1.04.2019
DITADURA MILITAR - PROPOSTA INDECENTE
DEPOMENTO DE MORA GUIMARÃES, ESPOSA DE ULYSSES GUIMARÃES
Encontro secreto de três nunca dá empate. Só problemas. Reunião com números ímpares de atores não visa a acordo, mas cooptação.
São máximas de uma das maiores vítimas dessas desastradas tentativas de se buscarem acertos políticos, por baixo do pano. Coincidentemente, essa pessoa chama-se Ulysses Guimarães, meu marido.
Por que isso é tema da minha história de hoje? Nem eu sei. Ou, talvez, até saiba demais. Posso, perfeitamente, disfarçar minhas verdadeiras intenções, apegando-me à coincidência cronológica dos fatos, ordem, aliás, nunca seguida por mim, aqui nos nossos encontros nada burocráticos.
Mas é o argumento que me vem à cabeça agora para poder contar algo muito importante da vida de Ulysses, que, mais cedo ou mais tarde, eu teria de abordar. Então, que seja agora.
Reunião secreta com Golbery
“A história contada até hoje é que Golbery, nesse encontro, deu uma aula de ciência política a meu marido”
Há exatamente 37 anos, num belo dia de final de abril — mês fadado a grandes encontros e desencontros políticos, que o digam o próprio golpe militar de 64 e o “pacote de abril” de 1977, para não chegarmos aos dias de hoje —, o então líder da oposição à ditadura, meu marido, reuniu-se, secretamente, com o também líder intelectual do regime militar, o general Golbery do Couto e Silva. O encontro foi mediado pelo então secretário-geral do MDB, Thales Ramalho.
O que levou a ditadura, com apenas um ano de mandato do seu quarto general (Geisel), a procurar seu principal inimigo institucional não é difícil de se adivinhar. Exatamente, foi como anticandidato contra Geisel que Ulysses colheu, em 1974, a maior vitória do MDB, derrotando a Arena em 16 estados.
A história contada até hoje é a de que Golbery, nesse encontro, deu uma aula de ciência política a meu marido, prevendo o que aconteceria ao país, depois de uma série de reformas que o governo proporia à oposição, tendo como pressuposto — teria insinuado o general — a própria anistia.
Mas eu vou encurtar a história: mascarada de conversa altamente republicana, o general, no fundo, fez a meu marido uma proposta indecente. Queria que Ulysses se afastasse da esquerda, que já se aglutinava em torno da sua liderança, e participasse do grupo de moderados — do qual Tales fazia parte, capitaneado por Tancredo Neves —, que já se articulava com liberais da Arena para a criação de um partido de centro, que se confrontaria com as esquerdas, na suposta reforma partidária do regime. Meu marido percebeu o golpe, mas educadamente ouviu as teses do general.
Selou-se, nesse encontro, um pacto de silêncio, praticamente impossível de ser desfeito, devido não só às altas responsabilidades dos cargos que exerciam os participantes, mas, sobretudo, ao estilo discreto e excessivamente reservado dos três.
Golbery, do início ao fim, não cansou de repetir que a conversa estava sendo realizada com total conhecimento e aval do presidente Geisel. Mas, exatamente três meses depois, o presidente desmentiu seu articulador, com um pronunciamento cheio de críticas à oposição. Claro que teve revide. E ele veio na nota em que meu marido comparou Geisel a Idi Amin Dada.
Na verdade, essa nota, feita no clássico estilo literário insinuoso de Ulysses, agride muito mais o general Geisel em outros parágrafos. A citação do nome do então ditador de Uganda é, repito, insinuante, não objetiva, como se comenta até hoje: “Ah, Ulysses chamou Geisel de Idi Amin.”
Mas, no fundo, foi bom que fosse interpretado assim. Isso ajudou meu marido a exorcizar as feitiçarias de Golbery, embora não o tivesse livrado de processo, opção final de Geisel às sugestões de cassação de mandato. Se Ulysses ficou devendo alguma coisa a Golbery, por causa daquele infeliz encontro, foi o fato de o general não ter participado do coro que exigia a sua cassação. Fora os militares marcadamente identificados com Sylvio Frota, a maior parte das pressões para a degola de meu marido veio das lideranças civis que serviam à ditadura, estimuladas pelo ciúme do próprio presidente da Arena, o senador Petrônio Portela. Diz-se, na política, que ciúme de homem é pior do que o nosso.
Portela, com toda a razão, sentiu-se atropelado por esse encontro. Ele era o presidente do partido do governo. Quem deveria conversar com o presidente do partido da oposição era ele, portanto. Mas todos, inclusive Ulysses, desrespeitaram essa regra, valendo-se do fato de que Petrônio Portela nunca gozou da confiança do meu marido.
Por isso, o senador Petrônio Portela alimentou uma forte reação à nota de Ulysses, “obrigando” o próprio Geisel a, docemente constrangido, tentar tirar o mandato parlamentar de Ulysses pela via legal, a de uma representação no Supremo.
Todos os episódios decorrentes desse maldito encontro tinham suas lógicas, inalcançáveis para todos os políticos, analistas e jornalistas, dado o seu caráter sigiloso. Por isso, a fúria de Portela — um dos poucos que sabiam — contra Ulysses era descomunal e, aparentemente, incompreensível.
A relação de Thales com o meu marido se enfraquecera muito porque Ulysses não o avisou da “nota do Idi Amim” em resposta a Geisel. Mediador do encontro, Thales se considerava fiador de um pacto político que não existia. O pacto era apenas do sigilo. Mas a relação entre os dois ainda era sustentada por um fio: o segredo sobre o encontro ainda prevalecia.
Rompimento do pacto do silêncio
“Nem bem rasgava sua ficha do MDB, Thales, em dezembro de 1979, quebrou o segredo, revelando-o”
Quando Ulysses e Tancredo se afastaram politicamente, este levou Thales para o seu novo partido, o frustrado PP. Nem bem rasgava sua ficha do MDB, Thales, em dezembro de 1979, quebrou o segredo, revelando-o, primeiramente, aos jornalistas Carlos Chagas e Marcos Sá Correia. Escandalizada, a esquerda do já PMDB cobrou esclarecimentos de Ulysses, através de Jarbas Vasconcelos. Meu marido resumiu então, assim, o encontro de quatro anos atrás:
— As teses do Golbery sobre a reforma partidária não diferem em nada do que o Mangabeira Unger tem nos apresentado sobre as correntes internas do MDB.
Antes de romper o pacto do silêncio, Thales, como eu já disse, estava com as relações esgarçadas com Ulysses. Mesmo assim, teve um último gesto de cortesia com meu marido. Ligou para Ulysses e despediu-se dele, numa curta conversa de dois minutos, depois de uma convivência de quase dez anos juntos no comando do MDB.
Meu marido e Thales se reencontraram depois, na incorporação do PP ao PMDB. Mas a amizade dera lugar a uma relação quase formal.
Foi por causa desse episódio que Ulysses cunhou a Paulo Brossard a seguinte frase:
— A mulher tem mais caráter que o homem.
E explicou:
— O homem briga, rompe, faz as pazes. A mulher nunca esquece.
Meu marido nunca fez questão de corrigir as várias versões dadas ao encontro.
— Para quê? — perguntava ele, sempre que eu tocava no assunto.
E encerrava a conversa:
— O mau das conversas supostamente secretas é que sempre haverá no mínimo três versões: a sua, a do outro e a verdadeira.
Texto de Jorge Bastos Moreno, parte de uma série, publicado no jornal "O Globo" de 3 de junho de 2012. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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