1.03.2019

A MULHER, A FOICE E O MARTELO


Mais de cem anos depois da revolução operária de 1917, o que move as milhões de pessoas que vão às ruas protestar em países tão distintos quanto o Egito, a Turquia, o Brasil ou, mais recentemente, a Venezuela podem não ser os mesmos ideais bolcheviques de então, mas são certamente as mesmas mazelas sociais universais que as despertaram. As manifestações dos últimos três anos mudaram de roupa, fisionomia e idioma, mas continuam vinculadas a demandas básicas por uma vida melhor e menos desigual. E, por mais que a resposta socialista tenha fracassado na ex-União Soviética, para a historiadora americana Wendy Goldman, autora do livro “As mulheres, o Estado e a revolução”, é justamente na “visão’’ dos revolucionários que pode estar a chave para a sociedade contemporânea corrigir de uma vez por todas o que considera distorções tão antigas quanto o próprio mundo, sobretudo as desigualdades entre homens e mulheres.

Porém, para funcionar, o que não aconteceu na URSS, é preciso ter crescimento econômico, pleno emprego, salários mínimos razoáveis e iguais entre homens e mulheres, educação e, principalmente, a socialização dos serviços domésticos. A professora ainda lembra as primeiras letras da revolução, que pregavam a necessidade das mulheres terem controle sobre seus próprios corpos, acesso ao aborto legal e seguro, opção de controle de natalidade saudável e bons cuidados médicos. Ao Estado caberia, como idealizaram os bolcheviques, criar creches, restaurantes públicos e lavanderias para tirar o fardo doméstico do casal. Tudo isso traria naturalmente a independência de homens e mulheres. Wendy afirma que a experiência soviética não vingou sobretudo porque a economia do país estava em frangalhos. Situação econômica em ruínas e guerras abafaram as melhorias que seriam trazidas pelas novas ideias, que acabaram ofuscadas pelas forças antidemocráticas e pelo
regime stalinista.

— Não se trata de utopia. As pessoas estão lutando, agora, pelas mesmas demandas básicas de 1917. O projeto pode, sim, dar certo no mundo de hoje. Mas são necessárias todas essas condições econômicas e de bem-estar para garantir que homens e mulheres tenham os mesmos estímulos para se desenvolver em uma sociedade mais igualitária — ressalta a autora.

A experiência de emancipação da mulher e do amor livre foi um dos pontos altos do projeto soviético, na avaliação de Goldman, que, durante décadas, debruçou-se sobre a legislação, os documentos oficiais e as atas de reuniões entre bolcheviques sobre como deveriam ser a organização familiar, os direitos das crianças, o direito da juventude de se emancipar do poder de seus pais e o direito ao amor livre sem entraves. Os russos foram os primeiros a discutir e aprovar a lei do aborto. Ela analisa o período desde a revolução até 1936, conta como as mulheres viveram durante os períodos de escassez, fala de casamento, divórcio, prostituição e aborto.

Para a professora, a União Soviética chegou a viver um momento em que as mulheres tinham acesso a empregos e passaram a ser parte expressiva da força do trabalho do país.

O tamanho da força de trabalho feminina, que era de 26% em 1901 e passou para 45% em 1941, dividia-se em: 75% no setor de alimentação do povo (Narpit), 74% na costura, 63% nos trabalhos de saúde, quase 60% na indústria têxtil, 25% na metalurgia e 20% na mineração. Até hoje a economia russa reflete os números do passado. Se a mão de obra feminina não ostenta os mesmos percentuais soviéticos, ainda são vistas trabalhadoras em setores pouco habituais no resto do mundo.

Com o Código de 1918, a igualdade perante a lei proporcionou às mulheres muitos direitos para decidir sobre suas próprias vidas. Foi apenas o começo de um série de mudanças na legislação que, entre os muitos erros e acertos, não conseguiu conferir a felicidade plena ao público feminino, conforme teria admitido o próprio Leon Trotski, mas abriu espaço para que elas se desenvolvessem.

Wendy investigou muitos estudos realizados após a revolução sobre o trabalho e o tempo e a quantidade de horas que mulheres e homens da classe trabalhadora dedicavam aos afazeres domésticos. Era nítido que os homens podiam se desenvolver como seres humanos, enquanto elas serviam à família. Foi nesse momento que os revolucionários russos socializaram o trabalho doméstico por meio de lavanderias, creches e restaurantes públicos, reduzindo-o ao mínimo possível.

— Não há como negar que parte do que foi realizado teve efeitos positivos não só para a Rússia como para o resto do mundo anos depois. O projeto fracassou porque o país estava em ruínas naquela época — ressalta ela.

Wendy reconhece que a solução para a desigualdade não acontecerá da noite para o dia. Mas acha que hoje há ainda mais condições de transformar a “visão’’ em realidade, porque as mulheres estão mais cientes de problemas de relacionamento, violência sexual, abusos e desigualdades. Ela não acredita na divisão do trabalho entre o homem e a mulher, que está tão na moda hoje, mas na ideia que ia sendo implementada pelos bolcheviques de tirar o peso do trabalho doméstico da família.

Para a autora, esta e a única forma de não haver tensão na família.

— Homens e mulheres precisam ter salários iguais se ocupam uma mesma função, e ambos devem ter empregos, porque a independência é fundamental para a liberdade e a igualdade entre ambos — complementa.

No livro, ela mostra o que acontecia na Rússia soviética — e que não é uma realidade muito distante em muitos países até os dias de hoje — quando as mulheres se divorciavam. Segundo ela, a premissa era: uma mulher empregada, quando se divorciava, por exemplo, perdia o marido. A desempregada, perdia tudo. A ideia era libertar não só os homens, mas também as mulheres.

O casamento, por sua vez, era visto como uma amarra burguesa. Uma amarra que, na verdade, deveria ser transformada numa união baseada apenas no amor e não em alianças familiares ou questões pecuniárias. Mas as mudanças não tiveram os resultados esperados.

Casar-se e separar-se ficou fácil demais. E muitos se aproveitaram disso, relata Wendy. Com a flexibilização do divórcio, nos primeiros quatro meses de 1918, 214 casamentos foram registrados, contra 2.515 divórcios. A escalada mês a mês: 98 em janeiro, 384 em fevereiro, 981 em março e 1.053 em abril. Depois, caíram para 365 em dezembro. Quase sete mil divórcios foram registrados em Moscou em 1918.

Texto de Vivian Oswald publicado na "Revista O Globo" do jornal "O Globo" de 4 de maio de 2014. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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