10.05.2018

A HISTÓRIA DO CÉREBRO


Neste artigo vou apresentar um breve resumo da História do nosso entendimento sobre a função e o funcionamento do cérebro, destacando os marcos científicos que ainda hoje são aceites. Nesta jornada será dada uma imagem global sobre os princípios básicos de organização e dinâmica cerebral.

A História (conhecida) começa com o médico, cirurgião e filósofo Galeno de Pérgamo, que propôs que o cérebro controla o movimento do corpo. Como é claro, esta noção fundamental é hoje inquestionável. Contudo, Galeno propôs também que os nervos eram como que uns tubos que transportavam um fluído desde o cérebro e medula espinal até à periferia do corpo, uma interpretação errada que permaneceu até final do século XIX. Nesta altura, Camillo Golgi desenvolveu uma técnica para observar neurónios e a sua estrutura, com a qual Ramón y Cajal mostrou pela primeira vez que o tecido neuronal não era uma “rede” contínua, mas uma estrutura composta por neurónios bem individualizados. A ideia do fluído já tinha sido antes questionada por investigações fisiológicas feitas por Luigi Galvani no século XVIII. Galvani descobriu a bioelectricidade ao ter observado que um choque eléctrico induzido num nervo de uma rã, induzia uma contração da pata da rã.

Subsequentemente, já depois da descoberta de Cajal, Emil du Bois-Reymond, Johannes Muller, e Hermann von Helmholtz verificaram que um neurónio podia usar electricidade para controlar a actividade de outros neurónios adjacentes. Mais ainda: este controlo ocorria sempre da mesma forma, ou seja, o resultado de um estímulo eléctrico enviado por um neurónio para outros neurónios poderia ser previsto (tal como na experiência de Galvani). Assim, a ideia do fluído nervoso que permitia ao cérebro controlar o corpo foi substituída pela noção de que os nervos e o próprio cérebro eram constituídos por neurónios, onde um neurónio podia influenciar os neurónios aos quais estava ligado enviando estímulos eléctricos. Esta ideia permanece até aos dias de hoje, tendo-se agora um conhecimento muito mais aprofundado sobre a natureza dos sinais eletroquímicos com que os neurónios comunicam entre si.

Uma outra linha de investigação sobre o cérebro centra-se no seu poder de abstracção e processamento de informação. A Psicologia é o estudo sobre os comportamentos dos humanos e dos animais. A sua História também tem origem na Filosofia Clássica, a qual na altura se preocupava apenas com a mente humana. A importância de estudar animais como modelos para compreender os comportamentos humanos só foi reconhecida após as contribuições de Charles Darwin sobre a continuidade das espécies na Evolução. (Note-se que do ponto de vista fisiológico, os animais já eram usados como modelos para estudar humanos desde Galeno, que para os seus estudos anatómicos dissecou animais, uma vez que no seu tempo era proibido dissecar humanos).

No final do século XVIII, Franz Joseph Gall fez a conexão entre a Psicologia e a Neurobiologia. Este médico propôs três ideias radicais:

Generalização da ideia de Galeno: o cérebro não só controla os movimentos do corpo, como é também o responsável por todos os comportamentos do sujeito. Trata-se actualmente dum princípio fundamental no nosso conhecimento sobre o cérebro.

O Cérebro pode ser dividido em 35 órgãos, cada um responsável pelo controlo de um comportamento específico (esperança, imitação, generosidade, …, seriam atribuídas ao funcionamento de uma parte específica do cérebro. Cada região do cérebro pode “crescer” com o uso, tal como um músculo.

No começo do século XIX, Pierre Flourens testou experimentalmente a segunda ideia de Gall, e concluiu que todas as regiões do cérebro participavam em todos os comportamentos, em contraste com a ideia testada. (As experiências consistiram na remoção de certas regiões de cérebros de animais, de modo a tentar discernir a contribuição de cada uma no comportamento (ou ausência de comportamento) do animal.) Estas experiências de Flourens só vieram dar ainda mais força à já vigorosa reacção cultural contra as ideias de Gall, que rejeitava o reducionismo biológico da mente humana, em particular o facto destas ideias colocarem em causa a noção de alma.

Porém, a meio do século XIX, J. Hughlings Jackson encontrou evidências a favor de uma organização interna cerebral, em contraste com as conclusões de Flourens. J. H. Jackson estudou epilepsia e descobriu que certas funções sensoriais e motoras poderiam ser rastreadas e atribuídas ao funcionamento de diferentes regiões no cérebro. Ainda no mesmo século, como antes referido, Ramón y Cajal identificou os neurónios como as unidades elementares do sistema nervoso. A partir daqui, um novo modelo sobre o funcionamento do cérebro começou a desenvolver-se e a adquirir cada vez mais evidências experimentais: os neurónios estão organizados em estruturas bem definidas e bem organizadas, cada uma responsável por uma função específica (como vamos ver de seguida). Este princípio de organização neuronal é diferente do que foi sugerido por Gall, pois cada grupo de neurónios ao invés de ser responsável por um comportamento, é antes responsável por uma função (processamento visual, controlo motor, memória, …, ver imagem abaixo). A razão pela qual este princípio estrutural não foi descoberto mais cedo deve-se ao facto do mesmo ocorrer numa forma de processamento paralelo. De facto, a maioria dos nossos comportamentos usa em simultâneo múltiplas áreas do cérebro. Além disso, quando uma área cerebral sofre algum tipo de dano, outras podem compensar de forma parcial. Assim, é natural que Flourens tenha tirado conclusões erradas dos seus estudos.

Pierre Paul Broca, médico e anatomista francês (1824-1880), foi o primeiro neurologista a conseguir localizar uma função específica numa localização particular do cérebro. Broca tinha um paciente que era capaz de compreender linguagem, mas incapaz de falar. Depois deste morrer, Paul Broca analisou o cérebro do indivíduo e localizou uma lesão numa área que é agora conhecida por Área de Broca (área no lobo frontal, no hemisfério esquerdo.  O estudo de outros pacientes com o mesmo problema confirmou a relação entre a lesão e a deficiência. Em 1864, Paul Broca anunciou a sua famosa frase: “Nós falamos com o hemisfério esquerdo!” (Na verdade, hoje sabe-se que o hemisfério direito também é importante, nomeadamente na expressão de emoção.) Na década seguinte, Karl Wernicke estudou pacientes com uma deficiência “oposta” àquela que o Paul Broca tinha estudado: os pacientes conseguiam comunicar, mas eram incapaz de compreender linguagem.

Surpreendentemente, Wernicke encontrou uma lesão num sítio diferente do cérebro (Área de Wernicke). Com base nesta descoberta, Wernicke propôs a generalização de que o processamento de diferentes funções cerebrais seria feito de forma distribuída pelo cérebro. Todas as evidências subsequentes vieram confirmar esta ideia, e por isso a “teoria” de Flourens teve que ser abandonada (ainda que, como referi, contra uma forte reacção cultural a favor da noção de alma e, consequentemente, a favor de Flourens).

Broca, Wernicke, e outros depois deles, continuaram a identificar regiões do cérebro de acordo com lesões. Korbinian Brodmann, no entanto, usou uma abordagem diferente. No começo do século XX, ele distinguiu 52 áreas no córtex cerebral humano (corresponde à “camada” externa do cérebro) usando o método da citoarquitectura. Este método introduzido por Brodmann consiste na divisão de áreas com base em variações na estrutura das células nervosas e em características da combinação destas células em camadas. O “mapa” do cérebro de Brodmann tem vindo a ser continuamente actualizado, e é ainda usado hoje em dia. De facto, as áreas anatómicas distinguidas por Brodmann estão em concordância com as distinções feitas através dos estudos de lesões, ou seja, estas áreas não são apenas diferentes do ponto de vista anatómico, como também o são do ponto de vista funcional. Por outras palavras, as áreas em que se pode dividir o cérebro podem ser distinguidas usando diferentes critérios. Investigações mais recentes têm mostrado que o cérebro pode na verdade ser dividido em muito mais que 52 áreas, havendo, além disso, subdivisões adicionais dentro de cada área (cuja função é ainda mais específica).

Em 1958, David H. Hubel e Torsten N. Wiesel adicionaram uma peça chave a este puzzle (e por isso ganharam o Prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1981). Eles estudaram a actividade de neurónios no córtex visual primário de gatos anestesiados: apresentaram estímulos visuais aos olhos do animal, e mediram a actividade dos neurónios usando um eléctrodo inserido no cérebro do gato. Para sua surpresa, os neurónios pareciam não responder. Contudo, um dia notaram que os neurónios “davam sinal” sempre que eles trocavam o slide apresentado aos olhos do gato. Acabaram por compreender que os neurónios em causa respondiam a uma orientação específica de linhas no padrão de luz recebido. Uns neurónios respondiam apenas a linhas horizontais que estivessem no campo visual, outros a linhas verticais, e outros neurónios a outras orientações específicas. A partir daqui, estes e outros neurofisiologistas descobriram muitos outros conjuntos específicos de neurónios que só respondem a certos atributos, como direcção de movimento, cores específicas, e até uma maior especialização como objectos particulares, mãos, e caras (em regiões “superiores” do tecido neuronal, mais “distantes” dos sensores neuronais, nesta “via neuronal”). Dois princípios fundamentais emergiram: neurónios que respondem à mesma característica estão agrupados numa mesma área (de acordo com as descobertas de Broca e Wernicke, mas a um nível ainda mais especializado do que o que se julgava); e existe uma organização hierárquica de especialização pelo menos ao nível dos sistemas sensoriais (isto é, atributos sensoriais mais complexos são processados em regiões mais “distantes” dos receptores sensoriais). Por exemplo, no caso da visão, as primeiras células a processar informação visual distinguem basicamente pontos de luz. Seguindo a rede de ligações destas células, acabamos por encontrar os neurónios que Hubel e Wiesel estudaram, onde são processadas “linhas”.

Continuando a seguir as ligações destas células, acabamos por chegar a células que já só respondem a faces humanas. Naturalmente, o processamento das faces humanas depende das linhas, tal como as linhas dependem dos pontos. Tem-se assim uma construção sequencial (e paralela para vários atributos) da informação visual que é recebida pelos olhos. Estes princípios de organização cerebral são gerais: tanto quanto se sabe, todos os sistemas sensoriais “fragmentam” a informação recebida em unidades elementares, havendo subsequentemente como que uma construção interna. Um problema fundamental em aberto é se existe ou não um grupo de neurónios no “final” que processa o resultado final dessa construção, ou se pelo contrário a nossa percepção emerge de todo esse processamento unitário paralelo. De qualquer das formas, regiões individuais do cérebro processam operações elementares e portanto capacidades mentais como o pensar, a memória, a percepção, e controlo de movimentos são o resultado de “computações” sequenciais e paralelas de muitas regiões cerebrais específicas. Curiosamente, nem mesmo a consciência é unitária. Roger Sperry e Michael Gazzaniga descobriram que quando o corpo caloso (trata-se de uma estrutura que liga os dois hemisférios do cérebro) é removido de um paciente como tratamento para epilepsia, a consciência é dividida em duas! No caso particular de um paciente, este ficou com duas consciências, uma localizada no hemisfério esquerdo, outra no hemisfério direito. Uma vez que o hemisfério esquerdo controla a parte direita do corpo, e o hemisfério direito controla a parte esquerda, Sperry e Gazzaniga observaram, por exemplo, o seu paciente a tentar vestir-se com uma mão, enquanto que com a outra tentava tirar a roupa!

Deixo a História por aqui. Como é evidente, deixei muitas descobertas de fora, em particular no que diz respeito ao estudo dos neurotransmissores e dos genes envolvidos no funcionamento do cérebro, e que tem sido fundamental no desenvolvimento de novos tratamentos para inúmeras desordens neurológicas. Ficará eventualmente para artigos futuros.

Texto de Marinho Lopes disponível em https://sophiaofnature.wordpress.com/2014/12/13/a-historia-do-cerebro/ . Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa. Mantivemos a ortografia original.

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