editor do Jornal do Comércio (apud Barman, op. cit., p. 344).
17 Ver sobre o assunto: José Murilo de Carvalho, Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que Não Foi, São Paulo, Companhia das Letras, 1997. O autor lembra que na primeira conferência a Guarda Negra organizada por José do Patrocínio criou problemas ao conferencista.
18 Freyre (op. cit., p. 421) lembra que tais encontros lhe valeram o “escândalo das popelines” armado contra Cotegipe por Cesário Alvim.
19 Gilberto Freyre, op. cit., pp. 418-9.
20 Ver Schwarcz, “O Império das Festas e as Festas do Império”, in As Barbas do Imperador, op. cit., pp. 253-94.
21 Pompéia, op. cit, pp. 89-90.
22 José Antônio Soares de Souza, “A Província do Rio de Janeiro nas Vésperas da Abolição”, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, julho-setembro/1979, pp. 3-20.
23 Sobre a abordagem historiográfica que pensa as solidariedades ver: Yves Durand, Les Solidarités dans les Sociétés Humaines, Paris, PUF, 1987.
24 Ver o seu Os Bestializados – O Rio de Janeiro e a República que Não Foi, op. cit.
25 Diário Oficial de 31/10/1889, na Coleção Festas Chilenas, acervo de Arquivos Privados, códice 82 CP32.
26 Gazeta da Tarde, 1/11/89.
27 Documento no 370 da mesma coleção.
28 O Jockey, coluna “Derby Club”. Sobre esportes no Rio de Janeiro ver o livro obrigatório de Victor Andrade de Melo, Cidade Esportiva, Primórdios do Esporte no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Faperj/Relume Dumará, 2001.
29 Diário de Notícias, 2/11/89.
30 Gazeta de Notícias, 2/11/89.
31 Jornal do Commercio, 4/11/89.
32 Gazeta da Tarde, 4/11/89.
33 Jornal do Commercio, 5/11/89.
34 O País, 5/11/89.
35 Novidades, 5/11/89.
36 Gazeta de Notícias, 5/11/89.
37 O País, 6/11/89.
38 Idem.
39 Tribuna Liberal, 6/11/89.
40 Gazeta de Notícias, 6/11/89.
41 Tribuna Liberal, 6/11/89.
42 Jornal do Commercio, 6/11/89.
43 Diário de Notícias, 9/11/89.
44 Jornal do Commercio, 9/11/89.
45 Novidades, 9/11/89.
46 Gazeta de Notícias, 9/11/89. Sobre toilettes nesse período,ver: Maria do Carmo Teixeira Rainho, A Cidade e a Moda, Brasília, UNB, 2002.
47 Tribuna Liberal, 9/11/89.
48 Diário Oficial, 10/11/89.
49 Correio do Povo, 10/11/89.
50 Chronica do Correio do Povo,10/11/89.
51 Novidades, 10/11/89.
52 Estado do Rio, 11/11/89.
53 Jornal do Commercio, 13/11/89.
54 Apontamentos do barão de Muritiba sobre o 15 de novembro de 1889, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, volume 252, julho-setembro/1961, pp. 299-315.
55 Renato Venâncio e eu sintetizamos essas questões em nosso Livro de Ouro da História do Brasil (Rio de Janeiro, Ediouro, 2002, especialmente os capítulos XXIII, XXIV e XXVI).
56 De Pereira das Neves e Machado ver: O Império do Brasil, Rio de Janeiro, Nova Fronteira,2002.
Texto de Mary Del Priore publicado na "Revista USP", São Paulo. nº 58, junho-agosto de 2003, excertos pp.30-47. Digitalizado, adaptado e ilustrado por Leopoldo Costa.
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