8.06.2018

IMAGENS DA MULHER NO BRASIL COLONIAL

Uma senhora de algumas posses em sua casa”, Jean-Baptiste Debret, Rio de Janeiro, 1823.
"A mulher é muito apta com a graça de Deus para a virtude, se não romperas leis do Bem que Deus lhe deo."
Frei Luiz dos Anjos, 1626

A IGREJA E AS FILHAS DE EVA

As personalidades, tão diferenciadas, dos trabalhos de Gilberto Freyre e Caio Prado Jr. concordam em reconhecer nas mulheres brasileiras do período colonial o uso luxurioso do corpo.

Desnudando os corpos quentes e sensuais das escravas negras em constante intercurso sexual com seus senhores, Freyre descobre os corpos marmóreos, porque brancos e frios, das sinhás sem prazer. Sob o signo da dupla moral, corpos femininos de cores e situações sociais diversas fariam, segundo ele, o prazer ou a prole dos homens do Brasil colônia. Caio Prado, com o mesmo olhar dos viajantes do século XIX, as vê licenciosas e dissolutas. Fora do espaço doméstico ou do oito, seriam “mulheres com facilidades de costumes”, associadas às "mulheres submissas de raças dominadas", surdas aos deveres do matrimônio e genitoras de irregularidade moral. Endossando os estereótipos, afirma que a prostituição era a forma de trabalho mais frequente. I ste diagnóstico tem uma longa trajetória, pois é com esta mesma dis- larçada misoginia (ou machismo) que a Igreja se debruça sobre suas ovelhas, desde os primeiros anos de dominação colonial.

A importação da metrópole de um discurso moralizador sobre o uso dos corpos, instala-se na Terra de Santa Cruz de par com o desejo de cristianização e difusão da fé católica, bem como com a ânsia do sistema mercantil de constituir contingentes populacionais que habitassem as novas terras. A idéia de adestrar a sexualidade dentro do “tálamo conjugal” decorre do interesse de fazer da família o eixo irradiador da moral cristã. Mas eis que falta à mulher ideal para casar, e a Igreja vai dispender séculos de peroração para formar, fora das elites, uma mentalidade de continência e castidade para mulheres para quem certas noções como virgindade, casamento e monogamia eram situações de oportunidade e ocasião, em contrapartida à realidade mais forte: a das dificílimas condições materiais e insegurança econômica na colônia, que ditava regras e costumes próprios.

O discurso sobre o uso dos corpos femininos e seus prazeres, imposto de cima para baixo, sobretudo a partir do século XVII, expressa-se através de uma apologia que lisonjeia a mulher para melhor submetê-la. A Reforma protestante e a Contra-Reforma católica, introduzindo mais austeridade nos costumes, dão o tom severo dos discursos, e a mulher torna-se o alvo preferido dos pregadores que subiam ao púlpito para acusá-la de luxúria. Com origem no Gênesis, o mito da mulher voluptuosa e perversa atravessa com momentos de exaltação os primeiros séculos do cristianismo até o século XVII, período da fulminação eclesiástica contra o sexo.

Uma abundante produção de “panegíricos” (obras elogiosas) encobria o pretexto de melhor domesticar a mulher dentro do casamento, e para tal fim se fazia necessário eleger um modelo feminino de corpo obediente e recatado, e carnes tristes. Para louvar esta mulher, determinava-se com clareza o seu avesso: “... as que estão sujeitas e muito apegadas a seus sentidos...” na descrição do pregador frei Antonio de Pádua, em 1783. Nestas, um manual de confissão de 1794 há de admoestar”... “o vão, o supérfluo, o desavergonhado adorno... seus enfeites enganosos, seus unguentos olorosos e outros mil embeiecos e embustes que usam para chamar atenção dos homens”. Queixando-se do que considera “provocação intolerável”, o confessor Manuel de Ar- ceniaga segue condenando “a nudez dos peitos... e as desculpas que aparentam cobri-los com gazes e panos transparentes, porque não os ocultam nem cobrem, antes com estes enganos artificiosos,, provocam, atraem e chamam mais atenção”. A necessidade de recato é uma regra. “Se alguma mulher se fardar com alvaiade ou outro enfeite para agradar a outros que não seu marido, imponha-se-lhe três anos de penitência”, declara ainda Arceniaga. Além de perseguir a exibição de “seios e tetas”, que a Reforma irá associar à piostiiuição, a Igreja vai ao encalço da ostentação dos pés femininos, pois que “espicaçavam os aguilhões da carne”.

“Que mulher nenhuma vá às igrejas de saia tão alta que lhe apareçam os artelhos dos pés e com as saias à maneira de degraus de sepultura aparecendo a mais inferior, nova moda que com escândalo de toda a modéstia e honestidade tem introduzido o demônio”, reza a carta pastoral de D. Antonio de Toledo em 1773.

Deseja-se fechar a mulher na armadura da aparência para que ela não seja a imagem falaciosa de si mesma. A este modelo de desordem sensual contrapõe-se a necessidade de recato que deve ser obedecida mesmo à força.

Num processo paulista de divórcio em 1756, o juiz aconselha ao marido: “Fazendo a mulher o contrário de amar e respeitar o marido é permitido a este reger e aconselhar sua mulher, e ainda castigá-la moderadamente se merece...” Se o castigo não for humano ministrado pelo marido, ele será divino.

A mulher que deseja escapar aos castigos celestiais ou temporais deve estar enquadrada no casamento, e nele “... deve estar sujeita ao seu marido... deve reverenciar-lhe, querer-lhe e obsequiar-lhe. Deve inclinar-se ao séquito da virtude e com seu exemplo e paciência ganhá-lo para Deus. Não deve fazer coisa alguma sem seu conselho. Deve abster-se de pompas e gastos supérfluos e usar de vestido honesto conforme seu estado e condição de cristã”. (Manuel de Arceniaga).

O autor da Instrução às senhoras casadas para viverem em paz e quietação com seus maridos, obra de 1782, ainda emenda: “Quando o marido a corrigir de alguma coisa mostre-se-lhe agradecida a seu bom afeto e receba a correção com humildade”.

Diogo de Paiva de Andrade, autor do século XVII, também faz eco às admoestações da Igreja quando aconselha em seu livro “O casamento Perfeito”: “A mulher nem há de ver, nem há de ser vista principalmente quando estiver muito enfeitada, porque ambas estas causas costumam provocar desonestidade”.

As preocupações com a pureza física e mental das mulheres extrapolavam os textos sacros e profanos e invadiam a mídia mais eficiente dos tempos coloniais: o confessionário que assim como o púlpito das igrejas em dias de ofício e festas religiosas irradiava o discurso normatizador dos corpos. O padre confessor então perguntava à confitente:

“Se pecou com tocamentos desonestos consigo ou com outrem? Se tem retratos, prendas e memórias de quem ama lascivamente? Se falou palavras torpes com ânimo lascivo? Se se ornou com ânimo de provocar a outrem a luxúria?” O controle sobre o corpo feminino avançava, e em nome do amor conjugal tão caro à Igreja, deitava-se nos leitos e redes com as mulheres casadas. “Acuso-me que com minha mulher tive várias vezes tatos, ósculos, amplexos e palavras torpes”, declara cabisbaixo um marido confitente. A Igreja ainda controlava e punia o coito interrompido, pois que só admitia a cópula com finalidade de reprodução. Os manuais de confissão indagam sobre a cópula de casados dentro da Igreja e outros lugares públicos, numa clara mostra de que a noção de privacidade para o sexo, ainda não se tinha instaurado. E finalmente, proíbe o acesso a mulheres menstruadas, “pela imundície... e dano que- podia causar à prole”, como a lepra e outras enfermidades. Só não se contagia de qualquer mal, a mulher exemplar “que paga ao marido que pede com instâncias para aliviar o perigo da incontinência”.

Mas será certamente a constituição da família, como eixo de difusão da fé católica, assim como o papel da mulher enquanto propagadora do catolicismo, que irá inspirar os pregadores coloniais. Insiste Arceniaga em 1724: “... seu principal cuidado deve ser instruir e educar os filhos cristãmente, cuidar com diligência das coisas da casa, não sair dela sem necessidade nem sem permissão de seu marido, cujo amor deve ser superior a todos, depois de Deus”.

Azeredo Coutinho, em 1798, embute neste discurso tarefas construtivas para a mulher. Sua submissão passa a ser mais um valor a serviço do modelo feminino ideal. Nele, a educação confunde-se com domesticidade. Diz ele, “... aqueles que não conhecem a grande influência que as mulheres têm no bem ou no mal das sociedades, parece que até nem querem que elas tenham alguma educação. Mas isto é um engano, é um erro que trás o princípio da ignorância. Elas têm uma casa que goverpar, um marido que fazer feliz e fiihos que educar na virtude”.

Não são, porém, apenas estes os corpos femininos ideais a serviço da Igreja e do amor a Deus. Além dos pregadores ventríloquos que esvaziam a mulher de qualquer uso prazeroso do corpo, a literatura laica confirma o modelo da mulher contida e obediente introduzindo, no entanto, uma contrapartida de seu companheiro. Adverte o autor do Casamento Perfeito: “Com que razão ou confiança poderá matar a sua mulher por uma afeição desordenada, quem se desordena em tantas e tão escandalosamente, sem temor de Deus nem vergonha dos homens, nem emenda nas maldades nem intervalo nas torpezas”.

Rui Gonçalvez, em 1557, autor Dos privilégios e das prerrogativas que o gênero feminino tem por Direito comum e Ordenações do Reyno, mais do que o gênero masculino, advoga sobre a fragilidade da carne feminina, “... na qual virtude de castidade o gênero feminino sempre foi igual com o masculino... se prova serem as mulheres tão excelentes nesta virtude e mais que o gênero masculino e da virtude ser tão heróica”.

Diogo de Paiva de Andrade pondera em prol das mulheres: “Nunca convém ao homem prudente dar à sua mulher liberdades demasiadas... quer dizer, se ela se desconcertar por demasiada largueza de seu marido, não merece ela o castigo, se não ele”. Os homens, segundo Paiva, são suspeitos e “... porque pode haver homens de natureza tão rebelde e contumazes que não baste nenhum amor nem diligência para se darem por obrigados ao que suas mulheres lhes merecem, têm elas mais precisa necessidade de tirar primeiro que casem, por pessoa fiel e verdadeira, mui particulares informações das vidas, costumes e inclinações e procedimentos de seus maridos... que as virtudes e os vícios dos homens andam mais na praça que os das mulheres”. (1630)

Não há, no entanto, consenso dos autores eruditos sobre a posição da mulher. Um anônimo do século XVII sublinhava: “É o homem que deve mandar e a mulher somente criada para obedecer”. O Guia de casados, espelho da vida, insistia: “É a mulher o centro dos apetites, desejosa de muitas cousas diz Catulo, e se o homem conviver com todos os seus desejos facilmente cairá nos maiores precipícios...”

O acordo epistolar entre autores laicos ou religiosos gira sempre em tomo das mesmas questões: o casamento como elemento de equilíbrio social, e dentro dele, a ausência de paixões, a obediência e a subordinação da mulher. A Igreja, mais minuciosa, fabrica através dos manuais de confissão um saber sobre a sexualidade feminina no passado, pois não capturar o mais íntimo, o mais ínfimo dos gestos, significa não poder controlá-lo nem puni-lo.

A hipocrisia deste sistema normativo - que quer eleger um modelo ideal de mulher para implantar, com sucesso, a família e a fé católica na colônia, - explicita-se claramente nos processos que desvendam as formas de contravenção às leis civis e eclesiásticas. Quão distantes da pregação erudita e religiosa não se encontravam as mulatas e negras forras e as brancas empobrecjdas, todas mulheres livres a lutar contra as dificuldades do cotidianajÃo discurso monocórdío sobre’ seus comportamentos, ou’os"'qõè^deveriam ter, elas respondiam com práticas tidas por desabusadas, mas apenas resultantes de suas condições materiais de vida. Ao “público escândalo” de tantos concubinatos e mancebias somavam-se filhos tidos “por fragilidade da carne humana”, fora de qualquer laço conjugal. A maternidade, além de sentimento, cuidados com filhos e trabalho de parto, era um laço que unia mães e filhas num mesmo ofício: o da prostituição, com a bênção da pobreza e a conivência de pais e maridos.

Com o fôlego das profundezas, as mulheres irão buscar na pregação religiosa que aparentemente lhes vitima e cerceia, os mecanismos de resistência à exploração e ao sofrimento. Ardilosas, recorrem, quando lhes convêm, aos tribunais eclesiásticos para separarem-se de maridos que as brutalizam ou lhes dissipam os bens. Através de processos por rompimento de esponsais, resgatam noivos, namorados e amantes fujões, que com promessas de casamento haviam “levado de suas virgindades”. Ao modelo exclusivo de amor matrimonial e às demandas tirânicas da Igreja sobre o uso de seus corpos, respondem com adultérios que pontilham aqui e ali, os processos de divórcios. E através dos testamentos revelam as outras faces da devoção e da maternidade: o horror às penas do inferno, e simultaneamente, à confissão de filhos bastardos.

' Descoladas, portanto, de uma prédica que as fantasiava virtuosas e puras, as mulheres coloniais são mais filhas de Eva do que de Maria; mergulhadas nas asperezas do trabalho doméstico, ou nos ofícios de rua e da lavoura, acabam por elaborar, mesmo enquanto rascunhos dos modelos eruditos, regras e éticas próprias.

AS PROSTITUTAS NO BRASIL COLONIAL

"As mulheres por se empregarem e por falta de meios para se sustentarem, se prostituem".
Carta do Marquês de Lavradio em 1778

Em virtude das enormes distâncias entre os discursos e as práticas sobre o uso dos corpos, e estando articuladas com a sexualidade não domesticada e com a luta das autoridades civis e eclesiásticas para transformar o “tálamo conjugal”, na única forma de sexo lícito, as prostitutas do Brasil colonial foram úteis para a construção e valorização do seu oposto: a mulher pura, identificada com a Virgem Maria e distante da sexualidade transgressora. Pacificadoras da violência sexual contra as donzelas casadouras e do desejo que pusesse em risco a fidelidade às esposas, as prostitutas, aos olhos da Igreja, eram a salvaguarda do casamento moderno.

Para os teólogos, a prostituição se constituía num crime menor do que o adultério ou a sodomia, pois desde o século XIII que textos de São Tomás de Aquino e Santo Agostinho justificam que “a sociedade carecia tanto de bordéis quanto necessitava de cloacas”. A velada cumplicidade com a prostituição convivia com as preocupações contra os concubinários, e com a idéia de que uma boa ordem familiar dependia de um meretrício ordenado em função dos celibatários. Estes, portanto, deveriam pacificar seu ânimos nos bordéis com mulheres “públicas e postas a ganho”, cuja sexualidade era uma mercadoria que caracterizasse o seu ofício.

A prostituição, embora aparentemente transgressora, constituía- se numa prática a serviço da ordem sócio-espiritual no mundo moderno. No Brasil, no entanto, as características que a tornavam um “mal necessário”, vão misturar-se com outras práticas consideradas pelas autoridades como transgressoras, fazendo com que a Igreja enxergasse, em cada mulher que infringisse as normas, uma prostituta em potencial. Como não se isolava as prostitutas em “putarias e mancebias”, nem se as cobria com véus como era uso na metrópole, na colônia os limites entre os comportamentos tidos por desviantes e a prostituição eram tênues.

Em Minas Gerais por exemplo, as Devassas realizadas no século XVIII rotulavam como “mal procedidas” e “meretrizes” as mulheres com formas não ortodoxas de relações extraconjugais. São denunciadas como prostitutas, mulheres amasiadas, separadas ou mesmo casadas; e seus maridos ou amantes como prestando-se à alcovitice ou lenocínio por pobreza ou velhice. Por maiores rendimentos os extremos da sociedade da mineração se tocavam: senhores exploravam suas escravas e mães exploravam filhas, sem qualquer constrangimento senão aquele dado pela miséria e pela fome. “Não há cousa como ser mulher dama, que sempre tem duas patacas na algibeira”, diz Emerenciana numa Devassa.

O universo do meretrício, “desenvoltura”, ou “desonestidade” ainda se caracterizava na colônia por passar longe dos esforços metropolitanos de conter o nascimento de mestiços, que tanto afligia as autoridades. Mais do que perseguidas por seu ofício, as meretrizes como as encontramos nos processos do século XVIII, são perigosas por engendrarem uma prole ilegítima, pois concebida fora do casamento, e miscigenada, porque contrariava o ideal da “pureza de sangue” tão caro aos colonizadores.

Em Minas Gerais e São Paulo, as “casas de alcouce”, espaço por excelência da meretriz, foram numerosas e exerciam a função simultânea de venda de comidas e bebidas. Confundiam-se mais adiante com os “zungus” ou “casas de posses” que os libertos e forros alugavam no Mio de Janeiro para exercer a fornicação.

Ao sabor de “galhofas, batuques e saraus”, o meretrício somava, além da pobreza, a espontaneidade e alegria dos encontros marcados fora da rotina exaustiva do trabalho. Não seriam as “casas de alcouce” espaços onde se desenvolveria uma sexualidade atípica, para fugir da austeridade pregada pela Igreja dentro do casamento?

Na Bahia em 1700, o jesuíta Jorge Benci já observava as mulheres-mercadoria que se ofereciam aos olhares masculinos, e descreve- as “adornadas em holandas, telas, primaveras e rendagens em ouro”, além das “folhagens da vaidade tirada por fruto e ocasião do seu pecado”. Em Minas, um bando de 1733 critica as escravas prostitutas por “andarem com cadeiras e serpentinas acompanhadas de escravos, e se atrevem irreverentemente a entrarem na casa de Deus com vestidos ricos e pompas, e totalmente alheias à sua condição...”. Vestidos estes “cortados na oficina do Diabo”, concluiria o queixoso Benci.

A prostituição de escravas era tão comum na colônia, que para não terem suas imagens contaminadas, nas primeiras décadas do século XIX, as senhoras tomavam o especial cuidado de esclarecer nos recenseamentos, que “viviam da honesta subsistência do jornal de seus escravos”.

Apesar de condescendente sobre a “fornicação simples”, dentro do casamento, a Igreja inaugura um discurso médico sobre os corpos, para combater os excessos da carne. Para isto, cria o conceito amplo de “luxúria” que teria que dar conta de tudo que não fosse o coito para a reprodução. Associado às “luxuriosas e lascivas”, o modelo da prostituta enquanto mulher venal surge no quadro da polarização entre vida conjugal e vida extraconjugal. A primeira, “boa”, a segunda, “má e pecaminosa”. As esposas, pudicas e castas, as meretrizes um mal obscuro e tenebroso.

Em 1732, Raphael Bluteau esclarecia no seu Vocabulário Portu- guez e Latino: Pecam as meretrizes contra a natureza porque fazem venal a formosura que a própria natureza lhes deu. Ofendem a si próprias, feitas alvo de toda a impudícia e prejudicam a pátria porque ordinariamente se fazem estéreis e se são fecundas dão origem a uma ignominiosa posteridade”. Com a mesma preocupação do autor do Casamento Perfeito, que associa adornos à devassidão, Bluteau também percebe na beleza algo transgressivo e por isso revolucionário. A esterilidade, invocada a seguir no seu discurso, é negativa pois contraria os pressupostos oficiais de aumentar o contingente branco e dominador para as tarefas da colonização. A ilegitimidade, por sua vez, compromete a ordem do Estado metropolitano na medida em que o equilíbrio da dominação colonial pode ser quebrado pelo incremento de “bastardos” e mestiços, colocados pelo próprio sistema, nas fímbrias da marginalidade social. Prossegue Bluteau: “A meretriz é um composto monstruoso; olhos de serpente, mãos de harpia, aspecto de Medusa, língua de 'áspide, riso sardónico, lágrimas de crocodilo, coração de fúria, voz de sereia, atrevida e temerária acomete os perigos, incontinenti e lasciva se deleita nos vícios, ímpia e sacrílega dedica ao apetite os sentidos que havia de consagrar a Deus; vive de artifícios e mata com enganos; foge para que a persigam; peleja para ser vencida, nega para ser mais desejada; se a tocares se dissolverá e deixará o chão encoberto de impudicas cinzas...”.

Tão sedutora quanto aterradora, esta é a imagem que invadirá o imaginário erudito dos pregadores do século XVIII, alheios contudo às “velhacarias e manganagens”, atributos mais prosaicos das prostitutas brasileiras. Os manuais de confissão como o de Arceniaga, previnem em 1794 os confitentes, contra “as mulheres profanas, que se apresentam nas ruas, nos-passeios, nas visitas com trajes indecentes e desonestos... para que as vejam com todo adorno e compostura que inventou a vaidade e a desordem de suas cabeças. E se a isto se junta a nudez dos peitos”, ameaça ele, “quem negará que esta falta de recato é de sua natureza incentivo à luxúria e portanto pecado mortal?”

Além de prevenir contra as meretrizes, tais manuais controlavam os penitentes. O confessor indagava: “Diga-me, a quantos anos estás empenhado neste vício?

Penitente: Padre, há trinta anos, porque desde os dezoito comecei a tratar com estas mulheres.

Confessor: Com que frequência saías e pecava com elas?

Penitente: Uns dias ia com umas, outros com outras, deixava aquelas e ia com outras, ou elas vinham me buscar. Raro era o dia em que não pecava com alguma, exceto quando estive enfermo por causa delas; mas nos outros dias pecava duas ou três vezes”.

Embora condenasse os excessos da luxúria, havia por parte da Igreja a preocupação de salvaguardar a função da prostituta. Sobre a remuneração que caracterizaria tais mulheres como “públicas”, o confessor Azpicuelta Navarro, em 1552, já advertia taciturno: “O que se lhe prometeu, se lhe há de pagar seguindo-se a causa e a torpeza”.

Elevada à categoria de pecado venial, e devendo pois ser confessada, a fornicação simples permanecia na mentalidade dos primeiros colonos como “... algo que fazia muito bem, e que não era pecado dormir com mulheres públicas”. A primeira Visitação do Santo Ofício à Bahia, em finais do século XVI, revela a espontaneidade de afirmações consideradas heréticas, mas que deviam ser de prática corrente na colônia. Diogo Nunes, por exemplo, dizia que “bem podia ele dormir carnalmente ali com qualquer negra d’aldeia e que não pecava nisso com lhe dar hua camisa ou qualquer cousa”. Um colono sossegava o outro sobre o fato deste ter ido “a desonesta conversação em casa de Mécia da Gama... mulher solteira e pública”.

Refletindo a posição da Igreja, a medicina dos séculos XVII e XVIII endossa o postulado de que a sexualidade desregrada afeta a saúde, agora não mais da alma, mas do corpo. O médico João Curdo Semedo, que esteve em visita à terra de Santa Cruz, relata um caso exemplar em seu livro publicado em 1707: “Certo homem indigno deste nome amava uma mulher com tão excessivo e desordenado afeto que fiado na idade de mancebo e na valentia das forças pretendeu apagar o ardente mongibelo em que se abrasavão aqueles dois Vesúvios de luxúria e para conseguir tão bárbaro intento soltou as rédeas aos torpes atos da lascívia de tal sorte, que caiu num fluxo copiosíssi- mo pela via da urina de que se seguiu um suor frio e síncope tão grande que ficou sem fala e quase morto como tem sucedido a muitos que estando no mesmo ato perderão a vida”. Nesta fala, como na da Igreja, a mulher é pretexto para mostrar que se mal usada, pode acarretar males físicos insuportáveis. Para “evitar arroubos e diminuir ímpetos”, nosso médico recomendava: “vinagre forte embebido em seis onças de água de tonchagem misturado com duas claras de ovo”. Numa outra receita bem pouco ortodoxa aconselhava que se “untasse as solas dos sapatos com esterco de manceba”.

Francisco de Mello Franco, médico paulista do século XVIII, indi- ca para combater os encantos das prostitutasT^rêmedios tornados da classe dos amargosos”. En/as ácidas como a losna deviam ser mastigadas várias vezes ao dia “junto com algum exercício penoso, como rachar lenha, cavar com uma enxada, viajar a pé, dormir em tábua dura, banhar-se em água fria”.

Mas se os discursos institucionais fazem desaparecer as mulheres de carne e osso atrás de imagens de Medusas e harpias, e sob remédios de castidade, é preciso ouvir suas vozes nos processos que se moveram na colônia contra as “mal procedidas”, confundindo sob o rótulo de prostitutas, as mulheres que usassem seus corpos em desacordo com as prédicas institucionais. Deslocadas dos bordéis, como se usava na Europa, e à mercê dos casamentos instáveis consagrados pelas condições de vida do período, compreendemos melhor as prostitutas sgbjoqaano deJundo da pobreza, onde o meretrício era um ofício ou uma forma de trabalho, ligada à mais imediata sobrevivência. No caso das capitanias ricas, uma possibilidade de mobilidade social.

Alguns olhares que nos ajudam a elucidar o sentido do meretrício nesta época são lançados por suas ferrenhas opositoras. Na São Paulo de 1769, Ana Francisca de Paula acusa seu marido de “viver solicitando meretrizes para escandalosamente com elas passar o tempo”. Igualmente injuriada por seu marido preteri-la “por mulheres que vivem meretrizmente”, a “matrona grave e honesta”, Maria Clara de São José, na mesma cidade em 1799, denuncia-o por incitá-la a o acompanhar “a batuques e bailes desonestos... com pessoas de baixa esfera e vida licenciosa e depravada...”. O meretrício não será aqui, portanto, uma instituição bem comportada que visa a pacificação de violências contra donzelas e esposas, mas sim uma opção além do casamento. Para os homens, estar na companhia de prostitutas em “casas de alcouce” ou similares significava ter um espaço alternativo à sexualidade conjugal, acrescido de outros aspectos de lazer como o jogo, a bebida, a música e o entretenimento fácil. Nas capitanias do sul, os espaços destes “tratos” serão os ranchos de beira de estrada, construídos quando da estruturação do comércio intracapitanias pelo Morgado de Mateus.

Nas cidades coloniais, as “mal procedidas” ganham suas vidas om praças, fontes, ruas e casas de comércio, até esbarrar ia repressão periódica de autoridades ou da vizinhança, incomodados com suas brigas e arruaças. Normalmente as mulheres alugavam quartos, ou casas, e misturavam o ocasional ofício do meretrício com outras atividades como costura, lavagem de roupas, venda de alimentos em tabuleiros, venda de mercadorias em retalho e prestação de pequenos serviços. Domingas Fernandes em São Paulo, 1758, é acusada de "... viver meretrizmente e desonesta... que é consentidora que em sua casa se desonestem mulheres... com outras chamadas Martinha, Ifigênia, Josefa e Narcisa moravam em suas casas alugadas a Luiz Tavares”. “Vivem de suas excomungadas torpezas”, insiste o acusador, e de “cometer com vários homens na mesma casa que tem a porta aberta para este detestável fim”.

Na mesma cidade, em 1752, Joana Maria Leite, “vulgarmente conhecida como Joaninha”, é acusada de ser “pública meretriz fazendo de tão torpe estado modo de vida, de sorte que não só está pronta a quantos a procurão, mas ainda incita os que não a buscam, para com eles ofender a Deus...”.

Das derivações que vidas femininas poderiam ter, um exemplo é Anna Delgada da Silva, que em 1781 é acusada de “ter se separado de seu marido e viver com escândalo concubinada com um soldado de regimento, e assistindo numa casa de alcouce e prostituição”. Da separação à prostituição Anna faz toda a trajetória condenada pela igreja. Outro exemplo de prática heterodoxa confundida com meretrício é o de Maria Jesus Pereira julgada como prostituta em 1757, porque “... é tão contumaz no pecado do concubinato... e por continuar nos seus torpes apetites”.

A precariedade das condições materiais de vida que empurravam as mulheres para este ofício, surge no processo de Joana Pedrosa, em 1754, Mogi das Cruzes: “... não faz vida com seu marido... (este) a muitos anos a desamparou... que a dita tem por ofício ancfar buscando homens passageiros por todas as vendas...” Muito comum no quadro de pobreza da colônia eram mães, pais e maridos consentirem na prostituição de suas filhas e esposas, assim como o faziam Francisca, Carijó, em Itu, ou Joana Ribeira, em Atibaia, em 1758, que exploravam as suas filhas. A primeira “... vivendo do que elas ganham por suas torpezas, acompanhando a sua filha que vai fora de casa a seu mau trato...”. A segunda, “... não só se desonesta çom uns e outros pública e escandalosamente, mas também serve de alcoviteira à sua filha solteira por nome Ana... entregando-a a todos que com ela se querem desonestar”. Em Minas Gerais, final do ciclo da mineração, Felipa, preta mina “...consentia que sua filha Teresa, parda forra, tivesse tratos ilícitos com homens devido a sua extrema pobreza”. Na mesma época e capitania, Anna Freire, parda forra, “é infamada de consentir que sua filha se desoneste cçm alguns homens”.

André Jorge, morador na Vila Rica do Carmo, em 1730, é processado por “consentir que sua mulher se desoneste com vários homens e sua filha com Matheus Parreiro, e que na sua casa se façam danças e folguedos, e andar sua mulher descomposta, lançando-se no rio à vista da gente, sem mantos...”. A Bahia, como demais capitanias não é exceção. Lá, em 1811, Agda de Santarém “é consentidora que sua filha Florinda viva apartada do marido e faça mal de si”. Também, “... a mãe de Maria, mulher de Dionísio, é consentideira que sua filha faça vida meretriz.”

Mães e filhas formam um grupo doméstico que se sustenta com a prostituição, seja ela dissimulada ou não.

A prostituta, carregada de preconceitos, como a herdamos hoje, nasce do conflito entre a idéia imposta de que havia uma muíher com permissão institucional para transgredir (meretriz de bordel), e as realidades da colônia que incentivavam por razões de sobrevivência, as infrações de qualquer mulher.

Os processos deixam claro a confusão de papéis, pois "mal procedidas”, concubinárias contumazes, mães alcoviteiras, vagabundas ocasionais misturavam-se às meretrizes de ofício, num jogo ditado pela pobreza e miséria sexual. Embora raramente condenadas pelos tribunais eclesiásticos, além de penas pecuniárias e excomunhões, as meretrizes tornaram-se alvo de um discurso que as acusava de “causar males físicos... propagar a céltica ou a venérea”, e de serem finalmente o “patíbulo onde jovens iam dar garrote à saúde”.

A ineficiência das punições práticas nos fazem pensar que o discurso erudito tornava-se uma forma de reafirmar a inferioridade feminina ao culpabilizar a mulher infratora. As prostitutas, muito a propósito, vão incentivar as brigas entre as mulheres “puras” e “impuras”. Nos processos de divórcio do século XVIII, “matronas graves e honestas” queixavam-se entre lamentos e desprezo, dos espaços invertidos e lúdicos onde se afinavam o sexo, a música, a bebida e o divertimento, que se lhes era vedado e se lhes opunha. As esposas, percebendo a polaridade de vidas tão diversas, reforçam em seus depoimentos as características “da baixa esfera e depravação” que acompanhavam as prostitutas, valorizando-se enquanto “mulheres puras e de bem-viver”.

A existência da casa de alcouce, onde pululavam viandantes, marginais, forros e desclassificados reforçava o seu oposto, a casa de família, e constituía-se no espaço onde prostitutas teriam impressas nas suas carnes, até os ossos, as marcas de suas misérias e os índices de seus destinos.

Texto de Mary Del Priore em "A Mulher Na História do Brasil", Editora Contexto, São Paulo, 1994, excertos pp.15-29. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

1 comment:

  1. Esse trecho aí acima, foi retirado do livro de Mary del Priory: A Mulher na História do Brasil, lançado pela editora Contexto. Muito bom esse estudo

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