11.15.2018

AS ESTRADAS DO SAL NO BRASIL COLONIAL


Desenho de Percy Lau
O sal é indispensável à vida do gado. Não fossem as salinas existentes no interior do Brasil e a nossa pecuária não atingiria o grau a que chegou. É justo, pois, que se chame a atenção de todos para êsse fato. As ‘‘estradas do sal" são os caminhos que conduzem às salinas.

1. Rechaçada para o interior do sertão, escondida à vista, a pecuária não tem tido em nossa história a posição que merece. Falta-lhe o lustre dos engenhos e o atrativo da mineração. Também não chega até seus redutos o brilho das lutas políticas para chamar para ela a atenção de todos. No entanto o papel que representa na vida nacional é dos mais úteis e indispensáveis. Sem a carne a população não passa. Ela foi mesmo, no período colonial, de capital importância na alimentação. Os viajantes estrangeiros que percorreram o Brasil nos tempos antigos, não deixaram de relatar o que viram: boiadas sem conta palmilhando os caminhos e as ruas dos centros populosos. Os que puderam mostrar estatísticas citaram números que assinalam a importância do fenômeno. Mais de 20.000 bois, vindos do sertão, eram consumidos anualmente só na cidade do Salvador, na Bahia. Cerca de seis mil por ano, chegados de terras longínquas, eram abatidos em São Luís do Maranhão. Belém do Pará, só no ano de 1828, consumiu 11.000 reses.

Era ativíssimo o comércio pecuarista. Uma das atividades mais fortes da colônia.

Excluída a pequena faixa à beira-mar onde se cuidava principalmente do açúcar, e a região das minas de onde se extraía o ouro, outra atividade notável no Brasil era a criação do gado.

2. Foi na região do Nordeste que se iniciou essa atividade na colônia lusa. Para cá vieram pessoas entendidas da matéria e animais trazidos da metrópole para iniciar a criação nos campos sem fim que possuía a terra do Brasil.

Os homens que descobriram e devastaram o sertão para nele estabelecer a criação do gado, não haviam de ser muito diferentes “dos tupinambás e caetés: sumariamente vestidos, a face acobreada, falando “abanheenga”, comendo as raízes que eles mastigavam, bebendo a água que se agasalha nas palmas do gravata, caçando à flecha os roedores da caatinga, onde o seu organismo de aço, como planta enfezada persistente, recobrava energias inesperadas”.

Duas armas levavam, poderosas — a coragem de vencer o desconhecido e a proteção do Rei que, em cartas régias, lhes davam o direito de "devassar os sertões fora da autoridade dos governadores, como um potentado solitário e soberano na terra ilimitada”.

Os descobridores se meteram pelas caatingas, pelas invernias tapetadas de relva macia que os estios encinzeiravam, “realçando na vastidão arenosa as cactáceas de perfis fantásticos”, ou as serras e chapadas sem fim, quando não rios e riachos que as chuvas raras enchiam de água preciosa.

Fazendo do boi seu soldado, tangendo as manadas, iam sertão adentro carregando a civilização. E encontraram pela frente o selvagem terrível, revoltado pela tomada das terras que o viram nascer. Astuto, desleal, inevitável, o canibal lhes surgia de todos os lados e por todas as formas. Os índios chegaram até a formar a “Confederação dos Cariris” para combater o invasor branco, nos atuais Estados de Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. E quando os primeiros estabelecimentos se fixaram nas terras nordestinas gentio usou de outras táticas para desalojá-los, talando os currais e “quebrando a cabeça aos prisioneiros em sinal de guerra declarada”.

Nada, porém, demoveu o amigo da pecuária de seu intento. Pelo contrário, tudo o animou a prosseguir em sua faina. E assim conquistou ele terras sem conta. O governador de Pernambuco declarou em 1700, em documento oficial, que os herdeiros da Casa da Torre, Antônio Guedes e Domingos Sertão, “eram senhores de quase todo o sertão de Pernambuco”. Os curralistas chegaram a possuir tanta terra que, por si e pelos seus não puderam governá-las. Foi preciso darem-nas a outras pessoas para tratarem delas. Nomearam então procuradores, principalmente os da Casa da Torre, para serem dirigentes de largos tratos de terra. Aos procuradores davam autoridade, apoio e fôrça, mas exigiam deles, em troca, sujeição, tributo e homenagem.

3. A criação iniciou-se no Nordeste, subiu o São Francisco e penetrou em Minas Gerais. Assim, desde logo esses dois trechos da colônia começaram a possuir gado em quantidade. Primeiro o Nordeste, e ali o desenvolvimento foi espantoso. Cerca de um milhão de quilômetros quadrados contava aquela região para a expansão do pastoreio. Esta imensa zona de criação estendia-se entre o Rio Parnaíba e o Norte de Minas Gerais. Depois do Parnaíba ainda se pode incluir nela a região chamada dos Pastos Bons do Maranhão. Para oeste o limite desta zona do sertão se fixa na margem esquerda do São Francisco.

Três foram os fatores que permitiram o estabelecimento ali da notável criação — a vegetação, o relevo e as jazidas de sal.

A vegetação local é pouco densa e isso permitiu ao homem estabelecer-se na região com pouco trabalho de desbastamento; o relevo apresenta grandes chapadas próprias para a criação; finalmente ali se encontram jazidas de sal, precioso alimento do gado.

Martius, no segundo volume de sua Viagem à Bahia, descreve pormenorizadamente a zona do sal, ao longo do rio São Francisco: do rio Salitre à Vila Urubu, “numa extensão de quase 60 léguas (360 quilômetros) de comprimento por 20 a 25 de largura (120 a 150 quilômetros)”. Trata-se, pois, de uma região de 43.200 a 54.000 quilômetros quadrados, isto é, uma zona mais ou menos do tamanho da metade de Portugal, ou a quarta parte do Estado de São Paulo.

Seu produto vai abastecer todo o sertão, de Piauí a Minas, e ainda Goiás e Mato Grosso. Anualmente se exportavam para mais de 35.000 surrões de 30 a 40 libras de sal. Eis porque Antonil foi encontrar, no São Francisco, cerca de um milhão de cabeças de gado, no princípio do século XVIII.

Juntem-se a esses benefícios mais as excelentes pastagens e água suficiente, pois que, naqueles tempos, eram mesmo abundantes os aguaceiros. E não foi só. Um outro benefício veio na forma de pagamento aos vaqueiros, isto é, aos homens que cuidam do gado. Estes recebiam um quarto das crias. E, com elas, podiam formar a sua própria fazenda, mesmo porque uma fazenda de criação exige pouca coisa — currais, casas de empregados, quase tudo de sapé.

Tudo, pois, facilitou o desenvolvimento da pecuária naquela região do Nordeste que, por isso, ficou famosa.

4. A região de Minas Gerais, que fronteia com essa de que acabamos de falar, não lhe é muito diferente. É mesmo uma sua continuação. Relevo e vegetação são iguais. Somente ali não se verificam as secas que assolam o Nordeste. Também foi povoada por vaqueiros baianos. Ao tempo em que estes ali se estabeleceram, os paulistas ainda não tinham descoberto as minas de ouro do distrito mineiro. Saint-Hilaire, em suas Voyages, refere-se a estas paragens. Por tudo isso não constitui zona à parte.

A segunda zona de criação de gado, assim, não é esse trecho norte de Minas Gerais, mas sua região meridional.

No Sul de Minas surgiu, por motivos especiais, uma região de criação que derivou da primeira e serviu de traço de união entre as que depois se estenderam pelos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo.

Essa região compreende a bacia do Rio Grande, formando a comarca do Rio das Mortes. Aqui também três elementos ajudaram o homem a desenvolver sua vida —.a água, a vegetação e o relevo.

Há água em abundância. Rios volumosos, o Rio Grande, o Sapucaí, o Verde, todos densamente ramificados, oferecem água à vontade durante todo o ano.

O relevo é muito irregular, cheio de serras e serrotes, mas as chapadas e as regiões de encosta bastam para fazer da zona grandes centros de concentração de gado.

As pastagens são esplêndidas. A vegetação favorece o gado. As matas que cobrem as serras interrompem seu curso para deixar à vontade do boiadeiro as pastagens sem fim que dão o capim de que as reses tanto gostam.

O solo não é salitroso como o da Bahia, mas o sal vindo da região salina do Nordeste, é fornecido aos animais em quantidade suficiente. É melhor ainda para ele, pois é sal puro e não misturado com barro, como come o gado do Nordeste nas “lambedeiras”.

Hoje a criação do gado está difundida por todo o país. Além dessas regiões ainda existem grandes criações em São Paulo, Mato Grosso e Rio Grande do Sul

Texto de Duílio Ramos em "História da Civilização Brasileira", Editora Saraiva, São Paulo, 1969, Excertos do capítulo VII, pp.95-100. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.









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