10.14.2018

VESPÚCIO E O BATISMO DA AMÉRICA


O destino do Brasil começou a ser traçado dois meses após a partida de João da Nova para a Índia, quando D. Manoel armou uma nova expedição com o único objetivo de explorar o território que Cabral avistara um ano antes e averiguar que riquezas ele porventura possuiria. No dia 10 de maio de 1501, uma frota de três caravelas, comandada por Gonçalo Coelho, zarpou de Lisboa em direção ao Brasil. A bordo de um dos navios seguia o florentino Américo Vespúcio - a quem se deve o único relato existente dessa viagem. Vespúcio, que até, poucas semanas antes servia aos Reis Católicos, Fernando e Isabel, de Aragão e Castela, fora recentemente contratado pela Coroa portuguesa provavelmente por recomendação de seu conterrâneo, o banqueiro Bartolomeu Marchioni.

Amigo de reis, ministros, embaixadores e banqueiros, Américo Vespúcio era rico e culto, mas acabaria se revelando também um homem orgulhoso, capaz de sonegar várias informações relativas às suas viagens e de ser conivente com falsificações e versões apócrifas de suas cartas, com o objetivo explícito de "obter alguma fama após a morte". Tal objetivo Vespúcio seria capaz de atingir em proporções muito maiores e mais impactantes do que ele jamais poderia supor.

Nascido em Ognissanti, vilarejo nos arredores de Florença, em 9 de março de 1454, Vespúcio era o terceiro filho de Anastácio Vespúcio (Vespucci, em italiano) e Lisa di Mini. Sua família era de classe alta e dela faziam parte, um bispo e um banqueiro - todos amigos dos poderosos Médici, a família que levara Florença ao apogeu político e financeiro.

Na infância, Vespúcio estudou no Convento de São Marco, em Florença, sob supervisão direta de seu tio, o frade dominicano Giorgio Antonio Vespúcio. Típico homem do Renascimento, sábio helenista e latinista, frade Giorgio também foi o professor particular de Piero Soderini. Embora nascido em berço de ouro, Américo Vespúcio teria, de início, conhecido apenas como parente de Simonetta Vespúcio, a belíssima adolescente que serviu de modelo para o quadro "O Nascimento de Vênus", pintado por Botticelli em 1484. Há indícios de que o próprio Lorenzo de Médici foi apaixonado por Simonetta, nobre que iria se tornar o gonfaloneiro (um dos principais mandatários) da República de Florença e que, desde os bancos da escola, era amigo íntimo de Vespúcio.

Aos 17 anos, em 1471, Américo começou a trabalhar como contador na casa comercial e bancária de Lorenzo di Pier Francesco de Médici. Embora entre 1478 e 18?? Américo tivesse sido secretário de seu tio, Guidanronio Vespúcio, que era embaixador de Florença junto à corte de Luís XII (soberano que Américo conheceu pessoalmente), seu trabalho no banco dos Médici era basicamente burocrático. Em 1491., após vinte anos de serviços que considerava tediosos, Vespúcio foi enviado para Sevilha, na Espanha, para ser um dos executivos da empresa dirigida por Juanoto Berardi, sócio dos Médici.

Foi após sua chegada à Espanha, em 1491, que Vespúcio começou a se tornar um dos personagens mais controversos da história dos descobrimentos. Ele tinha quase 40 anos de idade. Seu novo patrão, o banqueiro e armador Juanoto Berardi, era um dos principais financiadores das viagens marítimas patrocinadas pelos Reis Católicos. Berardi possivelmente fora o responsável pela armação da esquadra com a qual Colombo descobrira a América em 1492. No ano seguinte, se tornou agente e procurador dos negócios de Colombo junto à corte espanhola.

Foi nessa condição que, em abril de 1495, Berardi se comprometeu a entregar aos reis Fernando e Isabel, 12 navios - entre os quais a nau e as duas caravelas com as quais Cristóvão Colombo faria sua terceira viagem ao Novo Mundo, prevista para zarpar no início de 1497. Mas Berardi morreu em dezembro de 1495, e a responsabilidade de entregar uma dúzia de embarcações recaiu sobre Vespúcio. Só no início de 1498 Vespúcio conseguiu aprontar os navios - tornando-se, desta forma, amigo, colaborador e um dos financiadores de Colombo.

Em maio de 1498, Colombo partiu da Espanha e, dois meses depois, chegou pela primeira vez à América do Sul. Um ano após a partida de Colombo, o próprio Vespúcio decidiu se fazer ao mar. Numa carta posterior, ele iria revelar que estava cansado de notas cambiais e de trâmites burocráticos. Aos 45 anos, achava que novos ares e um pouco de aventura lhe fariam bem. Por isso, embarcou na frota comandada pelo truculento Alonso de Hojeda - que provavelmente ele mesmo também ajudara a financiar - e zarpou de Cadiz em 18 de maio de 1499. Daquele dia em diante, novos ares e aventura não mais lhe fariam falta.

Aparentemente, Vespúcio horrorizou-se com a brutalidade de Hojeda e decidiu se separar da expedição.

Desembarcou na ilha de Hispaniola (hoje Haiti/Santo Domingo), no Caribe, após ter visitado o golfo de Pária e o litoral da Venezuela. A bordo de outro navio, retornou à Espanha, onde chegou nos primeiros dias de junho de 1500, antecipando-se em um mês ao retorno de Hojeda.

No dia 18 de julho de 1 500, em Sevilha, Vespúcio redigiu uma carta de 15 páginas endereçada a seu patrão, Lorenzo de Médici. Nela, narrou minuciosamente sua viagem, omitindo o nome de Hojeda e se auto-intitulando o comandante da expedição. Era a primeira das várias cartas e dos muitos exageros que, em breve, fariam a fama do Vespúcio. Em fins de 1500, uma cópia dessa correspondência parece ter chegado ao rei D. Manoel, de Portugal, talvez por intermédio do banqueiro Bartolomeu Marchioni. Em janeiro de 1501, D. Manoel enviou a Sevilha o florentino Giuliano del Giocondo, funcionário graduado de Marchioni, com a missão de contratar Vespúcio.

É provável que o orgulhoso D. Manoel estivesse tão interessado em requisitar os serviços de Vespúcio pelo fato de que, naquele momento, havia grande carência de navegadores experientes em Portugal. Quase todos se encontravam envolvidos em outras missões: Cabral ainda estava em alto-mar, retornando da Índia, para onde João da Nova acabara de zarpar. Dali a poucos dias, Gaspar Corte Real partiria outra vez em direção à América do Norte, deixando Lisboa em 20 de maio de 1501, para seguir a mesma rota que, um ano antes, já o levara ao litoral do Canadá.

Vasco da Gama - condecorado como Almirante das Índias - se preparava para retornar ao Oriente, chefiando a chamada "Esquadra da Vingança", que iria zarpar de Lisboa em 15 de fevereiro de 1502. E o grande Bartolomeu Dias, que em 1488 fora o primeiro navegador a dobrar o cabo da Boa Esperança, estava morto - embora disto D. Manoel ainda não tivesse conhecimento.

Américo Vespúcio chegou a Lisboa em fevereiro de 1501. Manteve um breve contato com o rei D. Manoel e, na segunda semana de maio, partiu para o Brasil. Esta viagem não só eternizaria seu nome como iria provocar uma, grande revolução nos conceitos geográficos da Europa.

Com Vespúcio a bordo - provavelmente como cosmógrafo ou, talvez, como piloto - a esquadra comandada por Gonçalo Coelho zarpou rumo às Canárias. Dali, seguiu em direção à baía de Bezeguiche (hoje Dakar), em frente ao arquipélago de Cabo Verde, na África, onde chegou no dia 2 de junho. Lá, a frota deparou com o navio de Diogo Dias, irmão de Bartolomeu Dias, que, um ano antes, se desgarrara da armada de Cabral, fora parar na Etiópia e agora estava retornando para Portugal com apenas seis homens a bordo. No dia seguinte, por uma extraordinária coincidência, também chegavam àquele mesmo porto africano, vindos de Calicute, dois navios da esquadra de Cabral. Durante 13 dias, as tripulações desses seis navios portugueses permaneceram em Bezeguiche, no Senegal. Os homens de Cabral e de Diogo Dias descansavam das fadigas do mar enquanto os de Gonçalo Coelho abasteciam os navios de água e lenha para a viagem até Brasil.Ao longo de duas semanas, os capitães puderam trocar muitas informações.

As notícias que compartilharam lhes deram a certeza de que as terras descobertas na margem oeste do Atlântico deviam fazer parte de um continente. Afinal, Pouco antes disso, em companhia de Hojeda, Américo Vespúcio estivera nas Guianas, na Venezuela e no Caribe. Não restavam dúvidas de que aquela vasta extensão de terra se prolongava desde 4º de latitude Norte até pelo menos 15" de latitude Sul - deveria estar interligada. Começou a nascer o conceito de um Novo Mundo: as terras que Colombo fora não eram a Ásia, mas sim novo e desconhecido continente.

Para Vespúcio, porém, mais importante foi a conclusão desa nova visão da geografia planetária - da qual ele se aproveitaria amplamente - foi o fato de que, durante aqueles dias memoráveis em Bezeguiche, ele pôde obter também informações detalhadas sobre a Índia e seu rico comércio de especiarias. Embora agora trabalhasse para o rei D. Manoel, Vespúcio se mantinha extremamente leal ao seu patrão original, Lorenzo de Médici. E nada interessava mais aos Médici e a Florença do que o comércio de pimenta e canela - cujo monopólio estava nas mãos de Veneza, eterna rival e única república européia que podia negociar diretamente com os turcos de Constantinopla (obtendo, assim, lucros extraordinários com a distribuição das especiarias para o resto da Europa). Fora justamente este o motivo que levara os banqueiros florentinos e genoveses a financiar as expedições ultramarinas dos portugueses, cujo objetivo era atingir a Índia por mar e furar o bloqueio estabelecido pela aliança entre turcos e venezianos.

Vespúcio obteve informações preciosas não da boca dos capitães portugueses, mas através de um dos mais in-trigantes personagens da história dos descobrimentos: um certo Gaspar da Gama, também chamado de Gaspar da Índia. Judeu polonês de caráter errante, Gaspar vivera por anos em Alexandria, no Egito, e chegara à Índia por volta de 1470. Em setembro de 1498, ao visitar um dos navios de Vasco da Gama -quando eles estavam ancorados na ilha de Angediva, próximo a Calicute -, foi considerado um espião a serviço dos mercadores árabes e acabou capturado pelos portugueses. Levado para Lisboa, converteu-se ao cristianismo, adotou o sobrenome do poderoso pa-drinho e passou a circular pela corte de D. Manoel. Em março de 1500, embarcou como intérprete na frota de Cabral - com o qual estava, agora, retornando da Índia.

Depois de longas conversações com Gaspar da Gama, Vespúcio escreveu uma carta de cerca de dez páginas para Lorenzo de Médici. Datou-a de 14 de junho de 1501 e, por um dos navios da frota de Cabral, a enviou para Portugal, de onde ela foi remetida para Florença. No dia seguinte, 15 de junho, enquanto Cabral zarpava para Lisboa, a frota de Gonçalo Coelho partia para o Brasil.

A PRIMEIRA EXPEDIÇÃO

Por mais de dois meses, os navios de Gonçalo Coelho enfrentaram primeiro as enervantes calmarias equatoriais do Atlântico e, depois, "o pior tempo que jamais um viajante experimentou, com muitos aguaceiros, turbilhões e tempestades". A tormenta durou mais de dez dias. Então, a 17 de agosto de 1501, quando comida, lenha e água começavam a escassear, a expedição avistou terra.

A frota levara 7 dias para fazer o mesmo trajeto que, um ano e meio antes, Pinzón percorrera em apenas 3.

Apesar de Vespúcio afirmar que as três caravelas ancoraram num lugar localizado a 5" de latitude ,Sul - o que remete à foz do rio Mossoró, na praia hoje chamada Areias Alvas, quase na divisa entre Rio Grande do Norte e Ceará -, o local mais provável do desembarque parece ter sido a Praia dos Marcos, no Rio Grande do Norte, cerca de 150 km ao sul de Areias Alvas.

Ao desembarcar nessa praia de ondas fortes e areia fofa, os portugueses não viram ninguém. Mas, na manhã do dia seguinte, enquanto os marinheiros enchiam os tonéis de água fresca, colhiam palmitos e cortavam lenha, um grupo de indígenas surgiu no alto de um pequeno morro, próximo à praia. Embora os marujos lhes oferecessem guizos e espelhos, os nativos se recusaram a manter qualquer contato - exatamente como haviam feitos os 44 Potiguar encontrados por Pinzón. No dia 19 de agosto, dois marinheiros obtiveram permissão para descer à terra, penetrar na mata e negociar com os nativos. Gonçalo Coelho se comprometeu a aguardá-los durante cinco dias.

Seis dias se passaram e nenhum dos homens retornou aos navios. Então, na manhã de 24 de agosto - quando a frota já se encontrava ancorada há uma semana - a praia se encheu de mulheres. Gonçalo Coelho enviou à terra dois batéis com alguns homens a bordo. Um grumete desembarcou e foi logo cercado pelas nativas, que "o apalpavam e o examinavam com grande curiosidade". Quando ele estava no meio delas, uma mulher desceu do monte com um tacape nas mãos, aproximou-se do jovem marinheiro e, pelas costas, lhe desferiu um golpe na nuca.

"Então", diz Vespúcio, "as outras mulheres imediatamente o arrastaram pelos pés para o monte, ao mesmo tempo em que os homens, que estavam escondidos, se, precipitavam para a praia armados de arcos, cravando-nos de setas, pondo em tal confusão a nossa gente, que estava com os batéis encalhados na areia, que ninguém acertava lançar mão das armas, devido às flechas que choviam sobre, os barcos. Disparamos quatro tiros de bombarda, que não acertaram, mas cujo estrondo os fez fugir para o monte, onde já estavam as mulheres despedaçando o cristão e, enquanto o assavam numa grande fogueira, mostravam-nos seus membros decepados, devorando-os, enquanto os homens faziam sinais, dando a entender que tinham morto e devorado os outros dois cristãos."

Esse trecho - incluído na famosa "Lettera", que Vespúcio escreveria em Lisboa em 4 de setembro de 1504, enviando-a para seu amigo de infância Piero Soderini, um dos principais mandatários de Florença - se constituiria na primeira descrição da antropofagia dos nativos da América na qual a vítima era um europeu. Como é fácil supor, a narrativa causou profundo impacto na Europa e transformou a carta num grande sucesso editorial.

Apesar da indignação de seus subordinados - entre eles Vespúcio -, Gonçalo Coelho não permitiu retaliações aos indígenas e determinou que a frota zarpasse imediatamente, dando continuidade à exploração da costa em direção ao sul. Com o calendário litúrgico nas mãos, a expedição foi batizando todos os acidentes geográficos do litoral brasileiro pelos quais cruzou. O primeiro deles foi o cabo de Santo Agostinho, próximo ao Recife, avistado em 28 de agosto, dia consagrado a este santo. Em 4 de outubro de 1501, a expedição chegou à foz de um grande rio, que, pelo mesmo motivo, batizou de São Francisco. Ali, na atual fronteira entre os estados de Sergipe e Alagoas, os navios teriam permanecido ancorados por quase um mês, sem que até hoje se possa saber o motivo de uma parada tão longa.

Deixando o São Francisco para trás em 6 de outubro, em companhia de três indígenas que decidiram juntar-se à expedição, a frota de Gonçalo Coelho chegou, em 1 de novembro de 1501, à baía que batizou de Todos os Santos. Lá, os marinheiros estabeleceram relações amistosas com os nativos. O próprio Vespúcio diria mais tarde, em uma de suas cartas, que, durante essa estadia, havia "comido e dormido durante 27 dias" com "os naturais da terra". Antes de partir, os portugueses compraram dez cativos que os nativos estavam se preparando para matar e comer em ritual antropofágico. Na volta à Europa, os venderam como escravos.

A próxima parada da frota foi na baía de Cabrália, próximo a Porto Seguro, onde, um ano e oito meses antes o Brasil fora avistado pela primeira vez pelos portugueses. Na praia, assinalada com uma cruz, Gonçalo Coelho recolheu os dois degredados que haviam sido deixados por Cabral. Durante quase dois anos, os Tupiniquim os haviam tratado como hóspedes. De um desses homens, Afonso Ribeiro, Vespúcio iria obter uma descrição detalhada da vida cotidiana e dos hábitos dos nativos do Brasil. Tal depoimento, somado à sua experiência pessoal, lhe serviria de base para a redação de duas cartas.

Em Porto Seguro, naquele início de dezembro, a frota de Gonçalo Coelho também recolheu toras de pau-brasil - a árvore que, em breve, iria definir o nome e o futuro daquele território. Seguindo sua jornada para o sul, as três caravelas chegaram a um local esplendoroso no primeiro dia de 1502. Era uma ampla "boca de mar", cercada de vastas montanhas recobertas de mata luxuriante. Julgando se tratar da foz de um rio, os exploradores batizaram o lugar com o nome de Rio de Janeiro. Um ano mais tarde, em sua segunda viagem ao Brasil, Vespúcio voltaria ao local que os nativos chamavam de Guanabara - e ficou tão extasiado com sua beleza quanto da primeira vez.

Cinco dias depois de avistar o Rio de Janeiro, a frota ancorou em outra bela enseada. Como 6 de janeiro é dia de Reis, batizou-a de Angra dos Reis, nome que até hoje se mantém. Os dias estavam quentes, o mar tranqüilo e chuvas eventuais refrescavam os homens e realçavam os perfumes exalados pela mata. "Algumas vezes me extasiei com os odores das árvores e das flores e com os sabores dessas frutas e raízes, tanto que pensava comigo estar perto do Paraíso Terrestre", escreveu Vespúcio. "E o que direi da quantidade de pássaros, das cores das suas plumagens e cantos, quantos são e de quanta beleza. Não quero me estender nisto, pois duvido que me deem crédito.

Em fins de janeiro, as caravelas entraram em uma baía ao fundo da qual existia uma ilha, baixa e recoberta por mata muito fechada. Por motivo ainda desconhecido, tal ilha foi chamada de Cananéia, rompendo com o esquema de batizar os acidentes geográficos com o nome do dia santo. Durante essa passagem por Cananéia no verão de 1502, Gonçalo Coelho teria abandonado ali o mais enigmático degredado da história do Brasil: o homem que, 25 anos mais tarde, ao ser encontrado pela expedição do espanhol Diego Garcia, passaria a ser conhecido como O Bacharel de Cananéia.

Cananéia, localizada no litoral sul de São Paulo, iria se tornar um dos locais mais importantes do Brasil na primeira metade do século XVI, e não apenas por causa da presença do Bacharel. Afinal, era exatamente ali que passava a linha estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas - embora isso os portugueses ainda não soubessem.

Mas, com certeza, os integrantes da expedição de Gonçalo Coelho já tinham notado que, a partir de Cabo Frio (a uns 200 km ao norte da cidade do Rio de Janeiro) a costa brasileira começava a se inclinar nitidamente para sudoeste. Esse recuo em direção ao poente deve ter sido observado com preocupação, pois deixava claro que - de acordo com as estipulações de Tordesilhas - aquele vasto território não estaria dentro das possessões da Coroa lusa, mas na zona pertencente à Espanha.

Ao zarpar de Cananéia, em 15 de fevereiro de 1502, com água, mantimentos e lenha suficientes para seis meses de navegação, Gonçalo Coelho e seus comandados pareciam estar conscientes deste fato. Tanto é que, embora seguisse navegando para o sul, a frota foi, se afastando do litoral, guinando para leste - em direção à África. Mas a rota seguida a partir de então continua sendo um mistério. Segundo Vespúcio, ao distanciar-se da costa, as caravelas navegaram para o sudeste por 49 dias, percorrendo mais de cinco mil quilômetros em alto-mar, sem avistar terra.

Então, a 3 de abril de 1502, despencou uma terrível tempestade austral. Os marinheiros tiveram que arriar rapidamente todas as velas. Com os mastros nus, as caravelas balançaram sobre vagalhões funestos durante 72 intermináveis horas. Os ventos eram gélidos e as noites muito longas. Segundo Vespúcio, em 6 de abril a escuridão perdurou por 15 horas. A essa altura, a frota estava em meio ao oceano Atlântico, a 53° de latitude Sul - equivalente à localização da atual cidade de Punta Arenas, na Patagônia chilena, nos confins do continente americano.

Na manhã de 7 de abril, em meio a um nevoeiro denso, a expedição julgou ter visto terra. "Era uma costa brava", escreveu Vespúcio, "e nela não avistamos porro nem gente. Mas era tanto o frio que ninguém da frota o podia remediar nem suportá-lo, de modo que, vendo-nos em tanto perigo e tormenta que não enxergavam os navios uns aos outros, pelo grande mar que fazia e pela grande cerração, decidimos partir sem demora a caminho de Portugal."

Não se sabe que terra é essa que Vespúcio disse ter avistado. Alguns historiadores supõem que fossem as ilhas Geórgias do Sul, que ficam a 54" de latitude Sul, a uns 1.000 km a leste das Malvinas. O mais provável, porém, é que Vespúcio e seus homens tenham avistado apenas um iceberg. De fato, naquelas latitudes, flutuam imensos blocos de gelo, em cima dos quais pousam albatrozes e gaivotas, ressaltando a impressão de que se trata de ilhas.

De todo modo, a esquadra logo guinou para nordeste. Depois de navegar por pouco mais de um mês, os navios chegaram a Serra Leoa, na costa ocidental da África, no dia 10 de maio de 1502 - um ano exato após a partida de Lisboa. Depois de 15 dias neste porto africano - onde uma das caravelas, infestada pelo caruncho (inseto similar ao cupim), foi queimada -, os dois navios restantes partiram para os Açores. No dia 22 de julho de 1502, a primeira expedição enviada ao Brasil enfim entrava no porto de Lisboa. Depois de 14 meses de viagem, as noticias que ela trazia eram decepcionantes: na terra descoberta por Cabral, nem ouro nem especiarias haviam sido encontrados. A Coroa logo encontraria uma outra maneira de explorar aquele vasto território ocidental.

No início de agosto de 1502, uns dez dias após ter desembarcado em Lisboa, Américo Vespúcio tornou a escrever para Lorenzo de Médici narrando os acontecimentos relativos à viagem que fízera sob o comando de Gonçalo Coelho (cujo nome, como de hábito, não citou uma única vez). A carta, de apenas cinco páginas, estava repleta de insinuações sobre a natureza paradisíaca das terras recém-visitadas e fazia uma descrição vivaz, mas comedida, dos espantosos costumes de seus habitantes nativos. Fluente e elegante, a narrativa há de ter entretido o refinado patrão de Vespúcio. Depois de circular entre os Médici, a carta foi arquivada no Códice Strozziano, na biblioteca de Florença, e lá permaneceu esquecida por quase três séculos.

Em agosto de 1504, porém, um dos primeiros grandes sucessos da históría da líteratura começou a ser vendido nas feiras e praças de Augsburgo, na Alemanha --e, logo a seguir, nos mercados e nas portas das igrejas de Paris e de Amsterdã, de Roma, de Sevílha e até de Praga.

Era um panfleto de 15 páginas, escrito em latim, incrementado por algumas ilustrações e com um título bastante sugestivo: "Mundus Novus". Seu autor chamava-se Américo Vespúcio. A narrativa vinha em forma de carta e seu destinatário era Lorenzo di Pier Francesco de Médici.

O texto de "Mundus Novus" se concentrava nos aspectos mais sensacionalistas da viagem de Vespúcio. A vida sexual dos indígenas era narrada com profusão de detalhes libidinosos; os rituais tétricos do banquete antropofágico vinham descritos com perturbadora minúcia. Em cada parágrafo havia a evidente preocupação de ressaltar a exuberância daquela parte do mundo, a estranheza de seus animais, o tamanho descomunal de suas árvores, a lascívia e a crueldade de seus habitantes humanos.

O grande interesse que a recente descoberta das novas terras despertava na Europa somado ao tom escandaloso da narrativa transformaram "Mundus Novus" num sucesso editorial instantâneo. Só no ano de seu lançamento, a carta atribuída a Vespúcio teve 12 edições consecutivas, totalizando cerca de quatro mil exemplares vendidos - números impressionantes para o século XVI. Antes do fim de 1505, o livro já havia sido traduzido para o alemão, o francês, o italiano, o holandês, o espanhol e o tcheco. Cada edição era enriquecida por novas ilustrações encomendadas pelos editores. As primeiras imagens da América publicadas na Europa foram as gravuras feitas para estimular a vendagem do panfleto assinado por Vespúcio.

E, no entanto, "Mundus Novus" era uma falsificação feita a partir da carta escrita em Lisboa, em agosto de 1502. A mera comparação entre a narrativa original e o livreto posto à venda em toda a Europa deixa claro que "Mundus Novus" era uma versão exagerada da carta sóbria e acurada que Vespúcio enviara para Lorenzo de Médici. Escrita em latim vulgar, repleta de contradições geográficas e de erros náuticos primários, "Mundus Novus" fora publicada com o objetivo de atingir um público interessado em obter informações sobre um mundo misterioso e até então desconhecido. Um novo mundo.

Até que ponto Vespúcio esteve diretamente envolvido com a fraude é uma questão que jamais foi e provavelmente nunca será elucidada. Mas como ele estava vivo durante o auge do sucesso do livreto, pode-se supor que tenha sido no mínimo omisso, se não de todo conivente, com os exageros publicados em seu nome - os quais não os desmentiu. Como foi justamente a partir do sucesso de "Mundus Novus" que o nome de Vespúcio começou a se tornar conhecido em toda a Europa letrada, é pouco provável que os exageros lhe tenham desagradado.

Ainda assim, apesar de "Mundus Novus" ter ajudado a propagar a ideia de que as terras descobertas por Colombo não eram parte da Ásia mas um novo continente, não foi esta a carta que acabou fazendo com que o "Novo Mundo" fosse batizado com o nome de Américo Vespúcio. Dois anos ainda seriam necessários antes que Vespúcio atingisse o objetivo de "obter alguma fama após a morte".

O NOVO MUNDO GANHA UM NOVO NOME

No dia 10 de junho de 1503, 11 meses depois de ter retornado a Portugal, Américo Vespúcio voltou a partir para o Brasil - e outra vez em companhia de Gonçalo Coelho, o comandante com o qual ele havia rompido. A frota era formada por seis caravelas e levava como pilotos João Lopes Carvalho e João de Lisboa, homens que, mais tarde, iriam desempenhar papel importante na história do Brasil. Zarpando de Lisboa, os seis navios seguiram direto para Santiago, uma das ilhas do Cabo Verde, escala normal de quase todas as expedições.

Dali, por determinação de Gonçalo Coelho, a frota navegou para sudeste, em direção a Serra Leoa, para escapar das calmarias equatoriais do Atlântico (nas quais, um ano antes, a expedição anterior ficara retida por quase dois meses). Embora duramente criticada por Vespúcio, a tática deu certo, pois, no dia 10 de agosto de 1503, menos de um mês depois de zarpar de Serra Leoa no rumo do Brasil, os navios depararam com uma ilha, "coisa de grande altura no meio do mar, verdadeira maravilha da natureza". Tal ilha foi batizada de São Lourenço.

No ano seguinte, porém, passaria a ser chamada de Fernando de Noronha - em homenagem ao chefe do consórcio que havia arrendado o Brasil, obtendo o monopólio do comércio de pau-brasil, e que financiara essa expedição.

Ao se aproximar da ilha, o navio de Gonçalo Coelho se chocou contra um banco de recifes e naufragou. A tripulação se salvou, mas a caravela foi ao fundo. Depois de transferir cerca de 20 sobreviventes para o navio comandado por Vespúcio, Gonçalo Coelho ordenou que ele fosse procurar um "bom porto" na ilha - no qual, mais tarde, o restante da frota deveria se reencontrar, depois que Coelho tivesse recuperado o que ainda fosse possível salvar da caravela naufragada.

Por uma semana Vespúcio permaneceu ancorado sozinho em Fernando de Noronha - que ele descreveu como sendo "cheia de aves marinhas e terrestres, inumeráveis e tão familiares que se deixavam apanhar à mão".Só no oitavo dia uma das caravelas da frota chegou ao porto que Vespúcio encontrara - e ainda assim apenas para informar que Gonçalo Coelho e os outros três navios já haviam zarpado em direção ao litoral do Brasil.

Vespúcio partiu no mesmo rumo, indignado por ter sido deixado para trás. Quatro dias mais tarde, chegou ao cabo de Santo Agostinho (na atual costa de Pernambuco). Dali, seguiu costeando o litoral até entrar na baía de Todos os Santos, que ele e Coelho haviam descoberto um ano antes e onde, supostamente, toda a frota deveria se reencontrar. "Mas esperamos ali bem dois meses e quinze dias e nada aconteceu", relatou Vespúcio. Então, julgando que os demais navios haviam se perdido "pela soberba e loucura de nosso capitão", o florentino decidiu assumir o comando da expedição e dar continuidade à missão da qual ela fora incumbida. Assim, em fins de novembro de 1503, as duas caravelas zarparam para o sul. Em maio de 1504 chegaram a Cabo Frio, no atual estado do Rio de Janeiro.

Ali, a expedição permaneceu durante cinco meses, "erguendo uma fortaleza e carregando os navios com pau-brasil".1 Apesar de Vespúcio ter usado o termo "fortaleza", tratava-se apenas de uma feitoria: simples paliçada erguida em torno de um casebre e de algumas roças. Foi o primeiro estabelecimento lusitano no Brasil - um posto avançado da civilização européia em meio à floresta tropical.

Segundo o relato de Vespúcio, 24 homens foram deixados ali, presumivelmente os integrantes da caravela de Gonçalo Coelho que Vespúcio recolhera em Fernando de Noronha. Com eles ficaram 12 bombardas e mantimentos para seis meses.

É possível que, no instante em que Vespúcio estava em Cabo Frio, seu desafeto, Gonçalo Coelho, estivesse poucos quilômetros mais ao sul, fundeado na baía de Guanabara. Lá, o comandante da frota também teria decidido construir uma feitoria, já que, a partir de 1504, a expressão "carioca" - que em tupi significa "casa de branco" - passaria a ser associada à baía de Guanabara.

Esse estabelecimento teria um destino mais auspicioso do que a feitoria de Vespúcio: ele sobreviveu até 1517, quando o administrador e navegante Cristóvão Jaques decidiu transferi-lo para a ilha de Itamaracá, em Pernambuco.

Enquanto o rancho fortificado de Cabo Frio estava sendo construído, Vespúcio organizou uma expedição para explorar a região. Com uma tropa de 30 homens, ele percorreu 40 léguas (uns 250 km), provavelmente pelo vale do rio São João, até deparar com a barreira da serra dos Órgãos. A marcha durou cerca de um mês. Foi a primeira incursão dos europeus pelo interior do Brasil - mas, além de "broncas tribos nômades"12 vivendo em meio a uma natureza exuberante, Vespúcio não encontrou nada de valor. Então, julgando ter "pacificado toda a gente daquela terra", ele retornou ao porto onde seus navios estavam ancorados. Deixando para trás o primeiro povoado habitado por europeus no Brasil, ele partiu de volta para Portugal em abril de 1504.

Em 18 de junho - um ano e oito dias depois de ter deixado Lisboa -, Américo Vespucio estava de volta à Europa. Como de hábito, tratou de escrever para os nobres florentinos relatando suas experiências no além-mar. Desta vez, o destinatário da carta era Piero Soderini, um dos mandatários de Florença e amigo de infância de Vespúcio. A correspondência, datada de 4 de setembro de 1504, ficara conhecida como "Lettera a Soderini", ou simplesmente "Lettera".

Dois anos mais tarde, ao ser publicada em forma de folhetim, ela desfrutaria de um sucesso ainda maior do que o de "Mundus Novus". Seu êxito foi tão extraordinário que as terras descobertas por Colombo, e por outros exploradores que se seguiram, passaram a ser chamadas de América.

Ironicamente, a carta que eternizou o nome de Vespúcio seria também responsável por uma avalanche de críticas ao seu comportamento - pelo menos nos círculos eruditos.

Afinal, alguns anos após a morte de Vespúcio, a análise detalhada da "Lettera" faria com que ele passasse a ser acusado de charlatão. O manuscrito original da carta para Soderini nunca foí encontrado. O texto mais próxímo da versão original é o folhetim chamado "Lettera di Arrerilo Vey de Américo Vespúcio sobre as Ilhas Recentemente Achadas em suas Quatro Viagens". Desde o título, o livreto fora escrito para provar que Vespúcio havia feito não três, mas quatro viagens ao Novo Mundo.

O mais desconcertante é que a "nova" viagem descrita pela "Lettera" teria sido feita antes das três expedições nas quais a presença de Vespúcio está comprovada por uma série de documentos (ou seja: a viagem com Alonso de Hojeda em 1499 e as duas expedições com Gonçalo Coelho, em 1501 e 1503). De acordo com a "Lettera", Vespúcio teria partido de Cadiz em maio de 1497, e, após navegar por 18 meses, descoberto os litorais de Honduras, México, parte da planície de Yucatan e o sul da Flórida. Ao retornar para a Espanha, em outubro de 1498, teria se tornado, assim, o primeiro europeu a percorrer vastas extensões da América Central e da América do Norte.

Mas hoje está provado que tal viagem nunca se realizou, já que nenhum outro documento e nenhum outro cronista se refere a ela. Américo Vespúcio - ou alguém interessado em glorificar seu nome e enriquecer com a venda dos panfletos que narravam tantas peripécias - simplesmente a inventou, misturando informações tiradas dos diários de Colombo, do livro de Marco Polo e de outras cartas do próprio Vespúcio. Ao contrário de "Mundus Novus", porém, as mentiras publicadas na "Lettera" eram tão flagrantes que a farsa parecia destinada ao fracasso. Tanto é que o folhetim publicado em Florença em julho de 1506 vendeu pouco e não passou da primeira edição. No resto da Europa, porém, aconteceria exatamente o contrário.

Tudo começou na França. Em fins de 1505, surgira no vilarejo de Saint-Dié, na região dos Vosges, entre Nancy e Estrasburgo, uma pequena academia de eruditos chamada Ginásio Vosgense. Influenciados pelo espírito do Renascimento e contando com o generoso patrocínio do mecenas Renato II, duque de Lorena, um grupo de intelectuais,liderado por um certo Vautrin Lud, decidiu se dedicar ao estudo das questões cosmográficas e das descobertas ultramarinas que tanto empolgavam os humanistas da Europa. Deste grupo fazia parte o matemático, cosmógrafo e desenhista Martin Waldessemüller.

Aproveitando-se das novas técnicas de impressão -- inventadas por Johann Gutenberg em 1455 - e do sucesso que as obras geográficas (especialmente os mapas e o livro escrito pelo grego Ptolomeu no início da era cristã, estavam obtendo na Europa, o Ginásio Vosgense passou a publicar relatos de viagem. Uma de suas primeiras obras foi justamente uma versão em latim da "Lettera a Soderini", lançada com o título de "Quatro Americi Navigatione". ("As Quatro Navegações de Américo Vespúcio"). Traduzida do italiano por Jean Basin, com introdução de Mathias Ringmann e mais de dez ilustrações, o livro, lançado em 25 de abril de 1507, foi um sucesso instantâneo. Só no de seu lançamento, foi reeditado sete vezes. Em 1508, foram 12 as reedições. Quase dez mil exemplares foram vendidos na Europa.

Mas não foi só. Para acompanhar essa versão latina da "Lettera", o Ginásio Vosgense resolveu publicar também, no mesmo volume, uma "Introdução à Cosmografia" de Ptolomeu.

Embora as novas descobertas feitas por portugueses e espanhóis estivessem derrubando quase todas as teorias desse geógrafo grego que vivera no século I, a obra de Cláudio Ptolomeu, ironicamente, estava em alta. Desde o advento da imprensa, o florescente mercado editorial europeu fora inundado pela publicação de dezenas de edições de livros de geografia clássica. Os 27 mapas que Cláudio Ptlomeu fizera 60 séculos antes - embora ultrapassados - se tornaram um anacronismo rentável.

Por iniciativa do jovem cosmógrafo Martin Waldessemüller, o Ginásio Vosgense decidiu "revisar e ampliar"a obra de Ptolomeu, tendo como base as "descobertas" feitas por Vespúcio. E assim, em um texto que se tornaria profético, Waldessemüller escreveu: "Agora que uma outra parte do mundo, a quarta, foi descoberta por Americum Vesputium, de nada sei que nos possa impedir de denominá-la, de direito, Amerigem, ou América, isto é, a terra de Americus, em honra de seu descobridor, um homem sagaz, já que tanto a Ásia como a Europa receberam nomes de mulheres."

Em um dos mapas que fez para acompanhar o livreto de 52 páginas, Waldessemüller usou pela primeira vez a palavra "América", colocando-a sobre o território que representa o Brasil, na mesma latitude em que se localiza Porto Seguro. O novo continente estava batizado.

Cristóvão Colombo morrera quase que exatamente um ano antes, em 20 de maio de 1506, amargurado e na miséria. Os eruditos de Saint Dié não ignoravam suas descobertas. Mas, até pelo menos 1514, muitos geógrafos Waldessemüller entre eles - acreditavam que as ilhas achadas por Colombo em outubro de 1492 de fato eram os limites ocidentais da Ásia, enquanto que a América do Sul (supostamente descoberta por Vespúcio na viagem de 1497 e de fato explorada por ele próprio entre 1501 e 1504) seria um continente autônomo, totalmente separado delas ou, quando muito, interligado ao arquipélago por um istmo. Foi só depois da descoberta do oceano Pacífico, feita por Vasco Nunez de Balboa, em setembro de 1513, que os cartógrafos do século XVI passaram a ter uma ideia um pouco mais próxima da realidade. E somente após o descobrimento do estreito de Magalhães, em 1519, o quadro geográfico iria adquirir molduras mais definidas.

Em fins de 1513, cedendo às pressões da Coroa castelhana, Martim Waldessemüller retirou sua proposta de batismo. Chegou a sugerir que o Novo Mundo fosse chamado de Colômbia. Mas era tarde demais: as múltiplas ressonâncias da palavra América caíram no gosto popular. Em 1516, até o genial Leonardo da Vinci passaria a utilizar esse nome colocando-o em um mapa que preparou a pedido da poderosa família Médici.

Vinte anos mais tarde, quando ficou claro que Vespúcio - ou alguém agindo em seu nome, com ou sem conhecimento dele - havia forjado a viagem de 1497, o nome, "América" começava a se popularizar na Europa, tendo sido adotado até por cartógrafos portugueses e, embora com muita relutância aceito, acabou sendo batizada com o nome de um homem que não fora o seu descobridor. De acordo com um texto escrito em 1900 pelo historiador brasileiro Capistrano de Abreu, "a falsidade e a galanteria" foram "pavoneadas pela imprensa e, por força delas, temos hoje o nome de americanos".

A UTOPIA

Por volta de 1510, um exemplar da tradução da "Lettera" feita pelo Ginásio Vosgense foi parar nas mãos do reverendo inglês Thomas Morus. Entusiasmado com a leitura das "Quatro Viagens", Morus escreveu seu clássico "A Utopia", lançado em latim em 1516. O herói do livro é um velho marujo português, Rafael Hitlodeu (ou Hythlodaeus "contador de histórias", em grego), que, "jovem ainda, abandonou sua fortuna e, devorado pela paixão de correr o mundo, juntou-se a Américo Vespúcio nas três últimas de suas quatro viagens, cujo relato hoje se lê em quase todo lugar". Embora fiel companheiro de Vespúcio, ao final da expedição Hitlodeu decidiu que "não retornaria à Europa com ele" e resolveu ficar junto com "os 24 homens que foram deixados em uma fortaleza, nos confins do Novo Mundo.

Por algum tempo, Hitlodeu viveu na feitoria criada por Vespúcio, próximo ao Rio de Janeiro. Mas então, ele e cinco companheiros resolveram percorrer o Novo Mundo. Após uma série de desventuras, acabaram conduzidos à ilha de Utopia - um mundo igualitário, onde os nativos viviam em perfeita harmonia política, social e ecológica. As indicações dadas por Morus sobre a localização de Utopia permitem supor que ele se baseou na ilha de Fernando de Noronha, descoberta por Vespúcio na mesma viagem na qual ele fundou a feitoria.

Na vida real, os 24 homens deixados por Américo Vespúcio em Cabo Frio foram trucidados pelos índios, "por causa dos conflitos havidos entre eles".

Texto de Eduardo Bueno em "Náufragos, Traficantes e Degredados", Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 1998, excertos pp. 36-66. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.






No comments:

Post a Comment

Thanks for your comments...