9.14.2018

APRENDENDO NA POLÍTICA


Nossos partidos e um equívoco: as referências europeias 

Os atuais partidos políticos brasileiros nasceram da desagregação do regime autoritário formado a partir do golpe de 1964. Não é necessário descrever passo a passo a História recente, que permanece fresca na memória. Mencionarei somente algumas características da formação partidária atual, que ajudam a compreender o jogo político e seu significado na vida nacional.

Com as exceções de praxe, o papel que os partidos e o Congresso Nacional desempenham tem sido avaliado de modo superficial pela literatura especializada e pela imprensa. Isso para não falar das pesquisas de opinião, que invariavelmente situam ambas as instituições entre as de menor prestígio, quando não de menor serventia.

Nada mais equivocado, entretanto, do que subestimar o papel político do Congresso e dos partidos. Os chavões sobre estes oscilam. Ora os consideram incoerentes, sem ideologias, meras máquinas eleitorais. Ora confundem legendas com partidos e vêem nas votações do Congresso coerência partidária, quando na maior parte das vezes trata-se apenas de apoio ao governo ou oposição a ele. Pior ainda, muitas vezes, nos dois casos, os parlamentares agem por motivos que nada têm a ver com as ideologias proclamadas nos programas partidários.

Na verdade há um pouco de tudo isso em cada um dos partidos - coerência, apoio em troca de vantagens de todo o tipo, visões ideológicas -, dependendo das regiões e da força dos chefes políticos, bem como do momento, da formação dos dirigentes partidários e de suas trajetórias de vida.

Mesmo alguns acadêmicos têm contribuído para uma leitura incompleta sobre os partidos e sobre o Congresso. À exceção dos trabalhos de Bolívar Lamounier, de Maria do Carmo Campello de Souza e de poucos autores mais. Ver notadamente, de Lamounier, Da Independência a Lula: dois séculos de política brasileira, São Paulo, Augurium, 2005, e de Campello de Souza, Estado e partidos políticos no Brasil, São Paulo, Alfa-Omega, 1976. Ver também Simon Swartzman, Bases do autoritarismo brasileiro, Rio de Janeiro, Campus, 1982.

Na Europa, os partidos, na acepção moderna, nasceram como expressão da luta de classes, em sociedades rigidamente hierarquizadas, quando o Terceiro Estado, no caso da França, ou os burgueses da Revolução Gloriosa, no caso da Inglaterra, se opuseram à dominação estamental da aristocracia. À medida que o capitalismo industrial se desenvolveu, as diferenciações internas da societas civilis foram se tornando mais significativas, ao mesmo tempo em que "os de baixo" passaram a tomar consciência da diversidade de seus interesses e buscaram formas próprias de organização política. Na França, os partidos socialistas, da classe operária, foram as primeiras organizações que, de modo estrito, poderiam ser chamadas de "partidos de massa". Nestes, as máquinas partidárias se tornaram mais complexas e burocratizadas, para dar conta da participação ampliada de afiliados. As definições doutrinárias, por sua vez, continham crescentemente uma visão global da sociedade e do lugar que os trabalhadores deveriam ocupar nela. Estas definições passaram a ser critério para a adesão ao partido. De forma menos nítida, ocorreu algo semelhante também na Inglaterra, com o Labour Party. De fins do século XIX em diante, ser trabalhista ou conservador tinha simultaneamente um significado social e um significado político, um relacionado ao outro.

Ou seja, os partidos polarizavam interesses e visões "de classe". Os antigos clubes das classes dominantes viram-se desafiados pela presença de organizações políticas com grande número de aderentes. Elas, ademais, se estruturavam, criavam uma burocracia partidária e sustentavam uma visão alternativa sobre o que seria a "boa sociedade". Moviam-se ancoradas em valores que incitavam à reorganização da produção, do consumo e da distribuição dos bens para se tornarem mais acordes com os interesses de classe de seus afiliados e votantes. Esse modelo, por assim dizer "clássico" de organização partidária, embora haja influenciado decisivamente a noção corrente de partido, está longe de ter sido a única forma de organização política no mundo contemporâneo e nem sequer a mais difundida. Houve múltiplos modelos de vida partidária que não se orientaram por ideologias de classe. Os partidos de tipo nazista, fascista, franquista ou salazarista aspiraram a ser a expressão do sentimento de "todo o povo" e deram ênfase à vontade nacional, antes do que à das classes.

Essa tendência não se limitou aos desdobramentos autoritários europeus. Os partidos "de libertação nacional", tão presentes nas lutas anticolonialistas do Terceiro Mundo, após a independência tornaram-se muitas vezes partidos únicos, mantendo o apelo poderoso à "união nacional" contra o estrangeiro, contra os ricos ou contra o que fosse, diluindo e amalgamando na mesma organização política diversos setores de classe, clãs e etnias. Mesmo partidos originariamente classistas e nascidos em sistemas políticos mais pluralistas, como os comunistas da Europa Oriental, se transformaram em partidos únicos quando chegaram ao poder, embora continuassem a se proclamar "da classe operária" e até permitissem em certos casos, só para constar, a existência de outras pequenas agremiações.

Isso sem mencionar os partidos "religiosos", de grande influência em algumas regiões, como na Irlanda do Norte ou, se sairmos do mundo ocidental, em alguns países da África, do Oriente Médio e da Ásia, onde sobretudo o islamismo mas também o hinduísmo pesam decisivamente na aglutinação política.

No extremo oposto da tradição clássica européia, os partidos fundadores da democracia americana, embora defendendo valores e interesses distintos, nunca se autoproclamaram classistas, nem o recrutamento de seus quadros ou de seu corpo de votantes se deu, exclusiva ou mesmo majoritariamente, pelo critério de pertencimento ou de afinidade com os valores de uma classe social predominante. A clivagem inicial teve muito mais a ver com o espírito autonomista das províncias (depois estados) originárias das antigas colônias britânicas, em contraposição à visão federalista, que separou os jeffersonianos dos seguidores de Madison, por exemplo.

Portanto, não há razões maiores para desqualificar os partidos brasileiros em função de um modelo abstrato que restringe a capacidade de ação partidária coerente a organizações políticas cuja marca seja uma ideologia definida em função dos interesses das classes sociais. Até porque, com a fragmentação da sociedade contemporânea, mesmo nos paises europeus onde prevalecem as anteriores formas partidárias o que se vê é a dissolução crescente do modelo classe/partido/ideologia.

Primeiro, o óbvio: o que abalou o regime militar de 1964 foi o crescimento da sociedade urbana e de massas, acelerado pelo "milagre econômico" dos anos 1970, e a forma desigual como ele se deu. Na época, quando se dizia que o Brasil não estava estagnado e que havia a ampliação do proletariado urbano (ainda se chamava assim..,) e de uma classe média, não-burocrática, ligada à expansão da economia industrial e dos serviços, surgia logo a suspeita de que esse tipo de análise, no fundo, justificava o regime autoritário.

Parte da oposição "de esquerda" via por todo lado retrocesso não só político, mas econômico, e só uma saída: a revolucionária; se não com apelo às armas, pelo menos com força suficiente para lançar as bases do socialismo. Com este, teríamos de novo democracia e, quem sabe, bem-estar social. Coroando a antecipação do paraíso, teríamos um crescimento econômico autônomo a ser incentivado pelo Estado, mas não o Estado servidor das multinacionais e, sim, servidor do povo. Não foi esse, entretanto, o rumo principal da política brasileira. Houve quem acreditasse - como eu - que a desagregação do autoritarismo poderia dar-se por um movimento de pinças que juntaria os participantes do poder que se tornaram seus críticos (por vários motivos, desde interesses econômicos contrariados até a vontade de ter mais "voz") à oposição generalizada dos outsiders. Estes últimos eram os opositores contumazes tanto do autoritarismo quanto dos malefícios causados pela concentração de riquezas e de privilégios: movimentos populares formados ao redor de vários tipos de reivindicação, grupos religiosos orientados por ideologias popular-progressistas, tipo Teologia da Libertação, intelectuais críticos, o chamado sindicalismo "autêntico", classe média descontente etc.

Novos atores nas greves de São Bernardo 

Por outro lado, começavam a ganhar força reações que mesclavam a reivindicação operária à luta por liberdade. Essas insatisfações foram aumentando desde a greve dos metalúrgicos de Osasco e Contagem (MG), no final dos anos 1960, ainda permeadas pela ação de grupos ditos "subversivos", que proclamavam abertamente o objetivo de derrubar o regime.

Nas greves de 1978, 1979 e 1980 em São Bernardo, os metalúrgicos inovaram pela forma não-violenta que suas lutas assumiram e pela amplitude da mobilização alcançada, abrangendo setores não ligados aos partidos então clandestinos da esquerda tradicional. E não me refiro como forças tradicionais de esquerda apenas ao PCB, mas também maoísta ou fidelista. dos trabalhadores urbanos, independentemente de sua ligação com esse tipo de movimento organizado. E as manifestações de apoio de setores das classes médias, intelectuais, padres e jornalistas, sem contar estudantes, mostraram que os sindicalistas não estavam isolados aos vários grupos e movimentos de inspiração trotskista.

Pouco a pouco, consolidava-se a presença política Já se notava a presença desses "atores sociais" na segunda metade dos anos 1970, quando se começou a falar no papel da "sociedade civil" na política, utilizando-se uma linguagem não usual na época. A linguagem tradicional se referia unicamente a classes e setores de classe. O que deu força à crítica e à ação dos novos grupos foi a perda de vigor econômico do "milagre", precipitada pelos choques do petróleo dos anos 1970 e dramatizada pela crise da dívida externa, a partir da moratória mexicana de 1982. Mesmo antes disso, era clara a mudança no jogo político nacional. A repressão brutal dos governos anteriores ao do general Ernesto Geisel e a leniência inicial deste com a continuidade da repressão, alcançando agrupamentos políticos não ligados à luta armada - que teve como conseqüência o assassinato em dependências do DOI-Codi, em São Paulo, do jornalista Vladimir Herzog no final de 1975 e do operário Manuel Fiel Filho no início de 1976 -, haviam provocado forte reação entre os setores que se opunham em maior ou menor grau ao regime, e nas próprias elites governantes. Talvez a primeira manifestação de massa contra o regime opressor tenha sido o ato ecumênico realizado na Catedral paulistana da Sé, no dia 31 de outubro de 1975, em protesto contra o assassinato de Herzog.

Tudo isso só se tornou possível porque o regime, debilitado, começava a ser impotente para manter a dura censura aos meios de comunicação. O que explodiu como um foguete imantado na época dos grandes comícios em favor das eleições diretas, em 1984, contudo, já se prenunciava nas greves de São Bernardo: não há forma de ação política no mundo contemporâneo que dispense a mídia ou deixe de se apoiar nela.

Foi a junção desses fatores que deu os contornos da "nova política". Ela, ao contrário do que muitos desejavam, correu no mesmo leito da antiga política. É só ver as figuras que apoiaram, por exemplo, as greves de São Bernardo: desde partidários do regime Teotônio Vilela (AL) "consentida", do velho MDB, como Ulysses Guimarães, André Franco Montoro e, no caso específico, o prefeito de São Bernardo, Tito Costa. Seria de estranhar menos a presença constante dos jovens deputados Eduardo Suplicy, Fernando Morais e Aírton Soares e mesmo a minha, e de outros intelectuais engajados, cujo ativismo na vida política já era conseqüência dos novos tempos.

Depois dessas manifestações de protesto, o grande movimento que marcou a redefinição dos partidos foi a luta por eleições diretas, e, previamente, a fundação do PT. Contarei com certo detalhe alguns episódios, não tanto por amor à minúcia histórica, mas porque eles ajudam a explicar o atual sistema partidário. A rede oposicionista: do MDB a Lula.

No período anterior à formação do PT, quero registrar o que me recordo do estado de espírito dos principais líderes do "novo sindicalismo” sobre a política. Em meados dos anos 1970, mais precisamente em 1974, ainda havia muita resistência, mesmo nos setores não vinculados políticas revolucionárias, a aceitar o jogo eleitoral contido bipartidarismo imposto; Arena, apoiando o governo autoritário, e MDB, na oposição congressual. A oposição que se pretendia "consequente" vivia distante da vida institucional, não acreditava ser possível mudar algo por meio das eleições sob as regras do regime e, de alguma maneira, considerava os políticos institucionais "farinha do mesmo saco" que passaram a repudiá-lo por seus desmandos, como e Severo Gomes (SP), até políticos da oposição dita às organizações nos limites do A política mais "pura" dava-se no âmbito da sociedade civil, com seus movimentos reivindicatórios: a SBPC, as pastorais religiosas, as comunidades eclesiais de base, os sindicatos, a OAB, a ABI, as Comissões de Justiça e Paz e o que restava das organizações estudantis.

A esses setores juntou-se a "imprensa nanica", ou seja, pequenos periódicos de oposição, como Pasquim, Opinião e Movimento. Formava-se dessa maneira uma rede, mais do que alguma capacidade de opinião pública", uma controlado autoritariamente. Talvez o primeiro encontro entre essa rede e a política institucional se tenha dado nas eleições de 1974, quando Ulysses Guimarães lançou sua anticandidatura à Presidência da República em um pleito previamente definido pela vitória da Arena. O candidato desta, general Geisel, teria automaticamente a maioria dos votos do Colégio Eleitoral - instância que em tempos de eleição indireta sacramentava o nome previamente escolhido pelos comandos militares - composto pelos membros do Congresso Nacional somados a delegados indicados pelas assembleias legislativas.

Ulysses, acompanhado por seu braço direito, o deputado João Pacheco e Chaves, de tradicional liderança política paulista (ambos haviam pertencido ao velho Partido Social Democrático, o PSD, com raízes no varguismo e sustentáculo do conservadorismo do regime democrático pós-varguista), procurou o Cebrap. Haviam lido artigos que alguns de nós publicávamos no semanário Opinião, notadamente um texto que escrevi sobre o papel da oposição, no qual defendia a possibilidade de um alargamento democrático com a utilização dos canais institucionais disponíveis. Nossa surpresa foi grande. A de Ulysses também. Nós éramos cientistas sociais, não ativistas políticos, e receávamos a contaminação no contato com os "políticos". Ulysses pedia que colaborássemos na preparação do programa eleitoral do MDB, já que em 1974, além da escolha biônica do Presidente, também haveria eleições para o Senado, a Câmara dos Deputados e as assembleias legislativas. A colaboração consistia na preparação de um documento definindo as propostas partidárias a serem apresentadas ao eleitorado e, eventualmente, no treinamento dos candidatos majoritários para os debates pela TV, pois só os candidatos ao Senado podiam aparecer nesse tipo de programa do horário eleitoral.

O Cebrap funcionava em uma velha e cômoda casa na rua Bahia, em Higienópolis. As paredes do casarão testemunharam os acirrados debates no que nós chamávamos de "mesão", mesa ao redor da qual se sentou durante anos a fio boa parte dos intelectuais críticos, que muito tempo depois, em 2005, estavam espalhados entre o PSDB, o PT, o PMDB e os um partido de oposição. Essa e de influência rede foi ganhando na nascente "nova de espaço democrático num país sem partido. Colaborar ou não com setores do "regime", mesmo de oposição, no caso o MDB, era a questão. Alguns toparam: Paul Singer, Francisco de Oliveira, Francisco Weffort, Bolívar Lamounier, Carlos Estevam Martins, Maria Hermínia Tavares de Almeida, eu próprio, e talvez alguns outros cujos nomes me escapam à memória. Fomos os primeiros. Daí por diante, a cada eleição aumentava o número dos aderentes a uma postura mais participativa, visando mudar as instituições, por assim dizer, por dentro. O programa para a campanha do MDB de 1974 se tornaria a matriz dos programas futuros, e não só do MDB. Nele, falávamos de sindicatos, de salário e distribuição de renda, do direito de greve, das questões das mulheres, dos negros, dos índios, enfim, desenhávamos uma política "social-democrática" nas condições de então e do Brasil.

Num Brasil que já foi governado pelo PSDB e sucedido pelo PT, tudo isso perdeu sentido. Naquela época, não. Havia tensão entre os defensores de uma política "pura", longe do solo lamacento do Estado, fincada no sacrossanto terreno da sociedade civil, e os que aceitavam participar das lutas políticas em partidos que atuavam no marco da ordem vigente.

No máximo se aceitava militar de alguma maneira no PCB, como se fosse o único depositário das esperanças redentoras da humanidade, o velho Partidão, como era conhecido - ou em alguns de seus desdobramentos mais combativos. A herança da esquerda revolucionária, mais na versão do Leste Europeu, da China e de Cuba do que dos socialistas e comunistas dos tempos primevos, pairava como um fantasma nas mentes e corações de muitas pessoas de boa vontade, como até hoje continua pairando em alguns círculos.

Como desdobramento dessa mudança de postura por parte de setores anti-regime, em 1977, quando nos aproximávamos das eleições de 1978, novamente alguns dirigentes do MDB buscaram contato com os grupos da sociedade civil que se haviam mostrado mais propensos a uma ação conjunta. Dentro do MDB, atuavam, com significativa presença política, setores do PCB e de outras organizações de esquerda de menor porte.

Recordo-me bem de uma reunião na casa de José Gregori, mais tarde presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, quando se começou a falar na possibilidade de lançamento de uma candidatura ao Senado para agrupar as oposições à esquerda. A situação política, mesmo antes da Lei da Anistia, de 1979, havia permitido a volta de líderes que estiveram no exílio, notadamente, entre os de São Paulo, Almino Affonso, Plínio de Arruda Sampaio e José Serra. Pois bem, de todo o numeroso grupo reunido naquela casa um único sabia onde se localizava a Bierrenbach, advogado como Gregori, que precisou me indicar o local: no subsolo da sede da Câmara Municipal, no Viaduto Maria Paula, no centro de São Paulo. Para lá me dirigi, depois de resolvido que seria eu o candidato, para inscrever-me no partido.

Por que eu? Basicamente porque os candidatos naturais, os que, por assim dizer, tinham currículo e experiência eleitoral, ainda jaziam sob o tacão do AI-5 que lhes suspendera os direitos políticos. Eu, além de conhecido nos meios acadêmicos e nos círculos de oposição no âmbito da sociedade civil, havia sido alcançado pelo AI5, que me aposentara compulsoriamente da cátedra de Ciência Política da USP em 1969, mas não fora objeto de proibição expressa de me candidatar, pois nunca exercera mandato popular. A interpretação sobre me impuseram permitia recursos jurídicos, e acabei registrado como candidato ao Senado por uma sublegenda do MDB. Diversos artistas, intelectuais, estudantes, líderes operários e uns poucos setores do MDB sustentaram a candidatura. Entre os artistas, Chico Buarque, que uma manhã me telefonou cantarolando um refrão para o que seria o jingle de campanha. Ele escrevera uma letra que cabia, compasso a compasso, nos primeiros versos da conhecida canção Acorda Maria Bonita, de António dos Santos: "Acorda Maria Bonita/Acorda, vem fazer café/ Que o dia já está raiando/ E a polícia já está de pé.” A letra de Chico dizia: "A gente não quer mais cacique/ A gente não quer mais feitor/ A gente agora está no pique/ Fernando Henrique pra senador”.

Um dia recebi um recado do principal dirigente metalúrgico de São Bernardo, por intermédio de Francisco de Oliveira, manifestando o desejo de apoiar a candidatura. Eu conhecera Luiz Inácio Lula da Silva no Cebrap, em 1973, trazido pelo presidente do sindicato, Paulo Vidal, quando Francisco Weffort e Régis de Andrade, cientistas políticos, realizavam entrevistas sobre o movimento sindical. Não o vira desde essa ocasião e as grandes greves ainda não haviam ocorrido. Fui até São Bernardo e me espantei com o porte, a movimentação e a máquina do sindicato. Os militares haviam escorraçado as antigas lideranças, geralmente ligadas ao PCB e ao velho PTB extinto pelo regime militar, que eram influentes nos setores vinculados ao Estado: ferrovias, portos, usinas siderúrgicas e funcionalismo público. Durante os anos do "milagre", a onda industrializadora permitira o crescimento do operariado urbano e dera margem à presença de lideranças não ligadas às antigas forças políticas. Os governos autoritários não extinguiram as fontes de renda dos sindicatos. Apenas contavam com sua despolitização e, portanto acreditavam que sequer "pelegos" seriam os líderes, mas somente, como se diria hoje, "sindicalistas de resultados". Ledo engano. Alguns sindicatos começaram a nuclear dirigentes combativos, apoiados por eficientes advogados trabalhistas, e a mover ações judiciais em defesa dos direitos dos trabalhadores. Além disso, o sindicato oferecia assistência médica, dentária e jurídica e outros benefícios, e era um ponto de convivência. Os dirigentes dos partidos institucionais simplesmente desconheciam essa realidade. Encontrei Lula em uma pequena sala, cercado como Djalma Bom e José Cicote, como vereadores, deputados ou dirigentes partidários. Tivemos conversa direta. Lula disse que se dispunha a me apoiar, que poderia fazer pouca coisa, mas que eu iria contar com a ajuda do advogado do sindicato, Almir Pazzianotto, deputado estadual pelo MDB, que votaria em mim na convenção do partido (para ser candidato por uma sublegenda eu precisaria obter 20% dos votos dos delegados à convenção, e os candidatos tradicionais se opunham a me dar uma vaga).

A reunião foi simpática, mas um tanto chocante. Estávamos amontoados na salinha de Lula, fumavam muito, e as palavras, por exemplo, para pedir um copo de água ou para passar um cinzeiro eram quase ríspidas, por companheiros, muitos dos quais, viriam a se destacar, anos depois, na percepção de um professor universitário educado dentro de formalidades tradicionais. Perguntei a Lula por que resolvera me apoiar.

A resposta foi elucidativa:
- Porque você não faz como os outros que vivem dando lições aos trabalhadores, dizendo o que eles devem fazer, nem se diz senador dos trabalhadores. Tratava-se de indireta pouco sutil. Montoro, com intensa atividade parlamentar em favor dos trabalhadores - propôs e viu aprovado, entre muitas medidas, o salário-família - e iniciativas como a distribuição de cartilhas em defesa dos direitos trabalhistas, era a quem Lula se referia. O jovem sindicalista já aspirava, talvez sem ter plena consciência, a uma posição "autônoma" e ao direito de ser o líder dos trabalhadores.

Não que Lula tivesse uma visão politizada. Diferentes episódios reforçam minha interpretação de como "o novo" nascia, sem o saber, muito misturado com práticas e visões tradicionais. Menciono apenas duas passagens para esclarecer esse ponto. A primeira se deu em 1979, quando Almino Affonso, Plínio de Arruda Sampaio, José Serra e eu, entre outros, estávamos organizando com Lula o Encontro de São Bernardo, destinado ajuntar setores "autênticos"-mais aguerridos - do MDB, militantes de esquerda de várias organizações, sindicalistas, setores da Igreja e intelectuais para decidir passos conjuntos, fosse no sentido de fortalecer o MDB fosse, eventualmente, no de tentar fundar um novo partido.

Almino Affonso e eu fomos uma manhã à casa de Lula, modesta casa de vila suburbana. Lá o encontramos com o sindicalista Enilson Simões, o "Alemão" uma espécie de seu secretário - pertencia ao Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), agrupamento político àquela altura tido como ligado a Cuba, o que Lula parecia ignorar. Queríamos convencer nossa principal contraparte sindicalista da conveniência de levar para o encontro, que antecipava a reformulação partidária, dirigentes da "oposição sindical", alguns muito próximos à Igreja Católica, como António Flores, outros independentes, ativistas de organizações esquerdistas. Lula se opunha, pois achava que esses "politiqueiros", como dizia, nada tinham a ver com os verdadeiros sindicalistas, ou seja, com os que atuavam dentro dos sindicatos oficiais existentes. Finalmente, acabaram todos convidados. Segundo episódio, este útil para mostrar que a evolução política alcançou muita gente. Tempos depois, houve um encontro de Lula com Ulysses Guimarães no apartamento onde eu então residia, à alameda Joaquim Eugênio de Lima, em São Paulo. Airton Soares convencera Lula a comparecer. Tanto o deputado como eu imaginávamos possível levá-lo para o MDB. No dia aprazado eu deixei minha chácara, em Ibiúna, e voltei a São Paulo de carro. Chovia muito, um pneu furou e, dada minha pouca habilidade manual, não consegui trocá-lo. Pedi carona e cheguei quando os convidados já se encontravam em minha casa. Lula ouviu, falou bastante, manifestou-se simpático às nossas teses gerais. Não mencionamos nada de concreto. Depois de sua partida discutimos a hipótese de formar um departamento sindical no MDB. Ulysses Guimarães, àquela altura líder indiscutível do partido e mesmo das oposições, não se sensibilizou com a possibilidade. Estávamos ainda em uma época em que, para Ulysses, partido era uma coisa, sindicato outra muito diferente e não deveria haver mistura de estações...

Apenas para ressaltar a visão "despolitizada", quer dizer, distante não somente dos partidos, mas de práticas institucionais, relato outro episódio. No desenrolar da greve de 1979 em São Bernardo houve um momento no qual coube recurso ao Tribunal Regional reclamados pelos advogando a causa do sindicato, me convidou para assistir com ele ao julgamento, pois acreditava que haveria uma decisão histórica, com a vitória dos trabalhadores, pela primeira vez no regime militar. Fornos ao julgamento e houve a vitória: o TRT acolheu algumas reivindicações sem declarar a greve, em princípio, ilegal. Do TRT, que ficava nos arredores da avenida Ipiranga, no centro de São Paulo, seguimos para São Bernardo estádio de futebol assembléia. Entrando pelos fundos, atravessamos a massa de operários até chegar do Trabalho (TRT) de São Paulo para julgar os direitos trabalhadores e a legitimidade da greve. Almir Pazzíanotto, no carro de Almir para comunicar o sucesso. Chegamos ao de Vila Euclides, onde os trabalhadores se reuniam em ao pequeno palanque onde estava Lula. Comunicamos o resultado e Lula se dirigiu aos companheiros para encaminhar o fim da greve. A massa protestou, pois continuava altamente mobilizada e desejava alcançar ainda mais resultados do que os acordados pelo TRT, sem perceber que o simples fato de uma decisão considerar a greve legal era histórica. Lula, habilmente, para não perder a confiança dos liderados, propôs a continuação da greve, logo aprovada entusiasticamente.

Terminada a assembléia, tomamos o mesmo carro de volta com Lula e outro dirigente sindical. Lula, que acabara de propor a continuação do movimento, nos disse:
- Precisamos terminar essa greve. Ao que Almir perguntou:
- Mas, como? Vocês agora saíram da lei.
Com efeito, a partir daquele momento a continuidade da greve representava um desafio à decisão do TRT. Na noite seguinte, eu jantava com Lula e com o jornalista e deputado estadual Fernando Morais em um boteco próximo ao sindicato quando o rádio informou que Lula tivera os direitos sindicais suspensos pelo ministro do Trabalho. Levei-o em meu carro ao sindicato, e ele me disse:
- Pois é, não dá mesmo para fazer no Brasil um sindicalismo como eles têm lá na Argentina.
Conto esses episódios para mostrar, primeiro, que o distanciamento "dos políticos" caracterizava quase toda a oposição ao regime, com exceção dos que militavam no MDB e no PCB. Buscava-se uma ação política "fora da política", longe do modo como esta se dava nos partidos e no Parlamento. Segundo, que nenhum de nós tinha muita clareza sobre a melhor forma partidária ou sobre qual seria a relação correta entre política e sociedade. Lula, em discursos publicados, disse que ele só se deu conta da necessidade de ultrapassar os muros das fábricas e dos sindicatos após as grandes greves, a mais marcante das quais foi possivelmente a de 1979. Um testemunho sobre os primórdios do PT.

A formação do PT, posterior aos fatos que narrei, deu-se quando havia competição pela liderança do movimento sindical entre Lula e Benedito Marcílio, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André (SP) que se elegeu deputado federal. Marcílio mantinha relações com a Convergência Socialista, uma facção ligada ao movimento trotskista internacional. Aproveitou um congresso dos metalúrgicos realizado em Lins, a 430 quilômetros de São Paulo, em janeiro de 1979, para lançar a idéia de um partido dos trabalhadores. Lula só encampou a proposta posteriormente, embora alguns sindicalistas de São Bernardo tenham colaborado com os autores do manifesto em prol de tal partido. Anteriormente a isso, Lula comparecera, e eu também, a um encontro de dirigentes sindicais, sobretudo petroleiros, em Camaçari, na Bahia, em 1978, com, entre outros, Jacó Bittar, da região de Campinas, Henos Amorina, de Osasco, Paulo Skromov, do Sindicato dos Coureiros de São Paulo, Hugo Peres, dos eletricitários de São Paulo, José Cicote, dos metalúrgicos de São Bernardo, e Arnaldo Gonçalves, dos metalúrgicos da Baixada Santista (SP), ligado ao PCB. Na reunião mencionou-se a possibilidade da formação de um partido de trabalhadores.

A ideia de um novo partido estava, portanto, no ar, alimentada pela expectativa do fim do bipartidarismo. Entretanto, transcorreria um ano, com muita discussão e muitos episódios, até que viesse a alteração efetiva na legislação para permitir a formação de partidos, em dezembro de 1979, antes de o PT ser lançado formalmente, o que ocorreu em reunião no dia 10 de fevereiro de 1980 no tradicional Colégio Sion, na avenida Higienópolis, em São Paulo. A partir daí, o tom do partido passou a ser dado pela presença não só de sindicalistas "puros" como de dirigentes sindicais vindos e principalmente de militantes outros setores que não o metalúrgico, católicos, oriundos das experiências das comunidades eclesiais de base, além de intelectuais independentes e quadros de várias organizações de esquerda, alguns ligados a grupos que no passado apoiaram a luta armada. E o tom do PT, nos tempos iniciais, era de distanciamento da política institucional.

O debate que marcou a separação de muitos de nós, participantes das discussões prévias sobre o novo partido, da formação do PT teve relação direta com esse distanciamento. Eu não acreditava no caminho de um partido que imitasse a tradição da esquerda europeia. Preferia, como escrevi na época, um partido dos assalariados em vez de um partido dos trabalhadores, com a conotação de partido proletário. Tampouco acreditava em política sem alianças. Defendia, portanto, o pluripartidarismo e o policlassismo. No movimento sindical houve discrepância semelhante: os sindicatos sob influência do PCB e do MDB formaram a "unidade sindical", de inspiração partidária, e os demais se agruparam no "sindicalismo autêntico" que se pretendia desligado dos partidos. Posteriormente ocorreram novas cisões na organização das centrais, dando lugar à Central Única dos Trabalhadores (CUT), à Central Geral dos Trabalhadores (CGT), à Força Sindical e outras menores. Embora não houvesse relação direta entre os sindicatos e os partidos, o espírito dos debates e as dúvidas reinantes guardavam relação com a discussão sobre a natureza dos partidos, a relação entre as classes, uma visão de revolução à antiga ou não, e a autonomia do movimento sindical diante das agremiações partidárias. Minha iniciação na política partidária. Como eu decidira permanecer no MDB, a partir de 1979 transformado em PMDB, dediquei-me, com Mário Covas, Almino Affonso e Alberto Goldman, a reorganizar o partido no estado de São Paulo. Não só cumprimos essa tarefa como fomos adaptando o programa partidário na direção das idéias apresentadas pelo grupo do Cebrap em 1974. Tornei-me, após as eleições de 1978, vice-presidente do PMDB. Quando Covas se afastou da direção em 1982 para se candidatar a deputado federal, na campanha que levou Montoro ao governo de São Paulo, assumi a presidência da seção paulista, a principal do partido no país. Nessa posição, participei da mobilização pelas eleições diretas.

A militância no MDB e no PMDB me ensinou muito a respeito do funcionamento e do jogo político dos partidos. Substituindo Montoro, entrei no Senado em 1983, ainda na vigência do regime autoritário, mas em seus momentos de agonia. Ainda assim, o Congresso espelhava impotência: corredores vazios, o monopólio absoluto da pauta exercido pela maioria, e esta submetida ao controle estrito do Planalto. Mesmo as relações pessoais entre governistas e oposicionistas eram escassas e submetidas ao "patrulhamento" Recordo-me de que o senador Virgílio Távora (CE), vice-líder do governo e seu porta-voz para questões econômicas, um dia me convidou para almoçar. Nossas famílias tinham relações históricas desde as revoluções dos tenentes de 1922 e 1924, das quais participaram tanto membros da família Távora como meu avô, meu pai e vários outros parentes. Conversei com Ulysses sobre o convite.

Ulysses me aconselhou cautela. Decidi aceitá-lo, mas, para evitar intrigas, marquei o almoço em lugar visível e terreno costumeiro da oposição em Brasília: o restaurante Tarantella (depois Piantella). Na mesma época, recebi convite para um jantar no Itamaraty em homenagem ao Presidente do México, Miguel de Ia Madrid, que visitava o Brasil. Era normal, mesmo durante o regime militar, que poucos representantes da oposição estivessem presentes a esse tipo de encontros formais. Quando ia tomar lugar à mesa, um ajudante-de-ordens do Presidente Figueiredo se aproximou dizendo que ele queria me conhecer. Em solenidades como aquela, antes de entrar no salão principal do magnífico edifício do Itamaraty, os presidentes permanecem em um amplo hall, o Salão Portinari, como se chama, devido aos grandes painéis do pintor que exibe. Para lá me dirigi e, em pé, troquei frases protocolares com o Presidente. Conversamos durante dez minutos, no máximo. Figueiredo foi simpático e gentil. Ele perguntou sobre meu pai, àquela altura já falecido, e comentamos a relação que o uniu a seu pai, Euclydes Figueiredo, ambos militares e envolvidos nas revoluções das décadas de 1920 e 1930, ambos tendo vivido situações de exílio - meu pai, confinado na Amazônia; o general Euclydes, asilado na Argentina -, em épocas diferentes.

Contei ao Presidente que tinha morado em uma rua do bairro paulistano do Morumbi que levava o nome de seu pai. Como a Prefeitura não havia colocado a placa indicativa, eu próprio mandara fazer uma e a afixara. Aproveitei para, sutilmente, cutucá-lo sobre as eleições diretas para a Presidência - o país fervia com a questão, e não havia declaração pública do Presidente contra ou a favor. Figueiredo procurou não ser taxativo, mas me deixou a impressão de que não se oporia a uma eventual decisão do Congresso nessa direção. No final, abraçou-me cortesmente. Foi a única vez em que falei pessoalmente com o general Figueiredo. Nos dias seguintes, notinhas nos jornais e até uma crônica na revista Manchete sobre tão inusitado encontro. Que classe de conchavos teríamos feito?... Depois de derrotado nas eleições de 1974, o regime se prevenira para não perder o controle do processo político. O "pacote de abril" de 1977 modificou a Constituição para criar os senadores biônicos (um em cada três senadores nos estados não era eleito, mas escolhido pelas assembleias legislativas), aumentar desproporcionalmente aos demais a representação dos pequenos estados na Câmara e adiar, de 1978 para 1982, as eleições diretas para governador.

No intervalo de tempo entre esses fatos e minha ida para o Senado, entretanto, muita coisa mudara, principalmente, tinha havido um afrouxamento da censura aos meios de comunicação. A Emenda Constitucional n° 11, de 13/10/1978, pôs fim ao AI-5 e ao bipartidarismo. A Lei de Anistia, em 1979, reabilitou para a política lideranças cassadas. A nova legislação partidária, no mesmo ano, permitiu a formação dos novos partidos; além do Partido Democrático Social (PDS), partido que apoiava o governo e substituíra a Arena, do PT e do PMDB, criou-se o Partido Popular (o PP, liderado por Tancredo Neves, que acabaria se fundindo ao PMDB em 1982), e Leonel Brizola organizou o PDT após perder a legenda do velho PTB de Getúlio para a deputada Ivete Vargas, de São Paulo, por ingerência do chefe da Casa Civil de Figueiredo e principal estrategista do governo, o general Golbery do Couto e Silva.

Tudo isso propiciou um novo clima político. Talvez a primeira rachadura a abalar o bloco governista no Congresso haja sido a rejeição de uma lei salarial, na verdade um decreto-lei de 1983 - parte integrante do acordo com o FMI -, que a oposição considerava arrocho salarial. Acabou sendo derrubado no dia 6 de junho. Derrotados, os parlamentares governistas levantaram uma série de dúvidas sobre o processo de votação e tentaram impugná-lo. O presidente do Congresso, senador Nilo Coelho (PDS-PE), tinha que tomar uma decisão sobre se a votação fora válida ou não. O governo pressionava intensamente, porque a lei salarial seria um dos pilares da política econômica de então. Houve uma tensão imensa madrugada adentro, com a oposição insistindo na validação - principalmente o senador Saturnino Braga (PMDB-RJ) e eu, que tínhamos respeito e estima pelo senador Nilo. Com coragem, Nilo validou a votação, proclamou o resultado, e vencemos. Mesmo assim, as pressões e críticas do governo contra Nilo continuaram, só cessando com a promulgação da decisão, publicada no Diário do Congresso Nacional a 13 de agosto. O episódio, a meu ver, deixou marcas no senador, submetido a um brutal estresse. Em novembro, Nilo Coelho sofreu um enfarte e faleceu.

A convergência da oposição institucional com a opinião de pessoas ligadas ao governo, mas que se opunham às medidas mais arbitrárias, somada ao vento forte das ruas e ao barulho da mídia - na época ainda um sussurro -, precipitavam a crise do regime. O quadro internacional igualmente mudara. Além da crise da dívida externa, a onda democratizadora desencadeada na Europa, especialmente na Península Ibérica, com o fim das ditaduras de corte fascista em Portugal, em 1974, e na Espanha, em 1975, alcançava a América Latina. A derrota contra o Reino Unido na Guerra das Malvinas, em 1982, acelerou a desagregação do autoritarismo na Argentina. No Brasil seria uma questão de tempo.

Restava saber como se daria o desenlace. A partir de 1982, com a vitória do PMDB nas eleições diretas para governador em dez estados, notadamente em São Paulo, com Montoro, e em Minas Gerais, com Tancredo Neves, sem esquecer de Leonel Brizola (PDT) no Rio de Janeiro, dava a impressão de que um sopro seria capaz de fazer o regime desabar. Este sopro viria a ser a campanha pelas eleições diretas para a Presidência, as "Diretas Já".

A derrota das Diretas Já e a opção por Tancredo 

A arrancada da campanha das Diretas Já foi fruto do descortino e da persistência de um homem, André Franco Montoro. Às vésperas do memorável comício da Praça da Sé, em 25 de janeiro de 1984, todos nós, da Executiva do PMDB paulista, achávamos que o governador Montoro arriscara muito convocando o povo às ruas em pleno regime autoritário para clamar por eleições. Informei o governador das resistências no partido. Ele procurou os outros partidos. O mesmo desânimo, apesar de já ter havido um comício em Curitiba com razoável apoio popular. O PT, como sempre, queria marchar só. Compareci ao comício em favor das eleições diretas convocado pelos petistas em frente ao Estádio do Pacaembu, em São Paulo, em novembro de 1983. Nenhum outro líder não-petista apareceu; temiam as vaias dos "companheiros". Só não me vaiaram porque coube a mim o dever de transmitir a triste notícia da morte do senador Teotônio Vilela (PMDB-AL), que àquela altura, pregando em favor da anistia e das liberdades públicas por todo o Brasil, a despeito do câncer incurável que o consumia, tornara-se uma espécie de unanimidade nacional.

Novamente, a clivagem que se manifestara nas discussões sobre a formação dos novos partidos marcou o início da campanha das Diretas. O PT tentou levar adiante sozinho a mobilização popular. Passaram-se vinte anos para que o partido aprendesse a construir alianças para alcançar os objetivos desejados, embora nem sempre faça as melhores composições, como se pôde verificar no governo Lula. Na época das Diretas Já, somente quando a força da massa mostrou nas ruas que a questão não era a de saber "quem" convocava as manifestações, mas em nome do que (da democracia) e contra quem (o regime autoritário), tornou-se possível a junção das forças democráticas.

Também me recordo de uma reunião, naquele mesmo janeiro de 1984, na chácara de Ibiúna, com vários dirigentes do PMDB, inclusive Ulysses Guimarães. Lá, à noite, vimos pela TV o general Figueiredo dizendo que Diretas Já era "subversão". Nossas dúvidas cresceram; diante das ameaças será que o povo irá mesmo às ruas? Pois bem, foi Montoro quem desafiou os poderosos. Ele tinha o sentimento das ruas. Soube antes o que nós vimos depois: não éramos nós àquela altura que estávamos sozinhos, mas sim o governo, o regime. A tal ponto que as TVs, apesar da pressão que sofriam do governo e da virtual autocensura que praticavam, passaram a registrar a sagrada ira pela democracia, porque era impossível não fazê-lo. Mesmo a Rede Globo, que procurou diminuir a importância do fenômeno que tomava conta do país, acabou tendo que se render à opinião pública.

Nunca me esquecerei do dia do grande comício da Praça da Sé, no coração de São Paulo. Participava, com Montoro, de solenidade comemorativa do aniversário da USP quando José Gregori me chamou ao telefone com urgência. Gregori, deputado estadual pelo PMDB, estava na Sé nos esperando e, para surpresa de todos, era de tal porte a multidão que o som dos alto-falantes não chegava aos mais distantes do palanque. Nem mesmo o entusiasmo de Osmar Santos, o locutor das Diretas Já, acalmaria a massa, que esperava as palavras de ordem dos líderes políticos. Empenhamo-nos a fundo na campanha. No final, embora tivéssemos obtido a maioria dos votos da Câmara na madrugada de 26 de abril de 1984 - 298, contra 65 e 113 ausências -, não conseguimos atingir 320 votos, a maioria qualificada necessária na época para alterar a Constituição. Como líder no Senado, pronunciei o discurso a favor da emenda pelas Diretas, apresentada pelo deputado Dante de Oliveira (PMDB-MT). A defesa do ponto de vista contrário, dificílima, coube ao líder do governo, deputado Nelson Marchesan (PDS-RS), em um discurso corajoso, vibrante.

Mas, claro, não foi por isso que perdemos: nessas horas ninguém vota em função de belas palavras. Os parlamentares entravam no plenário com a "cabeça feita". Derrubada, a emenda Dante de Oliveira na Câmara terminou sendo arquivada, sem ser apreciada pelos senadores presentes à reunião do Congresso. Não faltou quem maldosamente dissesse que alguns, como Tancredo Neves e eu próprio, preferíamos perder. Políticos do PT - a começar pelo próprio Lula-anteviam a possibilidade de a oposição vencer no Colégio Eleitoral e achavam que um grupo, com Tancredo à frente, vinha arquitetando a própria vitória desde a campanha das Diretas Já. Não se julgavam fatos, e sim supostas intenções. Era a "política da infâmia", de acusar-nos de "traições", sendo eles os "puros". Da minha parte asseguro: é falso. O que eu não quis, após a derrota, foi transformá-la em cataclismo ainda maior, com a vitória no Colégio Eleitoral do ex-governador biônico de São Paulo, Paulo Maluf, ou do coronel Mário Andreazza, ministro dos Transportes e candidato do Presidente Figueiredo, que disputavam a indicação do PDS, vencida por Maluf. Este já àquela altura simbolizava tudo o que não desejávamos, desde a conivência, e mesmo o protagonismo, com práticas inaceitáveis que mesclavam o público com o privado, até a arrogância cúmplice com o regime autoritário.

Nos dias seguintes à decisão, derrotados que fomos no Congresso, outra vez as águas oposicionistas se separaram. Propus em discurso no Senado o lema "Mudança já", em vez de "Diretas Já", defendendo que participássemos do Colégio Eleitoral, para aproveitar o clima de insatisfação crescente e derrotar o candidato do governo. Ganhamos paulatinamente o apoio da maioria do partido, principalmente depois que Montoro, à Presidência (títulos articulado em Brasília, São Paulo e Minas - a candidatura de Tancredo Neves. Ulysses Guimarães resistia a essa manobra (para não falar no PT, que a "denunciara"), apoiado dentro do PMDB por um grupo purista, integrado entre outros por Flávio deputado federal Churrascaria do Lago, presentes Ulysses, Pacheco e Chaves, Pedro Simon e eu (talvez outros mais), defendi nossa ida ao Colégio Eleitoral apoiando um candidato de oposição. Disse Ulysses: - A responsabilidade é de quem for. Eu não irei, abrindo mão de qualquer pretensão de ser candidato para isso possuía), subscreveu algo que vinha sendo Bierrenbach, a essa altura deputado federal, e pelo também Pimenta da Veiga (MG). Durante um jantar em Brasília, eu retruquei que dos ali presentes eu pagara o preço mais alto pela ditadura: vivi no exílio, perdi a cátedra, tinha ido parar no DOI-Codi. Também por isso, queria logo mudar as condições políticas, com eleições diretas ou indiretas.

A articulação pró-Tancredo, enquanto isso, seguia firme, tendo como principais protagonistas o deputado Fernando Lyra (PMDB-PE), o senador Affonso Camargo (PMDB-PR), oriundo do ex-PP de Tancredo e muito próximo ao governador mineiro, vários políticos de Minas e o pessoal de São Paulo ligado a Montoro. O governador de Minas, porém, mantinha-se discreto, quieto. Lembro-me de um jantar com ele e Affonso Camargo no apartamento de Fernando Lyra em Brasília. À mesa, discutiu-se a conveniência de sua candidatura, pela óbvia circunstância de ser o nome mais capaz de atrair apoios no Colégio Eleitoral. Matreiro, Tancredo relutou, dizendo:
- Eu, de jeito nenhum. Não posso deixar de servir a Minas. À saída, me pegou pelo braço e disse:
- Vá se preparando, é a sua vez.

Percebi de imediato que seria ele o homem, pois, dentre tantos nomes de peso no PMDB, eu, senador verde de primeiro mandato, e ainda mais tendo chegado à cadeira na condição de suplente, não poderia de forma alguma ser candidato. Apesar de sua relutância em ir ao Colégio Eleitoral, e, já depois de ter concordado com a ideia, Ulysses não somente foi, como comandou a vitória de Tancredo a despeito da legítima ambição que ele próprio alimentava de ser o candidato das oposições à Presidência pelo voto direto. Jatobá frondoso, Ulysses sabia resistir aos ventos. Mas sabia, também, que alguns galhos se perdem. Comportou-se de modo admirável. Roberto Gusmão, chefe da Casa Civil do governo Montoro, dera uma entrevista à revista Veja um mês após a derrota da emenda das Diretas dizendo que "São Paulo" (isto é, Montoro) apoiava a candidatura de Tancredo. Ulysses, como fazia habitualmente, foi me ver na sede do PMDB paulista, na rua Pio XII, no bairro da Bela Vista. Reproduzo de memória a conversa que tivemos, de pé, olhando os jardins pela janela, na sala de minha secretária, Lola Berlinck: "Páginas amarelas", edição de 24/5/1984.

- Que história é essa do Gusmão? É o Montoro? - perguntou-me com seu jeito de carregar a paroxítona no nome do governador.
Respondi:
- Sim, Dr. Ulysses [era como todos o chamavam].
E ele:
- E você, o que pensa?
Dei uma das respostas mais sofridas da minha vida:
- O senhor sabe como eu o estimo, Dr. Ulysses. Mas, para ganhar no Colégio Eleitoral, só o Tancredo, de quem não sou tão próximo. Ele conta com mais apoio. Ele perguntou:
- No meu lugar, o que você faria?
- Iria a Minas, para apoiar Tancredo, e chefiaria a campanha dele.
Ulysses me olhou com a mirada de jacaré que sabia ter, gélido, polido e firme:
- É, mas quero ouvir isso do Montoro.
E assim se fez. Jantamos no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista, o governador Montoro, Ulysses, Gusmão e eu. Conversa de "cerca-lourenço", até que Ulysses nos intimou:
- Quero saber a opinião de cada um de vocês sobre o Colégio Eleitoral. Demos, novamente constrangidos, nossas opiniões. Grande Ulysses. Voou para Belo Horizonte, selando seu apoio ao governador de Minas num jantar no Palácio das Mangabeiras, a 20 de junho de 1984, chefiou a campanha, ajudou a definir o Ministério de Tancredo. E coube ao Vice-Presidente José Sarney, efetivado no cargo, haver-se com ele depois da trágica morte de Tancredo, a 21 de abril de 1985. O PT julgou um erro disputar no Colégio Eleitoral, pois teríamos poucas chances de vitória. Considerou, sobretudo, que era uma manobra para coonestar o regime. Não faltaram acusações, como disse, de que durante a campanha das Diretas o que alguns de nós queríamos mesmo eram eleições pelo Colégio Eleitoral... Sem o apoio do PT - exceto pelos deputados Airton Soares (SP), Bete Mendes (SP) e José Eudes (RJ), que em decorrência foram expulsos do partido -, Tancredo Neves ganhou por 480 votos a 180 na histórica eleição de 15 de janeiro de 1985 e, depois de sua morte, José Sarney se tornou Presidente da República.

O pacto com os demônios beatificados 

Outra vez, a circunstância incrível de termos elegido como Vice-Presidente um político "do regime", que fora presidente do partido sucessor da Arena, o PDS, e que se tornou depois Presidente da República, mostra a ambiguidade do jogo político e abre pistas para entender como ele se dá no Brasil. Aliás, não só aqui: a Espanha é outro exemplo de transição para a democracia na qual os "puros" ou influíram menos do que gostariam ou tiveram que pactuar com os anjos decaídos, ou melhor, com os demonios beatificados.

Na verdade, além das razões políticas que levaram Tancredo a preferi-lo, Sarney se tornou Vice-Presidente graças a uma tecnicalidade. Aqui, cabe recordar que a eleição de Tancredo só foi possível diante da inconformidade de importantes setores do PDS com o crescimento - graças a práticas de aliciamento que condenavam - da candidatura Maluf dentro do partido. Esse grupo, tendo à frente os senadores Marco Maciel (PDSPE) e Jorge Bornhausen (PDS-SC) e o Vice-Presidente de Figueiredo, Aureliano Chaves (PDS-MG), afastou-se do partido oficial, agrupou-se na Frente Liberal (que não tardaria a se tornar o PFL) e, em coligação com o PMDB, formou a Aliança Democrática que derrotaria Maluf. Aureliano chegara a aspirar à Presidência, mas desistira de disputar. Sarney, que se integraria aos dissidentes, havia sido eleito senador pelo Maranhão pela legenda da Arena sete anos antes, em 1978. Outro candidato, que talvez gozasse da preferência do PMDB, Marco Maciel, se elegera senador por Pernambuco já pelo PDS, uma reformatação da Arena.

Segundo as leis partidárias de então, parlamentares eleitos pelos vários partidos criados após a Emenda Constitucional n° 11 perderiam o mandato se concorressem à Presidência trocando de legenda. Essa regra, descobriu-se logo, não alcançava Sarney, que poderia filiar-se sem problemas ao PMDB e disputar pelo partido.

Fosse Sarney ou fosse Marco Maciel, ambos vinham do "antigo regime" e teriam de ser absorvidos pelos oposicionistas "históricos" e por outros nem tanto, mas que no decorrer do processo político se juntaram no PMDB. A verdade é que tanto Sarney como Maciel, bem como Aureliano ou Bornhausen, foram fundamentais para ampliar a cisão dentro do sistema autoritário. Aos poucos, constituíram uma oposição interna no PDS e se opuseram ao continuísmo do regime, que seria obtido com decisão palaciana predefinindo o futuro Presidente, graças ao controle do PDS, com Maluf ou Andreazza. Assim como ocorrera, bem antes, com Severo Gomes e Teotônio Vilela, voltaram-se contra o regime autoritário e ajudaram a encerrar seu ciclo. Não tive papel relevante nas articulações entre o PMDB e a dissidência do PDS. Do lado do PMDB, elas estiveram a cargo de Ulysses, Tancredo, Affonso Camargo e Pedro Simon, entre outros. Marco Maciel e Bornhausen, aos quais se juntaria depois Aureliano, falavam pela dissidência. Pude participar de alguns episódios das tratativas, como conversas na casa de Bornhausen, com Simon, facilitadas pela circunstância de que os três, além de Maciel, morávamos no mesmo edifício da SQS 309 de Brasília.

Meu principal papel acabaria sendo involuntário e casual, e teve a ver com a divulgação precoce do rompimento de Sarney com o PDS. O estreito contato que, juntamente com Simon, mantinha com nossos vizinhos de apartamento Maciel e Bornhausen na época em que ambos se preparavam, junto com outros companheiros, para romper com Figueiredo me permitiu saber que Sarney estava se aproximando do grupo, que àquela altura já incluía Aureliano. Sem me dar conta da inconfidência, a bordo de um avião entre Brasília e Rio, a caminho de Paris, onde iria proferir na Sorbonne a conferência "Marc Bloch", a convite da École dês Hautes Études en Sciences Sociales, me encontrei com o jornalista Ricardo Noblat, do Jornal do Brasil, e adiantei a ele os rumores. No dia seguinte tudo saiu estampado no jornal, precipitando os acontecimentos.

Foram dias tensos, aqueles, que não haja dúvida a respeito. Temia-se, por exemplo, uma reação militar a um candidato oposicionista com chances. Pode-se medir a temperatura da preocupação com as Forças Armadas pelo fato de que chegou a haver conversas sobre para onde iria Tancredo na eventualidade de um pronunciamento militar. Instigado por Roberto Gusmão, um discreto articulador desse delicado assunto foi o banqueiro e ex-prefeito de São Paulo Olavo Setúbal, ex-companheiro de Tancredo no extinto PP. Decidiu-se que o destino de Tancredo seria alguma cidade do Sul. O general Leônidas Pires Gonçalves, comandante do então denominado III Exército, com quartel-general em Porto Alegre e jurisdição sobre Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, era muito próximo ao governador paranaense, José Richa (PMDB), de quem se tornou amigo após exercer, anos antes, um comando em Curitiba. Leônidas se opunha a qualquer ruptura da normalidade e seria posteriormente escolhido por Tancredo para ser ministro do Exército, cargo que exerceu durante toda a Presidência de Sarney. A propósito de preocupações militares, vale narrar um episódio.

Depois de eleito, um dia Tancredo, demonstrando alguma inquietação, visitou-me em meu apartamento em Brasília. A essa altura, eu, que não pertencia originalmente a seu círculo íntimo, tornara-me muito próximo do Presidente eleito. Após sentar-se no sofá, perguntou:
- O que você andou fazendo para os militares acharem que você e o Brizola são os maiores problemas? Precisamos dar um jeito nisso. Eles acham que vocês dois são um perigo.

De minha parte, o problema todo era que, na mesma entrevista à Playboy em 1984 na qual surgira a questão da maconha, mencionada anteriormente, eu abordara a necessidade de se debater novos caminhos para as funções constitucionais das Forças Armadas. Eu não tinha em mente uma plataforma específica, ou algo assim. Os militares, porém, sempre se mostraram muito sensíveis em relação a essa questão, tanto que, mais tarde, na Constituinte, o debate a respeito seria tenso e difícil. Acredito, e disse a Tancredo naquele dia, que as Forças Armadas pudessem ver em mina alguma intenção de vingança ou revanchismo, o que não era próprio de meu espírito. Quem ajudou a desfazer o mal-estar foi Sarney, bem relacionado entre os militares. Ele teceu a boa intriga de que eu não preparava armadilha alguma contra as Forças Armadas.

O jogo político não se desenvolve contando aritmeticamente os "contra", como se o fossem para sempre, e os "a favor", sendo estes os bons e maus os outros. Pelo contrário: dialeticamente, trata-se de transformar "maus" em "bons". A política implica um processo de convencimento, por motivos e com objetivos variáveis, que, olhados de forma individual, podem ser moralmente aceitáveis ou discutíveis, mas cujo significado histórico será julgado por suas conseqüências. Este não é um tema banal. É em função dele que se desdobra, como vimos, a discussão weberiana sobre a ética da responsabilidade. Conforme ele Maquiavel se transforma no símbolo do horror governabilidade. O fato é que, sem a Frente Liberal, o caminho para o término do autoritarismo teria sido provavelmente muito mais difícil.

Por que Figueiredo não passou a faixa a Sarney

Empossado provisoriamente José Sarney, com Tancredo hospitalizado, o país viveu semanas de enorme angústia. E os políticos, dias decisivos. Três dias antes da crise que levou Tancredo ao hospital estive com ele, na Granja do Riacho Fundo, residência oficial onde morava desde a eleição pelo Colégio Eleitoral. O PMDB já estava se acalmando do susto com a indicação de Sarney como Vice-Presidente, na convenção do partido, ocorrida em agosto de 1984. Os gritos do MR-8, agrupamento àquela altura ligado a políticos do partido, de "Ei, ei, ei, Sarney é nosso rei", haviam abafado na convenção os votos dos setores do PMDB que não se conformavam com a escolha.

Eu perdera a disputa para exercer a liderança do PMDB no Senado, pretensão estimulada por Tancredo em reunião que tivemos na sede da representação da Fundação Getulio Vargas (FGV) em Brasília. Com o característico estilo suave, malicioso e simpático, escusando-se, ele me disse que apoiaria minha indicação para líder, uma vez que não seria possível designar mais ministros paulistas, tantos haviam sido convidados... Eu não ambicionava posição no Ministério porque era impossível: meu suplente no Senado, Magalhães Teixeira, se elegera prefeito de Campinas em 1982; se assumisse a cadeira, com meu eventual afastamento, ele perderia o mandato. Se eu me afastasse sem o substituto legal assumir haveria novas eleições para o Senado, algo politicamente inaceitável.

Acontece que o senador Humberto Lucena (PMDB-PB), a quem eu sucederia como líder, fora derrotado na eleição para presidente do Senado, e por isso, a pedido de Tancredo, abri mão da indicação, propiciando que Lucena continuasse a exercer a liderança. Montoro, entretanto, me queria numa posição de destaque na nova situação. Depois da recondução de Lucena à liderança, ele sugeriu a Tancredo me designar para uma função nova (e difícil), a de líder do governo no Congresso. Uma manhã, nas antevésperas da posse, Ulysses me telefonou e perguntou:
- Que história é essa de líder no Congresso?
Tancredo, ao anunciar o Ministério, tinha informado que a mim caberia a função. Respondi a Ulysses que iria imediatamente ver do que se tratava, e ele contestou que não adiantava mais, pois o Presidente já se dera conta de minha escolha. Essa a razão da visita a Tancredo no Riacho Fundo: saber das minhas novas funções.

No Riacho Fundo, esperei longo tempo que o Presidente eleito terminasse um encontro com o ex-governador e deputado Miguel Arraes (PMDB-PE). Havia rumores de que Tancredo estava com alguma leve enfermidade, talvez problemas de garganta. Não notei nada. Conversamos por não muito tempo em um alpendre largo. Perguntei-lhe sobre o que esperava de mim.

Respondeu que gostaria que fosse a pessoa de sua confiança no Congresso Câmara e Senado em conjunto, que em várias situações apreciam como uma só casa determinadas questões -, e que não me preocupasse com mais nada. Ele iria chamar o recém-eleito presidente do Senado, José Fragelli (PMDB-MS), que vencera a disputa com Lucena, e daria instruções para que fossem demolidas paredes e adaptassem uma sala imensa para mim. Assim, disse-me, logo vão ver quem tem poder...

Fiquei para o almoço, juntamente com Arraes e com o casal Yvone e Henry Gigliotti, ele embaixador da Ordem de Malta no Brasil. À mesa, sentado ao lado de Tancredo, ouvi do outro lado a esposa, dona Risoleta, pedir que não se oferecesse vinho ao Presidente. Como seu copo estivesse servido, troquei-o com o meu. Boa parte da conversa, amena, girou, ironicamente, sobre a boa saúde de Tancredo. Ele, gracejando, disse que todos viam-no como adepto de tomar sais de magnésio, hábito em moda entre os senadores, o que, corrigiu, não era correto. E brincou dizendo que nem ginástica fazia, mesmo porque os leões, que se saiba, não a praticam e, afinal de contas, são os reis dos animais. Ao final do almoço, acompanhou-nos, a Arraes e a mim, até o carro, abriu a porta para nós e ainda brinquei, tentando impedir o gesto, dizendo que me sentia honrado em ser ajudado pelo Presidente da República, mas que o protocolo não lhe permitia mais tais gentilezas.

Foi a última vez que vi Tancredo com vida. Na antevéspera da posse, quando jantava no Tarantella, recebi uma chamada de Fernando Lyra, recém-designado ministro da Justiça, para comentar rumores sobre uma crise de apendicite do Presidente eleito. No outro dia, jantávamos na embaixada de Portugal, com o Presidente Mário Soares, Ulysses Guimarães, penso que o deputado Pimenta da Veiga (PMDB-MG) e outros políticos, quando chegou a má notícia: Tancredo tivera que ser internado em caráter de urgência no Hospital de Base de Brasília. Para lá rumamos todos. Entrei até a antecâmara do quarto onde ele se encontrava. Falei rapidamente com seu sobrinho, o ex-secretário da Receita Federal e ministro da Fazenda designado Francisco Dornelles, que acabara de estar com o tio. Minutos depois passava Tancredo em uma maca rumo ao elevador que o conduziria ao centro cirúrgico. Dirigi-me a outro andar onde se concentravam vários políticos. Em uma roda, conversavam, entre outros, Sarney, Ulysses, Fragelli e o general Leônidas. Sarney dizia que não pretendia assumir, que tinha dúvidas sobre quem deveria suceder Tancredo durante o impedimento, que todos imaginavam temporário. Àquela altura, Afonso Arinos, constitucionalista de peso, havia declarado pelos meios de comunicação seu entendimento de que correspondia ao Vice-Presidente, e não ao presidente da Câmara, isto é, a Ulysses, assumir a interinidade.

Em certo momento, creio que foi Ulysses quem disse:
-Vamos conversar com o professor Leitão de Abreu para tomar uma decisão.
Leitão de Abreu era ministro-chefe da Casa Civil da Presidência e figura-chave do governo Figueiredo, além de, como vimos no Capítulo l, ministro aposentado do STF. Saímos sorrateiramente, Ulysses, o general Leônidas e o senador Fragelli e, no automóvel do general, nos dirigimos a toda velocidade para a Granja do Ipê, residência oficial do ministro. Somente um jornalista se apercebeu da manobra, Jorge Bastos Moreno, de O Globo, que nos viu entrar nos portões do Ipê.

Passava da meia-noite, e aparentemente o dr. Leitão de Abreu se recolhera. Esperamos bom tempo até que viesse ter conosco, mas ele surgiu na sala trajando paletó, gravata e colete. Colocada a questão, continuavam as dúvidas. Recordei-me do livro de Afonso Arinos, Rodrigues Alves: apogeu e declínio do parlamentarismo? no qual há referências a situação semelhante, quando o Presidente Rodrigues Alves, que governara de 1902 a 1906, não pôde tomar posse do segundo mandato, em 1918, abatido pela gripe espanhola. O vice Delfim Moreira assumiu e tornou-se Presidente efetivo dois meses depois, com a morte de Rodrigues Alves. A biblioteca do professor Leitão, porém, já estava encaixotada, não poderíamos consultar o livro. Havia disponível apenas um exemplar da Constituição.

Foi lido com cuidado por todos nós. O general Leônidas disse que não era jurista e acataria qualquer decisão. Leitão de Abreu parecia pender para a interpretação que favorecia o presidente da Câmara como sucessor constitucional, posto que ainda não ocorrera a posse do vice. Ulysses Guimarães, no entanto, secundado pelo presidente do Senado, alinhou-se com a tese de Arinos e convenceu o professor Leitão da validade de sua exegese. O ministro do Exército e eu ficamos a ouvi-los, sem credenciais para discutir o mérito. A certa altura alguém perguntou:
- E a faixa, o Presidente Figueiredo vai transmiti-la? O chefe da Casa Civil redarguiu com firmeza:
- Presidente só transmite faixa a outro Presidente. Assunto encerrado. Está aí a verdadeira razão que levou o Presidente Figueiredo a não transmitir o cargo - e a faixa - a Sarney. Diferentemente do que diz a lenda, segundo a qual Figueiredo "saiu pelos fundos do palácio" para não passar a faixa porque não suportava Sarney, houve uma discussão prévia a respeito do assunto com o chefe da Casa Civil e renomado jurista Leitão de Abreu, em que se levantou uma questão constitucional que incluía outra, de protocolo. Figueiredo podia, efetivamente, não tolerar Sarney, a quem não perdoava a deserção do PDS, mas a realidade dos fatos é a que agora descrevo.

A morte de Tancredo, o vazio e o butim do Estado

Boa parte do PMDB ficou inconformada com a decisão. Na volta da Granja do Ipê, Ulysses, Fragelli e eu rumamos para o Congresso. Havia firme expectativa entre as bancadas, tendo à frente o líder do partido na Câmara, Freitas Nobre (SP), de que Ulysses seria o ocupante provisório do cargo e com ele, portanto, o PMDB (Sarney, pela filiação recente e por razões óbvias, não era considerado, para este efeito, PMDB).

Ulysses, comandante indiscutível, cortou, incisivo: questão resolvida, não se falava mais no assunto. E assim foi. É possível conjeturar o porquê de tanto empenho em passar o cargo para Sarney. Seria temor a uma reação militar, uma vez que Ulysses e todos nós do MDB histórico éramos críticos ferozes do regime?

Para quem assistiu às deliberações e viu a reação do general Leônidas, é pouco provável. Os maldosos insinuaram, mais tarde, que Ulysses teria querido se poupar para uma eventual nova eleição no Colégio Eleitoral em caso de falecimento de Tancredo, bobagem. morrer. Tratava-se, pensávamos, de mera interinidade e não convinha perturbar um processo tão penosamente levado adiante para afastar os militares e seus partidários do poder.

Ademais, a Constituição abonava a decisão tomada. A verdade é que Ulysses, além de tudo, revelou-se altruísta no episódio.

As conseqüências políticas de tudo isso, após a morte de Tancredo, foram enormes. Havia um sentimento de estar pouco à vontade que alcançava, penso eu, o próprio Presidente Sarney. Com Tancredo ainda no hospital, mas se tornando óbvio que não se recuperaria, Fernando Lyra, Affonso Camargo - que Tancredo designara ministro dos Transportes - e eu fomos ter com Sarney, no Palácio do Jaburu, a residência oficial dos vice-presidentes da República, onde se instalara. Encontramos o Presidente em exercício conversando com o jornalista Carlos Castello Branco, o Castelinho, respeitado colunista do Jornal do Brasil.

Insistimos com ele para assumir plenamente as funções presidenciais. Sarney, por prudência ou natural constrangimento, relutava. Ele já era Presidente de direito, durante o impedimento de Tancredo, mas não decidia as nomeações necessárias ao pleno funcionamento da máquina pública nem dava rumos ao governo. Nós integrávamos o grupo próximo a Tancredo, desde quando o ajudamos no Colégio Eleitoral, e tínhamos a legitimidade de sermos, Lyra e eu, emedebistas antigos. Apelamos a Sarney para que exercesse plenamente o mando, pois Tancredo, embora ainda vivo, lamentavelmente não sobreviveria e a situação política se deteriorava gradativamente. Lembro-me de um de nós dizendo:
- Viemos aqui pedir a você que comece a governar, porque tudo indica que infelizmente o Tancredo não vai sair dessa, já que, assumindo interinamente, se tornaria inelegível.

A verdade é que nenhum de nós imaginava que Tancredo viesse a Eu estava em Brasília quando terminou o martírio de Tancredo no Instituto do Coração do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Com muitos companheiros, fomos esperar a chegada do corpo no aeroporto e nos perdemos no caminho para o Palácio do Planalto, onde seria velado, tal a multidão que tentava acompanhar o cortejo. Depois, o enterro do Presidente em São João Del Rey (MG) me comoveu muito. O ambiente todo me trouxe de alguma forma à memória as pequenas cidades milenares da Itália, cada uma com arraigada cultura própria. Minas tem isso, à sua maneira. Naquele dia, o Presidente morto, a bela igreja barroca de São Francisco de Assis, a música mineira, também barroca, compunham um quadro impressionante. O enterro se deu ao anoitecer. Ulysses fez um discurso admirável à beira do túmulo. Tive a sensação de uma tragédia shakespeariana, como de fato era. É muito grande a força de Minas e de seus símbolos, e aquilo tudo como que explodiu ali, naquele momento, no coração de todos nós, que estávamos na verdade enterrando muitas esperanças. A Nova República, que Tancredo lançara, seria tocada adiante por Sarney, com as limitações que sua condição de Presidente por acaso acarretavam, sem que nunca seja possível saber como teria sido com seu idealizador.

O vazio provocado pela morte de Tancredo seria gigantesco, como não podia deixar de ser. E Sarney, mesmo depois de efetivado como Presidente, tinha pouca margem de manobra. O Ministério fora montado por Tancredo em consonância com Ulysses. Lembro-me de que, certo dia, Ulysses convidou para jantar em sua casa todos os ministros do PMDB, e não incluiu o ministro da Fazenda, Francisco Dornelles, que não pertencia ao partido. Por circunstâncias familiares, eu tinha uma ligação pessoal com Dornelles - seu pai, Mozart Dornelles, tinha sido o maior amigo de Ciro do Espírito Santo Cardoso, o primo-irmão de meu pai que ocupara o Ministério da Guerra sob Getúlio, no começo dos anos 1950. Tomei a iniciativa de ir à casa do ministro para explicar que o jantar não era voltado contra ninguém. Na prática, porém, Ulysses presidiu um jantar do Ministério, e com a ausência não apenas de Dornelles, mas do próprio Presidente da República. A bem da verdade, diga-se que Sarney precisou munir-se de grande tolerância para atravessar aquele período. O PMDB, enquanto isso, estava exercendo plenamente o butim do Estado, como passou a fazer o PT após a vitória eleitoral de Lula em 2002, trocando funcionários e técnicos por partidários e clientes, pretextando a necessidade de expurgar a máquina administrativa dos que haviam servido ao regime passado: houve até, nas bancadas parlamentares, sorteio para ver quais cargos em que órgãos públicos seriam preenchidos por indicações de quais deputados e senadores. A anuência ao procedimento era quase geral, havendo discrepância maior de um pequeno grupo de que faziam parte, entre outros, o líder do partido na Câmara, Pimenta da Veiga, e eu próprio. A Constituinte me fez lembrar maio de 1968.

Foi nesse contexto que ganhou força a ideia de se convocar uma Assembléia Nacional Constituinte, movimento antigo e forte na sociedade civil. Uma comissão designada ainda por Tancredo, e mantida por Sarney, se formara para preparar, sob a direção de Afonso Arinos, um anteprojeto de Constituição. O divisor de águas, nesse caso, era: Constituinte exclusiva ou Congresso com poderes constituintes. Ou seja, os partidos existentes e as lideranças que emergiriam das eleições parlamentares teriam maior peso, ou um grupo de notáveis ou de representantes mais "puros", com menos vínculos partidários, se encarregaria, depois de eleito, de aprovar uma nova Constituição, dissolvendo-se ao final?

Havia uma influente corrente de formadores de opinião favorável a que se convocassem os eleitores para duas tarefas simultâneas: a eleição de deputados e senadores para os trabalhos regulares do Congresso - na qual teriam papel preponderante os partidos existentes, lideranças consolidadas e políticos de carreira em ascensão - e a eleição de um coletivo de "constituintes puros", a que poderiam concorrer candidatos sem filiação partidária e "notáveis" de todo tipo, cuja única e exclusiva função seria elaborar uma nova Carta para o Brasil redemocratizado, após o que essa Constituinte seria dissolvida. O pragmatismo e a compreensível pressão dos políticos em atividade levaram a que predominasse a alternativa de um Congresso com poderes constituintes, que se chamaria Assembléia Nacional Constituinte.

O Presidente Sarney não custou a convocá-la. Ulysses Guimarães, como seu presidente, foi o gigante da Constituinte. Pimenta da Veiga era o mais insistente na necessidade e urgência da convocação. O Plano Cruzado de fevereiro de 1986, que abrira tantas esperanças, contendo momentaneamente a inflação e conseqüentemente aumentando o poder de compra das classes populares, se dissolvera na incontinência fiscal e, novamente, lançara o desânimo na população e o desprestígio nos políticos. A Constituinte eleita a 15 de novembro daquele ano funcionaria como um ersatz dos belos dias de esperança.

Aquela Assembléia algo caótica era a expressão do Brasil popular gerado nas décadas anteriores pelo regime autoritário e contra ele. Pelo regime, por causa do "milagre econômico", com maior urbanização, mais migração interna, mais diferenciação de classes. Contra o regime, porque as novas classes e grupos nos anos 1980, e desde o fim dos 1970, começaram a se mobilizar e não encontravam mais posições no mercado, sofrendo com a inflação em alta e com a perda de dinamismo econômico. As forças mais organizadas que marcavam presença na vida nacional, fora o empresariado, eram as corporações produtivas estatais, as igrejas, os sindicatos e as associações, de funcionários. Todas elas reapareceram, debates constitucionais, tratando de defender seus valores e interesses. O Dr. Ulysses me designou para ser o relator do Regimento Interno da Constituinte, ou seja, o documento que regulamentaria o funcionamento da Assembléia. Pedi ajuda ao deputado Nelson Jobim (PMDB-RS), porta-voz da OAB em matéria constitucional. Os constituintes recusavam partir de um texto elaborado fora da Assembléia. Os parlamentares desdenhavam do anteprojeto da Comissão Arinos que, segundo Tancredo imaginara inicialmente, poderia organizar o debate, com Afonso Arinos - de volta à vida pública como senador eleito pelo PFL do Rio de Janeiro - presidindo-a e tendo ser examinada uma iniciativa a mim como relator. Também não chegou a de um famoso jurista de oposição, Fábio Konder Comparato, que, para pasmo de muitos, fortemente corporativo, com laivos ingenuamente um planejamento central, elaborou um projeto autoritário, propondo tanto de trabalhadores como como veremos adiante. Cada constituinte tinha o direito de apresentar as sugestões que quisesse, e estas seriam encaminhadas às respectivas comissões temáticas, que preparariam um texto para ser consolidado em uma Comissão de Sistematização. Incluiu cláusula inovadora que abria espaço para emendas populares, portanto oriundas de não constituintes. O Regimento predefiniu a divisão de capítulos da Constituição, tal como acabaria se mantendo na Carta. Foi recebido, entretanto, como se fosse uma "rolha". Cada parlamentar sentia-se no direito e no dever de participar de tudo e tudo fazer.

Recordei-me muito, naqueles dias, do meu tempo de Nanterre, da Revolução de Maio de 1968 na França, quando era "proibido proibir". Ocorreram pressões enormes, da direita e da esquerda, para se alterar o Regimento. Lembro-me de uma conversa com Lula, eleito deputado constituinte por São Paulo com a maior votação do país, em que a certa altura ele me disse:
- Entendo sua posição, mas tenho de lutar para modificar o Regimento. Ao que alertei:
- Cuidado, a emenda pode resultar pior que o soneto.

Dito e feito. Ulysses determinou uma revisão no Regimento e o resultado só não foi uma redução de avanços democratizadores porque eu consegui manter o essencial da proposta: as emendas populares e as cláusulas de autonomia da Constituinte. Sarney, por seu lado, temia o que pudesse estar sendo engendrado contra sua autoridade presidencial, A posição dele não era fácil:
Vice-Presidente transformado em Presidente da República, ex-presidente do PDS, sustentado sem firmeza por seu novo partido, o PMDB, com um Ministério que não escolhera e à sombra do prestígio de Câmara, deputado Carlos Sant'Anna preocupação com um dispositivo do Regimento Interno que permitia à Constituinte barrar decisões do Executivo que de alguma forma ferissem a vontade soberana da Assembléia. Isso poderia parecer um golpe branco e na verdade foi interpretado como uma tentativa de o Dr. Ulysses "tutelar" o Presidente. Não era essa minha intenção, ao incluir o dispositivo no Regimento. Queria somente reafirmar o óbvio: a Constituinte era soberana. Não visava, contudo, permitir casuísmos. O dispositivo lá permaneceu, e nunca ninguém o usou para manobras menores. Com esse clima de incertezas; com um governo que, em razão das circunstâncias de seu nascimento, pouco podia influenciar as decisões no dia-a-dia da Constituinte; com um líder, o recém-eleito senador Mário Ulysses. Um dia, o líder do governo na (PMDB-BA), e eu fomos até ele. Havia Covas, experiente, mas afastado por longo período do convívio dos políticos por força do AI-5 e sem ter ocupado até então a cadeira de deputado obtida em 1982 porque exercera a Prefeitura de São Paulo; com o predomínio de Ulysses, mas com a irrupção do chamado "Centrão";6 com um sem-número de "poréns", com tudo isso, a Constituinte foi um grande momento da vida política nacional.

É certo que a Constituição votada nasceu a destempo: era estatizante e corporativa, e isso às vésperas da queda do Muro de Berlim e da virada anticorporativista de boa parte das próprias esquerdas mundiais. É certo, como diziam o Presidente Sarney e o último de seus ministros da Fazenda, Mailson da Nóbrega, que o regime fiscal criado sufocaria o governo federal. Isso só não ocorreu porque a União passou a usar o aumento das "contribuições sociais" como válvula de escape, vindo, isto sim, a sufocar a sociedade com o peso dos tributos.

Sobre tudo isso, contudo, Ulysses tinha razão: é uma "Constituição Cidadã". A ampla liberdade partidária (que começou antes da Constituinte, com a Emenda Constitucional n° 25, de maio de 1985, à antiga Constituição de 1967), a independência do Ministério Público (por mais dor de cabeça que causem os abusos de alguns procuradores da República), o novo papel do STF no controle da constitucionalidade, a extensão a novos atores políticos do direito de arguir a inconstitucionalidade das leis, as liberdades civis, a aspiração à maior igualdade de gênero, de classe, de raça, o acesso mais fácil ao sistema de saúde constituem alguns dos marcos bem fincados pela Constituição na prática de nossa sociedade. E dizer que a oposição da época, principalmente o PT (que não aprovou o texto final), considerava-a uma Carta "burguesa"!

Os debates e um caleidoscópio nos partidos

Os debates da Constituinte se iniciaram, como já disse, em torno de dois eixos: o primeiro, a discussão sobre a Constituinte exclusiva ou não. O segundo girava ao redor da aceitação ou não de um projeto preliminar de Constituição para orientar os debates. Tal proposta teria sido elaborada por "sábios", como maldosamente insinuavam os que só aceitavam discutir propostas vindas diretamente dos constituintes.

Embora possa parecer que essas questões são de interesse menor, na verdade elas anteciparam um debate que durou o tempo todo e que prenunciou as diferenças partidárias. Por trás estava a questão da "soberania" da Constituinte e, portanto, um eventual choque com o governo Sarney e com o modo pelo qual seria tratado o "entulho autoritário" - a herança institucional e legislativa do regime militar. Os que desejavam uma Constituinte dita soberana propunham mudar imediatamente alguns itens da Constituição em vigor, que consideravam ilegítima. Essas mesmas forças temiam manobras para restringir o alcance democratizador da ação dos constituintes. O Planalto sentia tais temores de maneira oposta: havia constituintes com vontade de desestabilizar o governo e de diminuir o mandato do Presidente eleito.

Não é o caso de entrar em detalhes. A reação à proposta do Regimento Interno que dava à Constituinte capacidade para eventualmente barrar atos do Executivo contrários à sua vontade soberana resume a questão.

Na verdade o texto aprovado, depois de negociações lideradas pelo deputado Antônio Britto (PMDB-RS), foi uma emenda do deputado Maurílio Ferreira Lima (PMDB-PE) que amortecia os temores de que a Assembléia extrapolasse seu legítimo direito de afirmação e defesa. E coube ao deputado Flávio Bierrenbach apresentar a proposta da Constituinte exclusiva, que não vingou.

Essas discussões tinham como pano de fundo uma questão política que embaçou a análise de quase tudo: a duração do mandato do Presidente Sarney. Antes mesmo da eleição de Mário Covas como líder do PMDB na Constituinte, no início de março de 1987, surgiu um "grupo de centro” liderado pelo senador José Richa (PMDB-PR) - sem relação alguma com o futuro Centrão, a que vou me referir mais detidamente em seguida - que se propunha a garantir que não seriam tomadas medidas casuístícas de reforma da Constituição vigente e que o mandato do Presidente seria definido no prazo de seis meses. Mesmo depois de aprovado comissões temáticas, que foram oito, nas quais os constituintes se distribuíram, os trabalhos andavam morosamente. Cada constituinte não poderia participar de mais de uma comissão temática e havia 49 parlamentares que integravam a Comissão de Sistematização, que deveria conciliar os pontos de vista eventualmente divergentes e dar forma, gradativamente, ao novo projeto de Constituição, antes de ele passar às mãos do relator, deputado Bernardo Cabral (PMDB-AM). Este, junto com três ou quatro relatores-adjuntos, deveria redigir cada texto a ser submetido ao Plenário. Fui relator-adjunto por um tempo. Logo após, como a Comissão de Sistematização, sob a Presidência do senador Afonso Arinos, a essa altura no PSDB, requeria intenso trabalho político, houve a decisão de me incorporar nela junto com o senador Jarbas Passarinho (PDS-PA), como vice-presidentes, para, com o deputado Brandão Monteiro (PDT-RJ), que já era vice, assumirmos na prática a liderança do processo decisório.

Paulatinamente, apesar dos vários choques de opinião, fomos conseguindo avançar a discussão dos temas constitucionais. Já se prenunciavam choques do que veio a ser posteriormente o Centrão, agrupamento de centro-direita formado por parlamentares conservadores e por congressistas tradicionalmente ligados ao Planalto, sem serem necessariamente conservadores, que se organizou como contrapeso às lideranças do PMDB e às esquerdas. As divergências giraram, inicialmente, ao redor do quorum para deliberações. O PFL queria que se dessem por maioria absoluta, ou seja, por metade mais um de todos os integrantes da Constituinte; os líderes do PMDB (embora não todos os peemedebistas), por maioria simples, quer dizer, a maioria dos parlamentares que estivessem participando de cada votação. As razões da disputa eram óbvias: propostas mais controvertidas teriam maior dificuldade de aprovação por maioria absoluta.

Os constituintes não se dividiam apenas quanto a questões conjunturais ou de tramitação. Suas opiniões discrepavam nas questões econômicas, nas questões sociais em geral e no alcance da ação do Estado. E os alinhamentos se davam em cada questão específica, não necessariamente a partir de uma visão do mundo, de uma ideologia. Um determinado o Regimento Interno e de compostas as constituinte poderia defender um mandato para o Presidente Sarney de quatro, cinco ou seis anos, sendo ou não parlamentarista, poderia ser mais propenso à iniciativa privada ou mais intervencionista, aceitar a redução da jornada de trabalho ou não, e assim por diante. Ou seja, podia alinhar-se segundo questões específicas, sem que elas se concatenassem. Mais complexo ainda: em um mesmo partido, os parlamentares se dividiam como em um caleidoscópio quanto a esses diversos temas.

Uma visão apressada sobre as incoerências partidárias e as inconsequências político-ideológicas pode, portanto, condenar facilmente o sistema partidário que se estava montando como incapaz de espelhar as diferenças da sociedade e de dificultar o funcionamento de uma democracia "verdadeira". E até certo ponto é assim mesmo. Porém o processo é mais complexo. Vejamos pouco a pouco como se pode argumentar de outra maneira. Comecemos, a seguir, pelos temas econômicos mais gerais.

Os temas econômicos e o nacionalismo estatizante

Nesses temas, predominaram as questões relacionadas à dívida externa e às taxas de juros. A média dos constituintes manifestava viva repulsa às elevadas taxas de juros e críticas ao FMI e ao pagamento da dívida externa. Note-se que o debate ocorria depois da moratória da dívida do governo Sarney, quando, por exaustão das reservas, mas sob fundamentos retóricos de "soberania", o país deixara, em fevereiro de 1987, de cumprir seus compromissos sem buscar uma renegociação. Logo no início dos trabalhos da Constituinte, havia um novo ministro da Fazenda, o peemedebista Luiz Carlos Funaro, empresário nacionalista, alguns assessores de primeira ordem, em cuja gestão fora decretado o cruzado e que, durante o auge do sucesso do plano, obtivera um êxito político até então medito na História do país, tornando-se um ministro da Fazenda popularíssimo e carismático. Lembro-me de uma viagem em que acompanhei a Campinas o Presidente Sarney e o próprio Funaro - amigo com quem, quando mais moço, costumava jogar baralho numa mesa que incluía Roberto Gusmão, o empresário e editor Fernando Gasparian e o jornalista Fernando Pedreira. O ônibus da comitiva, como ocorria com freqüência com o ministro, tinha que ir parando ao longo do caminho para que as pessoas viessem saudar e aplaudir Funaro. Nas ruas, queriam pegar nele, tocá-lo, como se ele fosse um profeta, um santo.

Mas, por motivos que não cabe aqui aprofundar, veio o naufrágio do cruzado e durante a gestão de Funaro o governo decretou a moratória. Quando Bresser assumiu, o governo começava a entabular conversações com os credores e precisava explicar ao público interno que a renegociação seria "altiva", na expressão do ministro. Bresser, velho amigo e vizinho em Ibiúna, economista e professor respeitado, tinha boa experiência na vida pública, adquirida sobretudo nas diversas posições de relevo que ocupara durante o governo Montoro em São Paulo (1983-1987). Mas sua tarefa não se revelaria fácil, constituintes de diversos partidos opinavam constantemente sobre a questão da dívida, quase sempre pedindo cautela nas negociações, quando não expressando repúdio ao FMI e ao próprio pagamento do que o país devia. A cada instante se exigia uma auditoria no Banco Central (BC), para verificar a legalidade dos contratos de empréstimos. Lula, um pouco antes, cuidadoso com as multinacionais, dissera ser de bom senso não se posicionar contra elas, embora devessem existir critérios para controlar sua ação. Mesmo assim, manifestou-se pela suspensão do pagamento da dívida externa.7 O deputado Luiz Henrique da Silveira (SC), líder do PMDB na Câmara, apoiava a suspensão do pagamento dos juros e, indo mais longe, sugeriu à Constituinte, logo em seu discurso inaugural, uma reforma para regulamentar os "lucros exagerados dos bancos" e impedir que o Banco do Brasil (BB) fosse supostamente esmagado pelos bancos privados.

Não era de estranhar, portanto, que logo surgissem propostas para utilizar a Constituição como freio à política econômica. Nesse sentido, o deputado Fernando Gasparian (PMDB-SP) sobrepujou com seu zelo até mesmo os partidos de esquerda: propôs incluir na Constituição a limitação da taxa de juros a 12% ao ano, o cancelamento da captação de depósitos por bancos estrangeiros e também a substituição do Conselho Monetário Nacional por uma comissão de parlamentares que poderia emitir títulos públicos para ajudar empresas nacionais em dificuldades. Não contente com isso, o deputado Luiz Gushiken (PT-SP) queria a estatização dos bancos. O deputado José Genoino (PT-SP) disse ter votado a favor dos 12% por convicção e por se tratar de uma emenda "histórica" da esquerda. Mas também o deputado Roberto Cardoso Alves (PMDB-SP), fazendeiro e empresário rural, que viria a ser um dos líderes do Centrão, apoiou o tabelamento dos juros. Em contraposição, para citar alguns exemplos, os deputados José Serra (PMDB-SP), Francisco Dornelles (PFLRJ) e César Maia (PDT-RJ), não por acaso economistas respeitados, votaram contra, como eu também. O absurdo de colocar limite às taxas de juros na Constituição - manietando de forma suicida a capacidade de o governo, qualquer governo, executar uma política monetária - era tamanho que mesmo Celso Furtado, economista de reputação internacional e figura reverenciada por diferentes correntes de opinião, principalmente à esquerda, considerou que se tratava de uma resposta exagerada às agruras das empresas.

O ministro Bresser penou para levar adiante a negociação "altiva" com os bancos estrangeiros e o FMI. Este foi alvo preferencial de críticas de todos os lados do espectro político. Finalmente o PMDB concordou que o ministro procedesse à negociação da dívida, desde que o país não se submetesse "a um monitoramento e a ajustes recessivos na economia".

Note-se que essa autorização cautelosa veio a público por meio do porta-voz da Presidência, em nome de Ulysses Guimarães e do próprio Presidente Sarney,9 depois que ambos se reuniram no Planalto. A esta declaração seguiu-se um encontro entre as principais lideranças do PMDB que apoiavam as negociações com os bancos, desde que excluíssem um acordo com o FMI. Considerava-se a instituição "nociva" ao país. Covas afirmou que se o ministro conseguisse tratar com os bancos sem o Fundo, isso representaria uma "revolução" na estrutura interna do sistema capitalista internacional.

Apesar da bravura de suas posições, Bresser não conseguiu a negociação naquele momento. O Tesouro norte-americano rejeitou as propostas brasileiras de alongamento dos títulos da dívida e o país continuou sufocado, sem créditos externos. Anos mais tarde, as teses de Bresser acabariam incorporadas ao plano que leva o nome do secretário do Tesouro dos EUA entre 1988 e 1993 (governos Ronald Reagan e George H. Bush), Nicholas F. Brady.

Essas reações, que, repito, expressavam o sentimento da maioria e empolgavam as minorias "à esquerda" do próprio PMDB, tinham a aceitação de líderes como Pimenta da Veiga, para não falar de Fernando Gasparian.

Joguei água na fervura, declarando que eram exagerados os pruridos em torno do pagamento de parte dos juros devidos, embutido na proposta Bresser. Também Mário Covas achou politicamente aceitável a proposta Bresser, nos termos apresentados.

Esse ziguezague durou todo o tempo. Bem mais tarde, em janeiro de 1988, com o novo ministro da Fazenda, Mailson da Nóbrega, até então secretário-geral do Ministério e funcionário de carreira do BB, que substituíra Bresser no posto, continuavam as dificuldades para que se aceitasse uma negociação com o FMI. Pronunciei então um discurso no Senado sobre "A crise e as opções nacionais", criticando as hesitações do governo na matéria, propondo a integração "soberana" de nossa economia no plano mundial, a partir do fortalecimento entre nós do que chamei de "espírito de empresa", que dispensaria o protecionismo, aceitaria regras de concorrência e assimilaria a revolução tecnológica.

Via nisso o caminho para melhorar a eficiência da burocracia pública e ampliar a democracia social. Mais ainda, criticava a indiferença criminosa das elites diante da miséria do povo. Segundo os jornais da época, eu assumia uma posição equidistante entre o "arcaísmo" do Centrão e o "corporativismo" de setores que se diziam progressistas. O discurso começava por reconhecer a crucial importância política da volta das eleições diretas: "No Império - e Joaquim Nabuco imortalizou o tema - toda a discussão girava ao redor da questão da escravidão. Mesmo quando nela não se tocava, era ela quem comandava. Pois bem, a grande questão política é uma só: a das eleições diretas." Além desse ponto central à redemocratização plena do país, eu defendia uma revisão completa de nossa agenda, incluindo temas como maior abertura da economia, desenvolvimento tecnológico e menos corporativismo.  Criticava os que confundiam progresso com monopólio estatal e também os que viam a indispensável ação do Estado como uma ameaça à iniciativa privada, dizendo que a antinomia estatização versus privatização constituía um falso problema, pois a aplicação de uma ou outra medida depende de circunstâncias e de saber em quais setores.

Afirmava que os "progressistas" defendiam o populismo e os conservadores, o atraso. Seria um discurso antecipatório de muito do que realizei ou tentei realizar na Presidência. A verdade é que, a despeito do ziguezague mencionado anteriormente, um dos eixos ideológicos principais durante os debates ocorridos na Constituinte foi o nacionalismo estatizante. Sua forma mais exaltada apareceu nas propostas de estatização do sistema bancário, na definição do conceito de empresas brasileiras e estrangeiras e na defesa dos monopólios estatais, especialmente para a exploração das jazidas minerais, seu sabor antiquado, nacionais em um mundo cuja economia se globalizava e cuja bipolaridade terminava. Não foi muito diferente o que ocorreu com as questões sociais, que E o principal problema trazido por essas posições era que dificultava a correta definição dos verdadeiros interesses tratarei em seguida, começando por uma apreciação geral e depois me detendo especificamente nas questões trabalhistas e no tema da reforma agrária. As questões sociais e o corporativismo O debate ideológico não se esgotava na questão do nacionalismo exaltado a que acabei de me referir. Nas questões sociais, como a da reforma agrária, a definição da duração da jornada de trabalho e, principalmente, a proposta de estabilidade no emprego, as divisões eram profundas. Isso sem mencionar polêmicas de menor polarização, como a que separou os favoráveis à unicidade sindical - ou seja, aqueles alinhados com a tese de que cada categoria de trabalhadores só deveria ser representada por um único sindicato em cada base territorial - dos defensores da tese oposta, a pluralidade, ou quanto ao papel das Forças Armadas, se limitado à defesa diante de ameaças externas ou abrangendo também, em circunstâncias dadas, a defesa da lei e da ordem.

As principais clivagens durante a Constituinte ocorreram em torno desses temas. Além, obviamente, das questões políticas, relativas ao regime de governo e à extensão do mandato presidencial. Os debates sobre a duração da jornada de trabalho e a estabilidade no emprego mobilizaram fortemente os empresários e os sindicatos. A questão da reforma agrária igualmente levou a uma disputa acirrada. Importava mais obter uma vitória política do que inscrever na Constituição uma posição racional.

Por trás de tais embates havia o temor, um estrangulamento da iniciativa privada tendências favoráveis ao intervencionismo estatal e ao aumento do poder das burocracias. Não obstante, as lideranças da Constituinte acabaram sempre por fazer uma espécie de mediação, tendo como resultado o "não tanto ao mar, nem tanto à terra". Isso se deu, por exemplo, no terreno das questões trabalhistas. A verdade é que as lideranças empresariais se mantinham atentas e mobilizadas. Além das entidades da indústria, do comércio, da agricultura e do sistema financeiro, novas associações, como o Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE), a União Brasileira de Empresários (UBE) e a União Democrática Ruralista (UDR) atuaram fortemente. Houve uma frente unida do empresariado para barrar o que eles consideravam excessos, como a exagerada proteção ao trabalho - com o conseqüente efeito sobre o custo da produção e a competitividade internacional do país -, as restrições nacionalistas à ação das empresas e o sempre ameaçador estatismo.

O empresariado se mobilizou intensamente, escolhendo alguns pontos nevrálgicos para concentrar fogo. Em geral as lideranças e os setores do PMDB que, em aliança com os partidos da esquerda, comandaram o processo constituinte até o advento do Centrão exemplo: terminavam, sob protesto da esquerda, aceitando uma negociação com os setores empresariais e seus representantes no Congresso, por exemplo, ao redor das 44 horas, como ocorreu nesse caso, aprovando proposta do deputado Gastone Righi (PTB-SP), Por delegação do líder em exercício do PMDB, deputado Euclides Scalco (PR), pois Covas estava enfermo, José Serra defendeu em plenário a proposição vitoriosa. Ato contínuo, também os empresários em setores da sociedade, de e do fortalecimento das começavam o debate incentivando as propostas mais radicais. Por reduzir a jornada de trabalho semanal de 48 horas para 40 horas. E representativos dos setores "duros" protestavam. As batalhas se sucediam. Não bastou definir o número de horas da jornada de trabalho, pois logo surgiu a questão dos turnos contínuos, que, segundo proposta majoritária, não deveriam ultrapassar as seis horas. Novamente, o coro empresarial proclamou que, sendo assim, haveria que contratar mais mão-de-obra e, em conseqüência, a produtividade cairia. Nenhum tópico trabalhista mobilizou mais energias do que o da estabilidade no emprego. Os líderes peemedebistas usaram a mesma tática: abriram a discussão com a reivindicação sindical e das esquerdas de colocar na Constituição o princípio da estabilidade no emprego. O projeto que sintetizou as negociações teve como palco a Comissão de Sistematização. No dia 8 de outubro de 1987, aprovou-se a estabilidade.

Os empresários, nas vésperas, procuraram o Presidente Sarney para mostrar seu alarme.10 Simultaneamente, mas sem que houvesse plano preconcebido para levar adiante o que qualifiquei de "mediação" exercida pelas lideranças maiores, tanto o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo como o ministro do Trabalho, Almir Pazzianotto, começaram a falar de "garantia de emprego", implicando restrições e multas para estabilidade no produção.

Após a aprovação da estabilidade no emprego pela Comissão de Sistematização, sem confiar muito nas mediações das lideranças do PMDB, um grupo de parlamentares de diferentes partidos formou um "Centro Democrático" logo alcunhado Centrão, que apoiou um documento inspirado pelo Palácio do Planalto chamado "Democracia e Desenvolvimento". Com essa manobra iniciava-se a fragmentação do PMDB. O novo agrupamento, com teses mais liberais nas questões econômicas, daria suporte ao sistema presidencialista de governo e à duração de cinco anos para o mandato do Presidente Sarney - questão esta que tomou conta da Constituinte e mobilizou a opinião pública por bom tempo. Pelas regras da Constituição herdada do regime autoritário, que prevaleciam no momento da eleição de Tancredo, o Presidente teria direito a cumprir seis anos de mandato. Tancredo, porém, se comprometera formalmente, inclusive no documento de constituição da Aliança Democrática que o levara à Presidência, a promover a responsabilidade por tal ato (esquecendo-se, naturalmente, peemedebistas que engrossavam o coro do Centrão). A Comissão de Sistematização aprovou uma os assalariados, como, por exemplo, a ampliação série de redução para quatro anos. No final, a Constituinte, sob intensa pressão do Planalto, fixou o mandato em cinco anos.

Com a entrada em cena do Centrão, criou-se um núcleo de pensamento econômico a buscar sustentação política no governo Sarney, o que levou Ulysses a dizer-se preocupado com a "direita" no país. A adesão do PFL a esse tipo de ação levou o PMDB a denunciar a ruptura da Aliança Democrática e a lançar nas costas do PFL a das dezenas de vantagens para da licença às trabalhadoras gestantes, o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço para a dispensa de empregados, o pagamento integral do 13° salário aos aposentados e de um adicional para os trabalhadores em férias, o financiamento do seguro-desemprego, o salário mínimo nacional unificado, a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas. Muitas dessas vantagens, mesmo depois das modificações no Regimento Interno patrocinadas pelo Centrão para dificultar a aprovação de propostas controvertidas, terminaram inscritas na Constituição e absorvidas pela sociedade. Outras vantagens, na verdade benesses clientelistas, acabaram também apoiadas pelos partidos tradicionalmente conservadores, como a estabilidade para quem estivesse no serviço público há cinco anos, algo extremamente oneroso.

Tudo movimentos de fragmentação no PMDB e a partidárias. Os setores "à esquerda" concentraram preocupação e votos na defesa de interesses corporativos, esmiuçando-os no texto da Carta. O número de artigos da Constituição que definem regras de acesso e promoção no Judiciário, por exemplo, não deve ter paralelo em outras Constituições democráticas no planeta. De igual modo, houve a "constitucionalização" de numerosas profissões e uma blindagem na estrutura das organizações sindicais, tanto patronais quanto de trabalhadores. Os grupos de pressão compostos por funcionários, especialmente os do Judiciário, por representantes das polícias, civil e militar, e das empresas estatais se movimentaram com muita liberdade e perseverança para inscrever na Constituição o que consideravam seus direitos, beirando às vezes a privilégios. Os representantes do empresariado, do mesmo modo, defenderam com unhas e dentes seus interesses, tal como ocorreu com os do setor rural quando se discutiu o tema que vou expor agora.

As paixões despertadas pela reforma agrária

O tema que mais despertou paixões foi o da reforma agrária, tendo como cavalo de batalha a desapropriação de terras produtivas. Houve um sem número de outras questões ao redor da reforma agrária, mas a briga ideológica se travou, no fundo, em torno do direito de propriedade: seria ele sacrossanto ou estaria submetido a um valor maior, o da função social da propriedade? Neste caso, defendia-se, uma área, mesmo sendo produtiva, poderia ser desapropriada para fins de reforma agrária se não cumprisse a "função social". para o país. Esses empregados públicos deixaram de ser regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e se transformaram em funcionários "estatutários", ou seja, servidores sob as regras do Estatuto dos Funcionários Civis da União passando, portanto, a ter benefícios como estabilidade no emprego e aposentadoria integral, isso serviu de combustível para formação de novas agremiações As escaramuças entre progressistas e conservadores começaram cedo na Comissão de Sistematização, depois de os blocos haverem duelado na comissão especial que cuidava do tema. Já em junho de 1987 a Contag mobilizava seus aderentes, aos gritos de "UDR assassina" para a batalha contra os partidários dessa organização de fazendeiros. Em agosto, o Centrão, ainda embrionário, contando com o apoio do líder do governo na Câmara, somado aos combatentes da UDR, com o futuro candidato à Presidência e depois deputado federal Ronaldo Caiado como seu presidente, rebelaram-se contra o texto aprovado pela comissão que tratava do tema agrário. Este autorizara a "imissão de posse imediata” pelo governo nas terras desapropriadas. Os conservadores alegavam que o dispositivo destruía o direito de propriedade do setor rural.

O relatório do deputado Bernardo Cabral, que seria votado no fim de agosto de 1987 na Comissão de Sistematização, era uma síntese de várias propostas e incluiu a vistoria prévia da terra como requisito para as desapropriações. Com esse procedimento, haveria a avaliação do cumprimento da função social da propriedade antes de qualquer ato de desapropriação. Além de tudo, o relatório abria recurso à Justiça, caso o proprietário não concordasse com a decisão administrativa, e estabelecia que a eventual indenização pelas benfeitorias existentes deveria ser paga em dinheiro. Mesmo assim, o impasse se desdobrou durante meses a fio, embaralhando reivindicações justas, posições ideológicas e questões políticas. Em maio de 1988 a discussão esquentou.

Os líderes de todos os lados foram limando diferenças, mas o braço de ferro continuou no ponto central já abordado: a função social como pré-requisito para validar o direito de propriedade. A 4 de maio de 1988, no auge do impasse, a proposta do Centrão proibindo a desapropriação de terras produtivas foi a voto e se viu derrotada por 248 votos a favor, 242 contra e 37 abstenções. Não alcançou os 280 votos necessários para a aprovação. O Centrão, no entanto, mostrou força. Daí por diante, recomeçou o trabalho de costura do "nem tanto ao mar, nem tanto à terra". As lideranças do PMDB, do PT e do PDT procuravam novo acordo, a partir de uma posição que garantisse alguns avanços, segundo sua ótica. Na barricada, o presidente do PDS, senador Jarbas Passarinho, em geral mais conciliador, reagiu: "Atacar a propriedade produtiva é arrasar a feição produtiva do país." Os dois lados terçaram armas e ambos perderam: a emenda do Centrão proibindo a desapropriação de terras produtivas (neste caso, cumprissem ou não a função social) caiu por 237 votos contra 225; em seguida, colocou-se em votação a emenda da Comissão de Sistematização, que dava ensejo à desapropriação das terras que não cumprissem a função social, fossem ou não produtivas. A emenda também sucumbiu com apenas 129 votos a favor e 365 contra (nas duas votações houve três abstenções). Resultado: configurou-se o que se chamava na época de "buraco negro", ou seja, a Constituição acabaria ficando sem o capítulo sobre Reforma Agrária, posto que nenhum dos dois lados obtinha maioria suficiente para aprovar suas teses. Ulysses encerrou a sessão marcando o prazo de 48 horas para o relator apresentar um texto de conciliação, que poderia receber emendas de qualquer agrupamento, como rezava o Regimento.

O resultado da obstinação de certos líderes progressistas em não abrir negociações com o Centrão no tocante à reforma agrária fez com que tivéssemos que nos consolar com uma manobra para evitar o pior. Depois de infindáveis idas e vindas com acordos de curta duração e recusas estrepitosas da UDR, a Constituinte aprovou a proposta conciliadora que tornou insuscetíveis de desapropriação as terras produtivas e as pequenas e médias propriedades e fixou normas para definir o cumprimento da função social da propriedade. Para obter o acordo, o líder Mário Covas, já refeito do problema de saúde que o acometera, aceitou que se votasse a proposta dos partidos progressistas que voltava ao tema da possibilidade de desapropriação de terras produtivas, mas sob uma forma que, pelas regras da Constituinte e do atual Congresso, se denomina "destaque para votação em separado", que tem exigências especiais para ser aprovada.12 No caso concreto, a emenda dos progressistas precisaria de inalcançáveis 280 votos. Não passou. Assim, fixou-se o princípio, que pareceria óbvio, de que terras produtivas (em um país cheio de terras não utilizadas!) não poderiam ser desapropriadas para fins de reforma agrária. Ou seja, a desapropriação teria de ser feita no quadro legal do regime capitalista, que tem como pressuposto a garantia da propriedade privada. Daí a regra, fixada na Carta, de que a desapropriação, quando ocorre, se dá mediante prévia indenização em dinheiro.

No segundo turno das votações houve tentativa de novamente tornar ao tema para excluir qualquer limitação às desapropriações para fins de reforma agrária. A proposta, contudo, sofreu outra derrota, o que levou um jornal a dizer que "o resultado da votação sobre o tema foi a única vitória significativa dos 'conservadores' no segundo turno".

O mandato de Sarney: uma disputa pelo poder

Vista com a perspectiva do tempo, parece claro que a questão "doutrinária", a de saber se o melhor sistema de governo para o país seria o parlamentarismo ou o presidencialismo, pesou menos do que a luta pelo poder na Constituinte. Esta se travou em torno da definição da data das eleições e, conseqüentemente, da duração do mandato do Presidente Sarney, a serem ambas fixadas nas Disposições Transitórias da Constituição. Estabelecer a data das eleições para 1988, como queria parte do Congresso, atenta ao compromisso 1989, como pretendiam partidários do Presidente e o significava encurtar para quatro ou para cinco anos o mandato original de seis anos que a Carta ainda em vigor atribuía a Sarney e, portanto, implicaria a possibilidade de mudar o grupo de comando da República. A disputa em torno da extensão do mandato espelhava também um esforço para acomodar ambições pessoais, grupais e partidárias na corrida eleitoral.

O debate sobre o parlamentarismo era natural. Tratava-se de um dos poucos temas de caráter realmente "constituinte". Nada mais compreensível que, após tanta crítica ao presidencialismo brasileiro, chamado por alguns de "imperial", com as tendências de Tancredo, ou para Palácio do Planalto - centralizadoras do Executivo aguçadas pelos governos do período autoritário-militar, houvesse uma reação dos constituintes na direção da desconcentração do poder. Basta ver o que ocorreu na área tributária, com o fortalecimento do poder local. À força do Executivo se atribuía com freqüência a debilidade dos partidos políticos. Estes eram tidos e havidos por ajuntamentos de pessoas ao redor de interesses (como se isso não fosse da natureza de qualquer partido) sem propósitos ideológicos definidos, relacionando-se com o poder central por intermédio de nomeações, trocas de favores e não raro concessões de facilidades moralmente condenáveis.

À objeção de que com partidos fracos e pouco representativos seria difícil um regime parlamentarista obter êxito, respondia-se que com o presidencialismo imperial jamais teríamos partidos verdadeiros. Esse debate, contudo, por importante que fosse, e era, entusiasmou apenas umas poucas lideranças. Em um primeiro momento de entusiasmo, contando com a força simbólica de Afonso Arinos como um dos defensores do parlamentarismo, a tese venceu na Comissão de Sistematização. Seus opositores, mais realistas, reagiram à derrota, buscando o apoio do Planalto e firmando posição em torno da proposta de presidencialismo com cinco anos de mandato. A sustentação do parlamentarismo se esboroou com maior rapidez do que o esperado. Em votação acalorada, a emenda presidencialista do senador Humberto Lucena venceu, em março de 1988. A emenda final, que resultou da fusão de várias proposições, somente substituía na Constituição a parte relativa ao Poder Executivo, criando um sistema complexo que, embora tendo sido escoimado posteriormente de alguns artigos de inspiração nitidamente parlamentarista, ampliou consideravelmente o Congresso.

No entretempo, houve escaramuças. Entre elas, uma parlamentarismo ainda durante a Presidência Sarney, mantendo-se o mandato de cinco anos, tal como o governador de Goiás, Henrique Santillo (PMDB), propôs em julho de 1987 em convenção do PMDB. Recordo que a certa altura o próprio Presidente Sarney se inclinou nessa direção. A verdade, contudo, é que as tentativas de conciliar os cinco anos com o parlamentarismo não encontraram eco nos líderes peemedebistas. Ulysses Guimarães era presidencialista convicto e não se aferrava tanto ao mandato de quatro seus partidários. Mário Covas, por seu turno, mas ainda mais fortemente com os que desejavam eleições presidenciais em 1988 (o que significava posicionar-se por um mandato de quatro anos já para Sarney). E não estava isolado na posição: a maioria do PMDB "autêntico" o acompanhava, entre os quais, ardoroso, Pimenta da Veiga. Sarney, depois que o relator Bernardo Cabral apresentou sua proposta de "parlamentarismo imediatamente", tentou convencê-lo de outra tese. Testemunhei uma reunião entre o Presidente, o chefe da Casa Civil, Ronaldo Costa Couto, e o consultor-geral da República, Saulo Ramos, no final de agosto de 1987, da qual saí com a impressão de que o relator se havia comprometido com outra proposta e decepcionara o Presidente, apoiando subitamente a mudança de sistema de governo. O Planalto reagiu, como era de prever.

Richa, Sandra Cavalcanti (PFL-RJ), José Fogaça (PMDB-RS), o líder na Câmara, Luiz Henrique, eu próprio e tantos outros nos esforçávamos para encontrar fórmulas que pudessem ampliar a aceitação da tese parlamentarista. Em outubro de 1987 a como período de duração decisão específica sobre o mandato de Sarney para votação posterior, quando se aprovariam as Disposições Transitórias. A partir de janeiro de 1988 a discussão esquentou muito. Criou-se um Comité Pró-Diretas, suprapartidário, para insistir em eleições no final daquele mesmo ano, atribuindo em conseqüência um mandato de quatro anos a Sarney. O governo, mesclando-se às forças do Centrão, somava seus votos. A oposição denunciava o uso de práticas fisiológicas para obter apoio às teses presidencialistas e cincoanistas, como, por exemplo, as concessões de canais de rádio e de retransmissoras de TV que, na época, dependiam exclusivamente do Presidente da República (práticas, a propósito, extintas em nesse terreno, com meu governo, quando ocorreu a introdução de licitação uma mudança radical pública para as concessões, submetidas a regras rígidas e a exigências não apenas em relação ao maior preço oferecido como também a condições técnicas e outras). Em fevereiro, o próprio Presidente, em seu programa semanal de rádio, se insurgiu contra outros aspectos das resoluções dos constituintes (na verdade questões relativas a exigências criadas para que fosse possível a prisão de pessoas em flagrante delito), dizendo que provocariam "o caos, o império do crime e da impunidade" e atribuiu as denúncias de corrupção no governo que circulavam ao propósito de desestabilizá-lo. Falou em ambições descontroladas (aludindo aos eleições) e chegou a dizer que estavam querendo "tocar fogo no Brasil". Ulysses reagiu, considerando as críticas um "ataque à Constituinte” desferido pelo Presidente. O mesmo Ulysses, indo indiretamente ao ponto, ou seja, às manifestações de alguns ministros militares favoráveis às teses do Presidente, criticou duramente a Junta Militar de 1969 - a cujos integrantes, aliás, costumava referir-se como "os três patetas” -, deixando implícito que ocorria algo semelhante. O ministro das Comunicações, António Carlos Magalhães, entrou na liça, criticou o presidente da Constituinte e defendeu as Forças Armadas. A Constituinte em peso (isto é, os presentes ao plenário no dia) aplaudiu em pé Ulysses Guimarães, que fez discurso memorável em defesa da autonomia da Assembléia. Os círculos mais oposicionistas - inclusive a liderança do PMDB - passaram a falar em "ensaio golpista" por parte dos governistas.

Tudo isso mostra que a luta pelo poder ofuscava os debates propriamente constitucionais. As tratativas de encontrar uma solução para o impasse sobre a data das eleições diretas e sobre um acordo que permitisse parlamentarismo com a permanência de Sarney cumprindo mandato de cinco anos continuaram o tempo todo. O governo, à frente seu líder, deputado Carlos Sant'Anna, e com apoio de grande parte do Centrão, apostava nos cinco anos e na vigência do sistema presidencialista. As tentativas de entendimento de última hora com o Planalto não progrediam. O Presidente se queixava da falta de um interlocutor do PMDB. O ministro da Saúde, Luiz Carlos Borges da Silveira, chegou a se demitir depois de declarar apoio à tese do parlamentarismo com Sarney. O grupo de José Richa e Sandra Cavalcanti procurava conciliar. Ulysses se manteve fiel, como de resto Marco Maciel, às convicções presidencialistas. Mário Covas jogou água na fervura. Desmascarava a real natureza das parlamentarismo e trabalho contra." No dia 21 de março de 1988 a Constituinte, aprovando como já vimos a emenda Lucena, resolve: presidencialismo com mandato de cinco anos, 344 votos a favor contra 212 e 3 abstenções. Em junho, na votação das diversas posições e, quanto ao possível acordo entre cinco anos, fulminou, peremptório: "Não apoio, não voto e Disposições Transitórias, o mandato do Presidente Sarney é convalidado para a duração de cinco anos, com votação favorável de 328 parlamentares contra 222 e 3 abstenções.

Minha posição nessa matéria se expressa pela reprodução de duas declarações publicadas pela imprensa: considerava que o fundamental seria aprovar o parlamentarismo, "pois um ano a menos ou a mais para Sarney não tem muita importância"15 reafirmando o que dissera dias antes, ao deixar o gabinete do presidente da Constituinte, após encontro das lideranças do PMDB com o relator Bernardo Cabral: "Importante é alterar o sistema."

Não foi essa, contudo, a preferência dos constituintes, nem o ânimo dos debates se centrou na pergunta "qual o melhor sistema de governo para o país?" mas sim, de forma muito mais conjuntural, "quais as melhores chances que eu ou meu agrupamento temos para ascender ao poder ou para mantermo-nos nele com um ou outro sistema?" Faço injustiça a muitas pessoas; não estou, porém, julgando intenções. Quero apenas mostrar a linha de força da História.

Curiosamente, a adoção do instituto das medidas provisórias com força de lei (MPs) suscitou pouco debate na Constituinte, embora tenha sido um dos pontos que mais polêmica vem causando desde a entrada em vigor da nova Carta. Que me lembre, a sugestão para a inclusão desse instrumento partiu de Ulysses Guimarães, preocupado em substituir os inaceitáveis decretos-leis do regime militar - que tinham prazo fatal para votação pelo Congresso, sob pena de se tornarem leis, e não podiam sofrer qualquer emenda - por algum mecanismo, sob controle do Congresso, que assegurasse a governabilidade. Coube ao deputado Nelson Jobim redigir o texto, inspirado pela Constituição italiana, que utiliza recurso semelhante no sistema parlamentarista.

Ainda quanto aos aspectos políticos da Constituinte, vale a pena mencionar o impasse que ocorreu na definição das funções constitucionais das Forças Armadas. Participei de uma reunião no edifício-sede do Serviço de Processamento de Dados do Senado (Prodasen), que era um dos locais reservados à relatoria da Constituinte, na qual o deputado Bernardo Cabral se comprometeu com as lideranças dos partidos de esquerda a colocar no relatório a ser submetido à Comissão de Sistematização o texto sobre o papel das Forças Armadas tal como definido pela Comissão Arinos. Eu o havia subscrito na comissão especial da Constituinte que tratava da questão dos militares. O texto não previa qualquer possibilidade de convocar as Forças Armadas para garantir a ordem interna, pois elas se restringiriam à defesa nacional. O texto pretendido pela esquerda contrariava acordos feitos com o governo pelo próprio relator. Embora eu tivesse recordado o fato, Bernardo Cabral reafirmou que iria mudar a proposta aceitando a sugestão dos líderes dos partidos de esquerda.

Temiam que houvesse novas intervenções políticas dos militares.

Essa decisão produziu forte crise. Durante reunião do Ministério presidida por Sarney a que estive presente como líder, o ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves, pediu a palavra e lançou uma catilinária contra a Constituinte. Leônidas não mencionou diretamente a questão das funções das Forças Armadas: alertou, em termos duros, para os gastos enormes que várias medidas aprovadas pela Constituinte acarretariam. O que ele queria, porém, era rever - como se reviu o texto sobre o papel dos militares. Coube ao senador José Richa e a mim resolver o impasse, redigindo novo texto depois de conversas na residência oficial do general Leônidas, no Setor Militar Urbano de Brasília, abrindo a possibilidade de os chefes dos três Poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo) convocarem as Forças Armadas em circunstâncias críticas, sempre respeitada a hierarquia que dá o comando supremo ao Presidente da República. A matéria gerou críticas acerbas a mim, pois me coube defendê-la no plenário, sob o fogo da ironia do deputado José Genoino, a relembrar que, na comissão especial sobre o assunto, eu tinha sido favorável à fórmula da Comissão Arinos. Hoje, depois que a realidade do país mostrou a necessidade da presença de tropas federais para afastar dúvidas sobre a licitude eleitoral em certas regiões e da indispensável intervenção das Forças Armadas em rebeliões da Polícia Militar ocorridas em diferentes estados, sem esquecer de ações emergenciais que elas protagonizaram para controlar o tráfico de drogas e de armas, a discussão sobre manter Exército, Marinha e Aeronáutica voltados apenas para a defesa externa do país mostrou o quanto era vã.

Novos partidos e o surgimento dos tucanos 

A leitura deste capítulo, sobretudo da última parte, pode reforçar no leitor a impressão de que nosso sistema partidário é frágil. E é mesmo. Trata-se, entretanto, de uma leitura incompleta. Em outros capítulos voltarei ao tema. Não obstante, convém mostrar desde agora que a realidade política tem complexidade maior, não se restringindo apenas às limitações e imperfeições da legislação partidária.

Em primeiro lugar, é natural (os autores clássicos diriam que é da "natureza" dos partidos, ou da sua "essência" ou que lhes é próprio) lutar pelo poder.17 Nada, portanto, a objetar que as disputas sobre a duração do mandato presidencial ou mesmo a forma de governo encobrissem na Constituinte a busca de poder, pessoal ou grupai. Claro está que se a política se resumisse à ambição pessoal, teríamos, uma vez alcançado o poder, a tirania ou o clientelismo reles de algum(ns) "mandonista(s)".

Mas, como vimos, estavam presentes vários outros cortes na Constituinte: nacionalismo estatizante versus maior atenção às forças de mercado e às realidades de uma sociedade que começava a se adaptar à globalização; estatismo contraposto à maior crença nas forças da sociedade civil; visão de uma sociedade socialista que valoriza mais o coletivo versus respeito às regras que asseguram primazia da propriedade privada; visão social-democrata, que busca garantias para que os direitos sociais sejam efetivamente exercidos dentro de uma economia de mercado contra individualismo liberal, e assim por diante.

A complicação em nosso caso é o que chamei de caráter caleidoscópico dos arranjos partidários: a presença, no mesmo partido, de pessoas e até correntes com visões diversas. orientar politicamente ideológicos, senão opostos, ao menos distintos.

Isso porque o sistema eleitoral e as diferenças regionais que compõem nosso esdrúxulo federalismo levam a acomodações partidárias. Desde Aristóteles, passando por Maquiavel e Montesquieu, chegando a Weber e Michels para aterrissar no mestre francês da ciência política Maurice Duverger ou em Joseph Nye, essa obviedade - os partidos lutam pelo poder e é essa sua função principal - encontra apoio.

Mesmo assim, e com toda a incoerência que essas características implicam, os germes de uma decantação partidária se esboçaram na Constituinte. O PT vinha aos poucos consolidando posições e, com o tempo, foi modificando-as. Após a aprovação da Emenda Constitucional n°25, logo no primeiro ano do governo Sarney, houve ampliação da liberdade partidária. Além do PFL, cuja ruptura com o PDS ocorrera anteriormente, e do PT, os partidos comunistas se reconstituíram e os trabalhistas também. Estes últimos duplicaram-se, formando o PTB e o PDT. Com o tempo outras organizações se foram compondo para acomodar interesses regionais e eleitorais, como o Partido Liberal (PL) ou o que veio a ser o Partido Progressista Brasileiro - PPB, uma continuidade do PDS depois renomeado Partido Progressista (PP) e que nada tem a ver com o Partido Popular fundado por Tancredo Neves e outros em 1979, que em 1982 se fundiria ao PMDB. O sistema partidário brasileiro se foi, portanto, reformulando, mantendo-se o que restou do PMDB como núcleo central (eleitoralmente vigoroso), com o PSDB e o PT à "esquerda" e o PFL e o PDS - na versão Partido Progressista Reformador (PPR), depois PPB e, mais tarde, PP - à "direita". Funcionam ainda, subsidiariamente à esquerda, mas galvanizados pelo PT, os partidos comunistas e seus desdobramentos. O Partido Popular Socialista (PPS) oscila no espectro esquerda/direita entre o PT e o PSDB. O PTB e o PL se situam entre o PMDB e o PP, ficando o PDT como um "radical livre" à esquerda do centro. Dito isto, que consistência tem o espectro esboçado?

Muito pouca, porque os eixos ideológicos atravessam quase todos os partidos. E o Executivo, apesar das limitações introduzidas pela Constituinte, continua com poder de agregação suprapartidário, que torna o binômio governo-oposição outro eixo ordenador dos debates e dos votos congressuais. No relacionamento com o Executivo, os parlamentares se organizam em "frentes parlamentares" englobando várias legendas, saltando inclusive o eixo governo-oposição. Analisarei essas questões em outro capítulo, restando, para os fins deste, fornecer alguns detalhes sobre a construção do PSDB.

Tal como o PT foi a formação partidária que correspondeu a um momento de mobilização de massas urbanas, com apoio das organizações sindicais e das comunidades eclesiais de base, com seus desdobramentos, apoios ideológico organizacionais e braços universitários, o PSDB nasceu como conseqüência da presença de uma classe média urbana, profissional e universitária, mais incorporada às forças modernizadoras da sociedade e da economia. Essas forças se sentiram desamparadas pela fragmentação do MDB, antigo partido da resistência democrática, e pela incapacidade de suas lideranças para imprimir uma linha política afim com os valores republicanos e com a "modernidade". Assim, entre os problemas e os valores que motivaram a formação do PSDB incluíam-se o das novas funções do Estado e sua abrangência, bem como os da eficiência da gestão pública. Estava em jogo também a valorização da democracia e a necessidade de um aggiornamento dos grandes temas do desenvolvimento econômico. A questão da democracia era, até então, secundária no PT, dado o horizonte revolucionário e, portanto, "antidemocracia burguesa” aceito por parte dos militantes e de sua liderança. Coube ao PSDB recolher a herança democratizadora do antigo MDB e renová-la. O contexto atual exige o revigoramento do republicanismo e profunda revisão na organização e no modo de atuação do Estado, para torná-lo capaz de se haver com os desafios dos mercados globalizados e, sobretudo, da sociedade contemporânea.

Não está nos objetivos deste livro relatar a história do PSDB. Apenas dou umas pinceladas, como fiz no caso do PT, para mostrar que, a despeito das aparências de vivermos um quadro político-partidário amorfo e incoerente (e, repito, aspectos disso realmente existem), pouco a pouco se estão criando configurações políticas que expressam correntes de opinião com impacto transformador. Se me referi unicamente a esses dois partidos é porque eles da década de 1990 as posições polares do sendo partidos majoritários no Congresso, não podem governar sem os demais. E tampouco podem governar se não forem capazes de oferecer uma visão e um caminho para a sociedade. Este jogo complexo e profundamente interessante constitui o nervo da política nacional contemporânea.

Desde os seminários de fundação do PSDB, havia a ideia de rever o papel que a sociedade, o Estado e o mercado desempenham num mundo em frenética transformação.18 As conseqüências da economia globalizada em um mundo livre das amarras da guerra fria, e, sobretudo, marcado por novos canais de participação e de comunicação político-social conferem à opinião pública um novo dinamismo. Essas preocupações, embora sem muita clareza, já estavam presentes no ânimo dos fundadores do PSDB. E havia, evidentemente, toda uma série de questões políticas concretas por trás do propósito da formação de um novo partido. De um lado, o PMDB constituía o que denominei de um partido omnibus, em latim, ou seja, de todos, uma frente ampla. (O termo acabou se transformando, na mídia e no Congresso, em "partido-ônibus") Em face da grande salada que era o PMDB, nosso grupo considerava necessário marcar uma diferença ideológica, como expliquei acima. Mas de outro lado havia a importante questão ética, especialmente em estados importantes como São Paulo e Minas, governados pelo PMDB, nos quais pululavam acusações de corrupção governamental. Acredito que tenha sido eu o primeiro a levar à imprensa as articulações em curso, em entrevistas que, por sinal, me causaram grande dor de cabeça. Entre os dirigentes partidários do PMDB, também o deputado Pimenta da Veiga se expôs. De toda forma, evidenciara-se para a mídia a insatisfação de um grupo de esquerda do PMDB - que alguns, brincando, chamavam de "os barbudinhos" - com as características e os rumos do partido. Curiosamente, acabaram não (RJ), António Britto (RS), Márcio Santilli (SP) e Dante de Oliveira (MT) - embora os dois últimos, mais tarde, terminassem entre os tucanos.

Especialmente, no caso, um seminário realizado no Hotel Nacional, em Brasília, em 1988, e outro no Hotel Jeu de Paume, em Paris, no ano seguinte, que definiram os rumos político-ideológicos do partido. Do encontro em Brasília participaram, entre outros, Montoro, Covas, Scalco, Pimenta da Veiga, Richa, os deputados Saulo Queiroz (MS), Jaime Santana (MA), Nelton Friedrich (RS), Cristina Tavares (PE), Célio de Castro (MG), Artur da Távola (RJ), Sigmaringa Seixas (DF) e eu, além de intelectuais como Hélio Jaguaribe, André Lara Resende, Edmar Bacha, Winston Fritsch, Luiz Carlos Bresser-Pereira e vários outros. O segundo encontro foi organizado por Sérgio Motta, engenheiro e empresário, ex-militante de esquerda e grande amigo, que seria meu ministro das Comunicações. Realizou-se em Paris como forma de atrair para uma discussão sobre "Políticas Econômicas e Sociais do Desenvolvimento” dezenove especialistas de dez diferentes países, entre os quais o indiano Amartya Sen, que viria a ser Prêmio Nobel de Economia de 1998. Pelo Brasil, participaram Montoro, Scalco, Friedrich, Pimenta, Serra, o então executivo e futuro ministro Clóvis Carvalho, os economistas José Roberto Mendonça de Barros, Sérgio de Freitas e Winston Fritsch, o sociólogo Vilmar Faria, o filósofo José Arthur Giannotti, o cientista político Bolívar Lamounier, Sérgio Motta e eu.

Ao longo da Constituinte alguns dos parlamentares que fundaram o PSDB já manifestavam inconformismo conservadorismo tradicional misturado com a polaridade entre o com certa visão liberal em economia (que caracterizou o Centrão) e o nacional-estatismo da visão desenvolvimentista dos setores democráticos, fortemente inclinados ao intervencionismo econômico e ao corporativismo. Esses constituintes sentiam-se emparedados e desconfortáveis com tais posições, por não terem modo de expressar uma visão que fosse ao mesmo tempo progressista e não-estatizante. Não desejavam ser confundidos com o Centrão, nem tinham espaço na esquerda tradicional ou na esquerda petista. Esse era notadamente o caso de José Serra e o meu, e mesmo o de Franco Montoro, Euclides Scalco e José Richa.

Partindo dessas inquietações, o PSDB abriu novos caminhos para a política de esquerda e vem agregando a seu redor segmentos significativos da sociedade. Basta olhar a concentração de votos urbanos atribuídos ao PSDB no Sudeste e no Sul e ver a distribuição deles, principalmente nos bairros de classe média, para perceber quais são os setores sociais mais afins com o partido.
Como em qualquer sociedade de massas, a votação partidária "engorda" na época das eleições majoritárias. Os candidatos têm de englobar segmentos das massas despossuídas, sem os quais não há vitória eleitoral possível. Nessas oportunidades o desempenho pessoal do candidato - do líder - conta mais do que a agregação de vários dos interessados no novo partido, por diferentes razões, marchando para o PSDB, como João Herrmann (SP), Miro Teixeira interesses, de esperanças e de votos que o partido é capaz de conseguir, pois o líder pode alcançar um espectro social mais amplo.

Também é perceptível que nas atuais circunstâncias os partidos expressam mais um "estilo" de comportamento político do que uma "ideologia" no sentido tradicional. No caso do PSDB, a frugalidade no uso da máquina pública e o repúdio ao esbanjamento de recursos e à ostentação de poder, somados à presunção de competência técnico-gerencial, constituem sua marca. Seus quadros são, em geral, universitários com boa formação profissional. Esta marca, ou este estilo, contrasta com o "estilo PT", mais obreiro-sindicalista, com uma ostensiva retórica moralista, nem sempre apoiada pela prática dos dirigentes. O PT se caracteriza também por uma conduta "assembleísmo" de inspiração católico-popular ou torna infinita a distância entre as decisões dos "coletivos" e sua implementação. E, não menos importante, por uma tendência ao aparelhamento do Estado por militantes, dando freqüentemente primazia à militância partidária em prejuízo da competência técnico-profissional.

No nível propriamente político-ideológico, no PSDB as aspirações de maior autonomia na sociedade civil convivem com a valorização da solidariedade social. Por isso, o partido vê na ação do governo um instrumento fundamental para a modernização da sociedade (acesso universal à saúde, à educação e ao bem-estar social), mas sempre que possível ela deve se articular com as organizações da sociedade civil.

Os oligopólios e as grandes organizações econômicas, por sua vez, devem respeitar o interesse público. A democratização, em sentido amplo, é, portanto, peça central da ideologia do partido. Ele não separa os avanços da democracia substantiva (que inclui acesso amplo da população aos bens sociais e culturais, bem como melhoria dos padrões de vida) do respeito às regras da lei, sem as quais não há sistemas verdadeiramente democráticos. Resumindo, o PSDB busca um ponto de encontro entre os valores de liberdade, inclusive individual, e a eficácia na ação pública para combater os males da sociedade.

Essa tendência é geral no mundo ocidental. Basta referir os esforços da chamada Terceira Via, do Primeiro-Ministro britânico Tony Blair e do ex-Presidente americano Bill Clinton, ou adaptação da sociedades afetadas pela globalização econômica. Ocorre uma convergência entre o liberalismo social, não-economicista, que respeita os direitos da pessoa humana mas não se esquece dos direitos sociais, e a tradição esquerdista de crítica ao mercado, sem o desejo de substituí-lo pela ação das burocracias estatais.

No caso das economias emergentes, contudo, demanda-se maior ação do Estado. Seria enganoso pensar na transposição pura e simples das práticas renovadas da social-democracia européia ou da democracia social americana para o âmbito local. Como já dizia o poeta, as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá. No caso específico do PSDB, uma ave que na vida real não gorjeia, o tucano, acabou sendo escolhida como símbolo do partido, por ser um pássaro tipicamente brasileiro e uma referência ecológica, expressando a preocupação com os chamados "novos temas" da agenda política.

Texto de Fernando Henrique Cardoso em "A Arte da Política- A História Que Vivi", Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2006, excertos pp. 90-128. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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