3.21.2019

FADAS NO DIVÃ - O DESPERTAR DE UMA MULHER

Branca de Neve
A Jovem Escrava, Branca de Neve, A Bela Adormecida e Sol, Lua e Tália

Identificação da menina com a mãe – Importância da inveja materna – Amor e ódio da filha pela mãe – Passividade feminina – Menarca – Passagem da infância para a adolescência – Adolescência como período de adormecimento e exílio

As bruxas dos contos de que falamos até agora só queriam saber de comer, de engolir as crias. A face obscura da mãe, discutida nos capítulos anteriores, corresponde à da primeira infância, quando está em jogo o lugar do filho como possessão materna. Essas primeiras histórias revelaram a versão terrífica desse idílio amoroso, lembrando que toda a entrega tem seu preço. No amor, seja materno-filial ou erótico, quanto mais profundamente alguém se entregar a viver o papel de objeto, menos saberá onde estão os limites, as fronteiras, que assinalam onde termina o eu e onde começa o outro. O preço da entrega absoluta é a dissolução ou a fragilidade do eu, que equivale na fantasia a ser devorado pelo outro ou a viver sob essa ameaça.

Já as analisadas neste capítulo são fadas ou madrastas orgulhosas, que agem por se sentirem ofendidas, por inveja, ciúme ou narcisismo ferido. Nestas histórias, temos outro aspecto da complicada relação com a mãe: trata-se da problemática da construção da identidade feminina. Não podemos esquecer de que a menina floresce na mesma proporção em que sua mãe perde o viço, restando o incontornável conflito de como se parecer com esta, tornando-se uma mulher, na mesma época em que a mãe vê declinar seus atrativos femininos. Essas histórias são bem claras, avisam à futura mulher que a juventude da mãe morrerá esperneando e que não há lugar para duas mulheres desejáveis no núcleo familiar.

Branca de Neve é uma das narrativas de que os pequenos mais gostam, talvez graças à presença dos sete anões, enquanto A Bela Adormecida é hoje preferida das meninas, por ser acima de tudo uma história de amor. Não basta apenas a essas heroínas se livrar da velha bruxa, é preciso enfrentar ainda a morte da infância e as dificuldades de despertar nos braços de seus príncipes, que aliás se apaixonaram por elas quando estavam adormecidas. Eis mais um detalhe que liga essas princesas: ambas, bem como suas antepassadas, passam por um período de adormecimento – fato que dá nome a uma delas e é o estado em que seduzem os seus amados.

As histórias começam muito bem, pois ambas as meninas eram filhas desejadas. Branca de Neve nasceu exatamente com as cores que a imaginação de sua mãe a pintou; e Bela Adormecida teve sua chegada ao mundo celebrada num luxuoso batizado, em que as fadas dotaram-na de todos os encantos que uma mulher pode ter. Essas princesas têm o privilégio de corresponder em gênero e número ao desejo parental. Ninguém consegue essa proeza, como lembrávamos por ocasião da análise do conto do Patinho Feio, o filho idealizado não nasce nunca, restando ao filho real a batalha inglória de tentar se parecer com o que ele supõe que esse ideal possa ser. Acrescente-se a isso que, face à antiguidade desses contos, é surpreendente que haja filhas mulheres num lugar tão idealizado, pois é recente a valorização do nascimento de uma menina.

A sociedade que viu nascer essas histórias compreendia a utilidade de uma filha mulher restrita à possibilidade de alianças por casamento, o que era pouco face ao papel de um filho homem na trama sucessória. Quanto às filhas, mesmo que seu enlace beneficiasse a família, a necessidade de lhe dispensar um oneroso dote lembrava a passagem de um encargo, de um fardo, pelo qual é necessária alguma indenização. Às plebéias, incapazes de oferecer qualquer aliança importante com seu matrimônio, restava apenas a função de fardo, já que sequer lhes cabia preservar o nome da casa paterna. Como sabemos, havia pouco a celebrar com o nascimento de um bebê do sexo feminino. Para usar uma expressão antiga e de esclarecedora crueldade: ter uma filha era como regar a horta do vizinho. As princesas, portanto, explicitam em suas histórias uma contradição, pela qual o desejo aparece ao contrário de sua forma tradicional. Vale a pena se perguntar o porquê.

Tão lisonjeiros são esses contos para a beleza e os dons de suas jovens personagens femininas, que quem os aprecia mal percebe o quanto o julgamento é inclemente relativo ao resto das mulheres. Tantos elogios, em verdade, ocultam um número proporcional de críticas e preconceitos para com o sexo feminino, cuja face perigosa é explicitada com requintes, principalmente na figura da madrasta da Branca de Neve. De acordo com esses relatos, a jovem extrai seus encantos do fato de que ainda é inocente, portanto não sabe usar os ardis típicos da fêmea humana. Carente de poder formal, a mulher sempre foi vista maquinando formas sutis de exercê-lo, e esses são seus feitiços. Além disso, somos levados a crer que, quando se tornar mãe, vai lidar com seu filho como um dragão sentado sobre seu tesouro, devorando e cuspindo fogo em quem ameaçar suas crias.

No conto da Bela Adormecida, a velha fada, com seu mau humor invejoso e nocivo, exemplifica o que resta de uma mulher quando a juventude a abandona. Os atrativos femininos seriam uma arma privilegiada de conquista de posição para uma mulher, como o envelhecimento a privaria destes, a mulher necessitaria recorrer a outros feitiços, os da bruxa. Um homem pode amar apaixonadamente uma princesa adormecida, aprisionada e passiva, mas quando a mulher desperta e perde a beleza inocente da juventude, resta a visão da sua verdadeira alma: poderosa, perigosa e ardilosa.

Vemos então que, sob uma capa de elogio, essas histórias contêm um aviso de que todo cuidado é pouco com mães, sogras ou todo o tipo de mulher adulta. A mãe boa, que morre rapidamente na história de Branca de Neve e sai de cena na da Bela Adormecida, é muito menos expressiva do que a malvada. A boa índole está restrita às jovens e a uma que outra fada, mas as fadas boas jamais estão desacompanhadas de sua versão maligna. Essas histórias seriam, então, também um tratado sobre a relação de homens e mulheres com a feminilidade: seu preço, seu fascínio, a magia magnética de sua beleza, seus poderes e perigos.

Lisa, a antepassada

Lisa, a heroína de A Jovem Escrava,1 conto escrito por Basile, publicado em 1634, é apontada como a ancestral mais próxima de Branca de Neve. De fato, o conto de Basile, originalmente narrado em dialeto napolitano, contém alguns elementos de Branca de Neve, embora também possamos reconhecer traços de A Bela Adormecida e Cinderela.

A história deste conto inicia com uma brincadeira da jovem irmã de um barão que faz uma aposta com suas amigas: qual delas conseguiria pular uma roseira sem tocá-la. Nenhuma consegue, mas a menina trapaceia as companheiras, já que ela pula melhor que as outras e faz parecer que ganhou, mas sabe que deixou cair uma folhinha. Rapidamente, ela engole essa folha para garantir sua vitória no jogo. Tempos depois se descobre grávida. Desesperada, pois não sabe como isso ocorreu, ela recorre às suas amigas fadas2 em busca de uma explicação. Estas lhe informam que ela engravidara magicamente da folha da roseira. Ela passa então a ocultar primeiro a gestação e depois a menininha que nascera, a quem dá o nome de Lisa. Leva-a até as fadas, em busca de sua benção e proteção, e elas lhe dão muitas qualidades. Uma das fadas, porém, apressada para chegar a essa espécie de batismo, torce o pé e, movida pela dor, roga uma praga. A maldição proferida era que Lisa, ao atingir 7 anos, enquanto estiver sendo penteada pela mãe, morrerá com o pente enterrado em seus cabelos. Chegada a funesta ocasião, a maldição se confirma. A rainha guarda sua filha, que parece morta, mas mantém as cores da vida, em sete caixas de cristal, uma dentro da outra. Essa urna é mantida escondida pela mãe em um remoto quarto do castelo, cuja chave leva sempre consigo. Tomada de tristeza pela perda, a mãe morre, não sem antes pedir, em seu leito de morte, que seu irmão custodiasse a chave, sem jamais abrir a porta do respectivo recinto.

Passados alguns anos, o irmão casa-se com uma mulher perversa e ciumenta. Numa ocasião, ele se ausenta para uma viagem e confia a chave, com as devidas recomendações, para sua esposa. É claro que a mulher abre a porta e encontra a urna e nela uma jovem (que na realidade é sua sobrinha). A menina crescera nesses anos de sono, assim como seu caixão transparente, que se expandira com ela. Enlouquecida de ciúme, pelo que julga ser um objeto de culto do marido, ela arranca a jovem de seu sono pelos cabelos e, com isso, faz cair o pente que a mantinha enfeitiçada. Ao acordar do seu sono mágico, Lisa exclama: “Oh, minha mãe!”. Ao que obtém como resposta: “Vou te dar mãe e pai!”. Tratando-a como uma escrava, a esposa do tio a submetia a todo o tipo de trabalho, de maus-tratos e recobre seu corpo de trapos e sujeira. Quando o tio retorna, a esposa lhe conta que Lisa era uma escrava que lhe havia sido enviada pela sua mãe e, sendo uma jovem perversa, deveria ser sistematicamente castigada.

Certo dia, ao partir para uma viagem, o tio pede a todos no castelo que façam alguma encomenda, a jovem escrava pede uma boneca, uma pedra de afiar e uma faca. A boneca servia como ouvinte de seus sofrimentos e a pedra para afiar a faca, que seria usada para pôr fim à sua vida miserável. O tio termina escutando sua história triste no momento em que ela a narrava para a boneca, com isso impede que ela se mate e a manda para casa de pessoas de sua confiança, para recuperar a saúde e a beleza. Quando a jovem finalmente está bem, ele realiza um banquete em sua homenagem, apresenta-a à sociedade como sua sobrinha e expulsa sua perversa mulher. Por fim, o tio providencia um bom marido para Lisa.

Essa narrativa serve para que possamos pensar o que ela teria em seu cerne para ser interpretada como a origem de A Branca de Neve. As trajetórias das personagens na verdade se assemelham apenas pelo desaparecimento precoce de suas mães. Na história de Basile, parece haver algo de pecaminoso na concepção, por mais mágica que seja, de Lisa, pois sua mãe, que a teve em função de uma travessura, precisa ocultar a menina, sugerindo que sua origem foi de alguma forma escusa. Esse foi um elemento que se perdeu, pois em nada lembra o nascimento de Branca de Neve.

Lisa chama a tia de mãe, tornando possível o deslizamento desta para o papel materno, assim como seu tio em seguida assume um lugar paterno, ao reestruturar seu lugar social e providenciar-lhe um casamento. Também não se manteve nas versões posteriores a suposição da tia de que haveria algum tipo de amor entre seu marido e a jovem adormecida, origem de seu ciúme vingativo. Essa trama cedeu lugar a alusões bem menos incestuosas. Como veremos, no conto dos irmãos Grimm, nada dá margem sequer à suposição de algum amor familiar. O pai desaparece ou é sem importância, e a madrasta entra numa disputa de beleza com a enteada, intermediada pelo ascético espelho mágico. Tudo indica que a passagem do tempo foi decantando histórias cada vez mais simbólicas e metafóricas, necessárias à nova sensibilidade moderna e à preocupação com o que se está oferecendo às crianças.

Como antepassada, Lisa serve para representar a fundação de uma genealogia de jovens mulheres que terão de se salvar de pragas e maldades, provenientes de quem deveria abençoá-las e cuidá-las. Elas deverão amadurecer isoladas, ocultas dessas terríveis invejosas. Por fim, para encontrar um amor, terão antes de passar por um sono enfeitiçado. Vamos adiante, então, ao encontro de Branca de Neve e Bela Adormecida, que herdaram dela partes da história e sobrevivem hoje para alimentar devaneios amorosos em pessoas de todas as idades. Com elas, podemos pensar sobre as intempéries provenientes da rivalidade com a mãe, que é preciso vencer para adormecer menina e despertar mulher, assim como sobre os revezes que são próprios da adolescência de ambos os sexos. Mais adiante, encontraremos ainda Cinderela, que é uma jovem escrava, como Lisa, e nos fará avançar nessas conjecturas.

Branca como a neve

Branca de Neve, tal como a conhecemos, não conta com uma versão de Perrault, mas aparece na compilação folclórica dos irmãos Grimm.3 Seu sucesso está de alguma forma associado ao fato de ter sido o primeiro longa-metragem em desenhos animados. O desenho animado Branca de Neve e os Sete Anões (Estúdios Disney, de 1937), além de elevar estes últimos à condição de protagonistas, foi o precursor de uma linguagem que formará o gosto e o estilo de narrativa para crianças de gerações a partir daí. É tão marcante a influência desse filme que a imagem sugerida por ele para a personagem da Branca de Neve hoje é indissociável desta. Qualquer leitor que pensar nela a imaginará tal como ali foi desenhada.

Na versão dos irmãos Grimm, o começo da história não poderia ser mais idílico:

Era uma vez uma rainha que, certo dia, no meio do inverno, quando flocos de neve caiam do céu como se fossem penas, costurava sentada junto à janela, cujo caixilho era de ébano muito negro. E, enquanto costurava e olhava pela janela, espetou o dedo na agulha e três gotas de sangue caíram na neve. Ela pensou então: quem me dera ter uma filha branca como a neve, vermelha como o sangue e negra como o caixilho da janela.

Seu desejo foi uma ordem, “pouco depois deu à luz a uma filha que tinha cútis tão alva como a neve e tão corada como o sangue e cujos cabelos eram negros como o ébano que ficou chamada de Branca de Neve”. Mas o que era bom durou quase nada, já que a mãe morreu logo após o nascimento. Essa rainha aparece apenas para ser quem faz a encomenda. Mãe boa, como todas as de contos de fada, que, por ter desejado tanto a criança, ficaria isenta de sentimentos hostis, abandona a cena rapidamente, para deixar surgir em seu lugar a madrasta num novo casamento do pai. Sempre claramente diferenciada da genitora, a mãe sobrevivente é essa madrasta, em cuja relação com a enteada não há o amor materno para amortecer o ciúme e a inveja.

Após um ano de luto, o rei, na última vez que é mencionado no conto, casa novamente com uma mulher tão bela quanto perversa. O pai de Branca de Neve não será lembrado nem para explicar seu desaparecimento, nem sequer será mencionada sua posição diante do destino da menina. Em seu lugar, surge um espelho mágico, objeto de constantes consultas pela madrasta. Enquanto o espelho respondia que ela era a mais bela das mulheres (sim, ele era falante), a enteada não trazia problemas, mas quando chegou o dia em que ele mencionou que a menina era a mais bela do reino, ela tornou-se uma rival.

Isso ocorreu quando Branca de Neve tinha 7 anos. É curioso que ainda tão jovem ela possa ser ameaçadora à posição de uma mulher adulta, por isso é compreensível que esse detalhe tenha desaparecido dos relatos contemporâneos. No filme da Disney, assim como nas ilustrações mais tradicionais da história, a heroína é representada como uma adolescente. É somente nessa fase, quando perde a condição infantil, que a jovem representa uma ameaça para o reinado da mulher mais velha da casa. Os 7 anos talvez representem o momento em que a menina começa a apresentar algum interesse pelos atributos de feminilidade, como roupas e comportamentos, já que, até então, pouco se diferenciam na aparência as crianças de ambos os sexos, mas isso são conjecturas. Outra fonte, bem mais provável da alusão a essa idade, é o fato de que, à época dessas narrativas, os 7 anos eram a ocasião do fim da inocência infantil, o início de uma certa responsabilidade social.4 Vemos também que é com a idade de 7 anos que Lisa está fadada a perder sua mãe.

De qualquer maneira, graças aos acontecimentos que se sucedem, é possível supor que as aventuras de Branca de Neve acontecem quando a heroína já é adolescente, portanto a criança amada e desejada já não existe mais mesmo, foi substituída por uma bela jovem. Um bebê tende a ser objeto de contemplação e fascínio por parte dos pais, que celebram a realização de seu desejo. Já a moça que esse bebê se tornou é objeto de desejo para um jovem príncipe, desbancando ambos de seu trono: o pai é substituído por ele, e a mãe é agora uma madrasta invejosa da beleza e da juventude da filha. É a partir desse ponto que a ação realmente começa.

A fim de livrar-se da incômoda presença da bela jovem, a madrasta incumbe a um caçador a serviço de sua corte que leve a enteada para a floresta, a mate e lhe traga seu fígado e pulmões como prova. O homem compadece-se das súplicas da menina, deixando-a partir, confiante de que as feras farão a tarefa por ele. Para simular que cumprira sua missão, mata um animal e leva suas vísceras para serem comidas pela invejosa mulher. A menina atravessa a floresta livre de toda a ameaça, ficando claro que o perigo morava em casa. Ao anoitecer, chega a uma cabana, onde tudo é pequeno. Uma mesa servida para sete, assim como sete caminhas e, nesse mundo em miniatura, se sente aconchegada. Ela come um pouquinho de cada prato e experimenta todas as camas, ficando adormecida na última delas. A cabana pertencia a sete anões mineiros que, ao anoitecer, retornam, encontrando a bela invasora. Ela lhes suplica que a deixem ficar e conta sua história. Sensibilizados, eles a aceitam, mas com a condição de que ela faça os serviços domésticos.

A partir desse momento, eles se cuidam mutuamente, por isso, ao sair, sempre alertam para que ela não permita a entrada de estranhos na casa. Enquanto isso, a madrasta é comunicada pelo espelho – que nunca mente – da sobrevivência e do paradeiro de Branca de Neve. Por três vezes, ela visita a jovem, a fim de livrar-se pessoalmente dela: na primeira, disfarçada de velha vendedora ambulante, lhe oferece um cadarço para seu corpete. Quando a moça aceita, ela o coloca na jovem, apertando-o até sufocá-la, mas ela foi salva pela providencial chegada dos anões. Da segunda, mais uma vez disfarçada, ela lhe oferece um pente envenenado. Assim que o pente toca os cabelos da moça, ela cai morta, mas mais uma vez os anões a salvam, retirando o objeto de sua cabeça. Por último, mediante o fracasso das tentativas anteriores, ela tenta a gula da jovem com uma bela maçã vermelha envenenada. Branca de Neve morde a maçã, cai como morta e dessa vez não há o que seus amigos possam fazer para reverter o fato.

Apesar de morta, a jovem parecia estar apenas adormecida, mantendo-se rosada como em vida. Por isso, os anões decidiram colocá-la em um féretro de vidro, onde pudesse ser contemplada por quem passasse, enquanto eles velavam e montavam guarda ao seu lado. Não demorou muito para que um jovem príncipe passasse por ali e ficasse fascinado com a sua beleza inerte. Tanto que pediu aos anões para que ela pudesse repousar em seu palácio, prometendo honrá-la como uma amada. Ao ser transportada, um tropeço dos lacaios balançou o caixão e, com o solavanco, soltou-se da garganta de Branca de Neve o pedaço de maçã envenenado que mantinha o sono enfeitiçado. Ao despertar da amada, o príncipe declara seu amor e é aceito pela moça. Convidada à festa de casamento, a madrasta comparece, mesmo corroída pela inveja. Lá porém a espera o castigo: é obrigada a calçar sapatos em brasa e neles dançar até a morte.

Na versão Disney, Branca de Neve é despertada de um modo mais romântico e menos pudico, por um beijo, fruto dos novos tempos. Quanto à malvada, é eliminada pelos anões, que se encarregam de jogá-la do alto de uma montanha. Já que o filme lhes deu personalidades e papéis mais marcantes, não é de estranhar que a vingança também coubesse aos anões, assim como antes haviam se incumbido da segurança da princesa.

Espelho, espelho meu...

A morte precoce da rainha-mãe representa que o filho que nasce não fica com a cara da encomenda por muito tempo: assim que começa a crescer, passa a escolher sua própria carta de cores e matizes. Na versão dos irmãos Grimm, a rainha morre no parto, o que é bem correto, pois a criança que nasce não é nunca exatamente como se sonhou, afinal ela já chega ao mundo berrando, dando mostras de alguma insatisfação. Assim, quem morre no parto é esse ideal de que um filho será capaz de satisfazer plenamente o desejo da mãe.

Nos contos, a mãe má é representada ora por uma bruxa, ora por uma madrasta. Branca de Neve tem o azar de ter as duas, com um detalhe adicional: sua madrasta é bela, sua feiúra é interior. Na cultura medieval cristã, a beleza feminina se identificava ao maligno, à influência do demônio, o que vem a ser o coroamento de uma longa carreira de preconceito para com a mulher. Como os contos de fadas desde sempre foram dessacralizados, nunca foram muito afetados por essa visão cristã da beleza como um problema (como o esconderijo do diabo); a beleza era sempre um bom sinal, e a feiúra, o signo dos maus.

Nisso a madrasta de Branca de Neve é uma exceção,5 mas convive com uma eterna insegurança a respeito de seus atrativos, não lhe bastava ser bela, sua formosura tinha de ser insuperável. A supremacia da beleza da madrasta é objeto de consulta constante a um espelho mágico, a quem ela pergunta:

Dize a pura verdade, dize, espelho meu: Há no mundo mulher mais bela do que eu?

A verdade é que a beleza só existe para um olhar, sem esse reconhecimento ela não faz sentido, por isso o espelho é o complemento necessário da imagem. O olhar no espelho traz sempre uma pergunta e uma resposta. Cada um o contempla tentando se ver “de fora”, buscando decifrar o impacto de sua imagem nos olhos dos outros, interrogando como somos vistos.

Outra fonte de informação a respeito de quem somos é a comparação: é sempre melhor se podemos ser julgados mais lindos, inteligentes ou interessantes que este ou aquele que consideremos digno de admiração, imitação ou desafeto. Em suma, queremos superar alguém que, pelo direito ou pelo avesso, consideremos como parâmetro. Por isso, não basta o espelho responder que ela é bonita, ela tem de ser a mais bela de todas.

Nada mais útil então que um espelho capaz de emitir opinião, se assim fosse não gastaríamos tanto tempo nos perguntando como estamos parecendo. Porém, a melhor resposta ainda é ser amado. A admiração do ser amado, de quem normalmente exigimos que, como o espelho, diga alto e claro o quanto nos aprecia, é o melhor certificado de adequação a este olhar, pois significa que alguém viu, gostou e desejou aquilo que somos. Há moças que terminam nas mãos de um enamorado príncipe, mas nunca cessam de lhe perguntar se são amadas, ainda e de verdade, e não adianta que ele assegure que isso já foi dito mil vezes e que sua opinião não mudou. Não basta ser espelho, tem de falar.

O amante da madrasta é representado por esse espelho mágico, capaz de lhe responder a pergunta a contento. Aliás, ninguém faria uma pergunta dessas para ouvir que a mais bela é a outra, a resposta tem de ser previsível, é apenas uma busca de confirmação. O drama começa quando o espelho responde que a mais bela é a jovem. Até aqui a convivência era possível, o que fica insuportável é justamente a comparação das belezas.

Espelho e caçador, duas faces do pai

Mas que olhar é este que acaba com a paz no lar? O espelho mágico é um olhar pregado a uma parede no quarto da madrasta. Assim deveria ser o homem com quem ela se casou, ou seja, ter olhos só para sua mulher; entretanto, esse homem-espelho consegue ver também a beleza da princesa, sua filha. Um belo dia, o pai, que é também um homem, se dá conta de que sua menina cresceu e foi agraciada com os atrativos de uma jovem mulher. É uma constatação, mas é também o início de uma separação entre pai e filha, ele não mais contemplará sua nudez em vão. A intimidade que um pai podia ter com sua menina antes dessa visão agora é invadida por um constrangimento.

O espelho então enuncia que há uma jovem mulher na casa, sua própria mulher não é mais a única e está ficando para trás. Existem outras histórias centradas no caráter traumático para a jovem do momento em que se explicita esse olhar do pai, por exemplo, no conto Bicho Peludo.6 É inegável que ele contribui para a impossibilidade de permanência no lar da Branca de Neve, mas aqui vamos centrar o enfoque na reação da mãe, ou melhor, madrasta. De qualquer forma, nessa família só há lugar para uma mulher ser desejada. À filha só resta a expulsão, partir em busca de seu próprio espelho, ou seja, de um amor.

Quando ela perde o lugar de única beldade, a fúria da madrasta dá início ao drama. A inveja é o divisor de águas, e ela age rápido: manda sem rodeios que um caçador mate Branca de Neve e traga suas vísceras, que pretende devorar temperadas com o sabor da vingança. A madrasta quer incorporar os atributos da jovem, comer seu pulmão, seu fígado, seu coração (o órgão varia conforme as versões). Comê-la é passar a ser ela, a incorporação7 é a forma mais primária de identificação.

Nessa história, o personagem do pai é uma figura subordinada à madrasta, um olhar preso à parede do quarto. Mas por que ele não poderia ser também representado pelo caçador, como se fossem duas faces da mesma moeda? Afinal, ele se submete à madrasta, mas por outro lado a engana. Diferentemente desta, o caçador consegue ver a moça como uma menina frágil, tem pena dela e a salva da inveja assassina materna. Há uma cumplicidade entre o caçador e a jovem, que minimiza o poder da madrasta e permite a fuga. O mais importante é o fato de a mãe poder ser enganada, dela não ter controle total sobre esse homem. O pai é fraco, pode enganar, mas não reverter o quadro, por isso, não vale a pena ficar em casa por ele. Além disso, é indigno do amor da filha, livra-a da mãe, mas a deixa na floresta à mercê das feras. Nesse caso, o amor do pai é impotente no mundo externo, fica restrito aos muros da casa.

Os caçadores eram nobres na origem, afinal a; caça era um atributo da aristocracia. As crianças de hoje não sabem desse aspecto histórico, mas eles seguem sendo figuras importantes, aparecem como protetores, pois caçar animais selvagens é enfrentar o que há de mais perigoso na floresta. Essa importância é visível na popular história de Pedro e o Lobo, em que o caçador aparece como modelo de identificação viril para os meninos, assim como na eterna Chapeuzinho Vermelho, em que a menina é retirada da barriga do lobo por um caçador.8

Por mais poderes que a bela madrasta tenha, ela não consegue controlar nem espelho, nem caçador. O olhar de um e os atos de outro a traem. O espelho está preso à parede, mas enxerga além do recinto, e o caçador só finge que obedece. Se a mãe fosse perfeita, se sua beleza hipnotizasse o pai, que mais ele quereria além de adorar e obedecer a sua amada? À filha só restaria a opção de tentar se mimetizar à mãe para tornarse também objeto desse amor. É importante que a filha possa recolher elementos de identificação com a mãe.9 Ser como ela em alguns aspectos, mas como ponto de partida, não de chegada. Perceber a limitação do modelo materno empurra ao trabalho de buscar referenciais e vivências que ampliam o horizonte da vida da filha.

É um caminho problemático para a filha quando ela sente uma admiração irrestrita pela mãe ou mesmo quando o amor de seu pai pela esposa é de uma paixão engolfante. Isso relega a moça a duas posições igualmente difíceis: pode tentar se igualar à mãe, perdendo o caminho de construção de sua própria pessoa, ou ainda se identificar com o pai, buscando amar uma mulher maravilhosa assim como a que ele ama. Na segunda escolha, ela encontrará numa solução homossexual a possibilidade de relacionar-se com a perfeição de sua mãe.10

Porém, para haver alguma existência individual, algo que possamos chamar de “eu”, é preciso que saibamos nos diferenciar, particularizar uma forma de ser. Tentar ser igual é uma forma de morte, de anulação, pois, se formos iguais a alguém, seremos essa pessoa, portanto não existirá aquela forma específica que nos identifica. Para a filha, é necessário constatar que o desejo do pai transcende seu amor pela mãe, de forma a que esta não se cristalize como a única forma capaz de suscitar algum desejo.

A moça interroga para onde se dirige o olhar e o desejo paterno, esperando que o pai se interesse por algo além de sua esposa, inclusive que ele reserve algum espaço para perceber que a filha cresceu. Essa questão não é restrita ao campo amoroso ou erótico, a amplitude do desejo do pai pode ser representada por um gosto deste pelo seu trabalho, pelo jornal que lê com dedicação obsessiva, pelo esporte, amigos, leituras, programas de televisão – enfim, tudo o que lembra que ele não tem olhos apenas para sua mulher. O amor da mãe também tem de ser repartido entre o filho e o homem amado. O importante é essa variação, de modo que ninguém, nem filho, nem cônjuge, seja objeto absoluto, capaz de locupletar a mãe ou o pai. A criança interessa-se por aquilo que é importante para seus pais, porque, num primeiro momento está buscando lugar para si no amor deles, mas termina descobrindo um mundo mais vasto, pleno de opções amorosas, de realizações possíveis e variadas formas de realizar seus desejos.

A turma dos anões

Livrada da morte pelo caçador, Branca de Neve se vê sozinha, abandonada na floresta e sem ter para onde ir. Vaga por algum tempo até que o acaso a conduz para a casa dos anões da floresta. Quem são esses anões? Ora, o folclore europeu está cheio deles, são sempre criaturas da terra, ou melhor, das entranhas da terra. São mineradores incansáveis e detentores dos segredos e tesouros do interior das montanhas. Geralmente, são representados como adultos em miniatura, usam longas barbas, são avarentos e não muito amistosos. No nosso caso, se portam muito bem com a heroína e lhe dão casa e comida em troca de serviços domésticos. Ela ganha um lar onde pode ocupar um lugar feminino, mas não sexuado, ela é a dona de casa, mas não é mulher de ninguém, todos a querem e a cuidam, mas não há uma disputa sexual por ela. No filme da Disney, eles competem por sua atenção como um grupo de irmãos, estão enamorados dela, mas como crianças que querem um quinhão maior de sua atenção.

Nos contos de fadas, os anões geralmente estão numa posição onde desejam outras coisas que não o sexo. Eles querem riquezas e raramente cobiçam as princesas, pois estão fora desse domínio das lides sexuais. São como os mais velhos ou como as crianças, eles têm as barbas da velhice e o tamanho das crianças. Digamos que eles podem representar um território fora do exercício sexual (antes e depois), um lugar onde a Branca de Neve não precisa se preocupar com sua beleza. Nesse sentido, é o lar ideal para o momento.11

Temos observado que nos desenhos Disney é constante a presença de figuras infantis representadas pelos animais e, neste filme, também pelos anões (pois todos disputam os cuidados maternos da princesa). Essas figuras funcionam como ganchos de identificação mais diretos para as crianças. Essa inserção é sábia, pois a criança pode sonhar em ser a bela princesa ou o príncipe corajoso no futuro, sendo que no presente ela se permite, como os animaizinhos, participar da trama sem se projetar diretamente nesse desafio que só o tempo lhe designará. Trocando em miúdos, a menina, por exemplo, poderá sonhar com um dia ser a Cinderela, mas no momento se imaginará como um de seus ratinhos de estimação.

A narrativa dos Grimm frisa a importância da igualdade fraterna entre os anões. Por exemplo, o anão que foi desalojado de sua cama pela exausta Branca de Neve – quando ela chega na casa pela primeira vez –, dorme uma hora daquela noite na cama de cada um dos outros, para não sobrecarregar ninguém. Os objetos, as quantidades de comida, os móveis são absolutamente iguais, equanimimente divididos entre todos.

A menina Cachinhos de Ouro invade a casa de uma família, utiliza os objetos e, através deles, se interroga sobre os lugares de cada um num núcleo familiar. Branca de Neve, por sua vez, também invade uma casa, mas descobre nela como é um grupo de irmãos, ou de amigos que são em certos aspectos equivalentes. Não quer dizer que os anões sejam irmãos entre si, pois o relato não esclarece se são um grupo de trabalhadores ou uma família, mas o funcionamento do grupo é tipicamente fraterno.

Para os jovens, passar a maior parte do tempo em companhia de um grupo de pares, sua “turma”, é uma das formas de proteção dos conflitos familiares gerados pela adolescência. A casa da família fica bem difícil de habitar quando os defeitos dos pais são tão chamativos aos olhos dos filhos e vice-versa. Ao mesmo tempo, desde uma posição menos valorizada, fica difícil o exercício de autoridade que os pais ainda necessitam fazer. A conseqüência disso é um ambiente tenso e potencialmente conflitivo, onde lugares hierárquicos são disputados, e pais e filhos passam se criticando, em discussões ou, no mínimo, em pensamentos.

Esses grupos fraternos costumam amparar as primeiras experiências amorosas e sexuais, e bem sabemos o quanto é difícil administrar o tema do amor e da amizade. É sempre constrangedor amar alguém do grupo, fala-se em perder a amizade e sempre que possível se ama alguém de fora, voltando para o grupo quando se está só, para se curar dos fracassos do amor e para tomar coragem para uma nova investida. Os anões, como os bons amigos, são todos da mesma geração, as desigualdades são muito sutis e o sexo fica excluído da relação. Por outro lado, como ocorre no grupo adolescente, Branca de Neve se prepara ali para transitar do olhar e do desejo do pai para o encontro com seu príncipe, e os anões são parteiros desse processo.

A mãe bruxa

A perversidade da madrasta de Branca de Neve e sua determinação inamovível de livrar-se da enteada obrigam-nos a tentar entender qual a origem de tanto ódio. Só as rivalidades femininas, o pânico de ser superada pela mais jovem seriam suficientes?

Acreditamos que aqui temos retratado mais os sentimentos da filha pela mãe do que o contrário. As meninas na primeira infância são tão amorosamente dedicadas às suas mães como os meninos. Porém, enquanto estes continuam amando alguém similar à mãe pelo resto da vida (desde, é claro, que sejam heterossexuais), elas terão de abrir mão dessa modalidade amorosa, para experimentar com o pai os rudimentos do que será seu objeto amoroso heterossexual no futuro. Dos caminhos e percalços deste enlace amoroso, nos ocuparemos no capítulo seguinte. Aqui pretendemos entender o que acontece quando esse primeiro amor das meninas com a mãe acaba.

Geralmente, esse primeiro amor com a mãe sucumbe em meio a um mar de queixas, acusações e mágoas. A menina desvincula-se da mãe acusando-a de tê-la abandonado, descuidado e preterido. Tem também queixas de que a mãe não a dotou dos atributos (fálicos, dirão os psicanalistas) de que ela precisava para ser valiosa e escolhida na sua preferência, por fim ainda acusa a mãe de ser ela própria castrada e desvalida, incapaz de dar-lhe o que ela necessita. Essas queixas se enlaçam às queixas relativas ao desmame, de ter recebido pouco leite ou por tempo insuficiente.

Muitas dessas ruminações são comuns a meninos e meninas, pois a mãe sempre deixa a desejar. Como vimos antes, é porque este amor materno não é absoluto, nem locupleta ninguém, que um filho sente necessidade de crescer, desejar além dos primeiros vínculos e partir. Mas entre as mulheres essa falta materna acaba sendo o combustível que faltava para que elas incinerem os restos de um amor que terá de sucumbir. Freud escreveu em 1932: “não conseguiremos entender as mulheres, a menos que valorizemos essa fase de vinculação pré-edipiana à mãe”.12 Situações como a rivalidade mortífera entre a madrasta e a enteada desse conto nos obrigam a concordar. Parece que há algo de raivoso nas relações entre a mãe e a filha, senão na prática, pelo menos nas fantasias de que essas histórias se incumbem de representar.

A menina funciona como a raposa da fábula que colocava todos os defeitos possíveis nas uvas que não conseguia alcançar e terminava concluindo que “as uvas estão verdes”. Esse amor materno, que ela não levará consigo para sempre, que ela sente que está perdendo lugar, será desqualificado, criticado como as cobiçadas e inatingíveis uvas da raposa. O expediente para livrar-se da mãe é acusá-la de todo o rancor que a filha sente por esta que a está abandonando. Mais uma vez temos uma projeção, onde se atribui ao outro aquilo que sentimos.

A forma pela qual a bruxa vence Branca de Neve (parcialmente), através da maçã envenenada, diz respeito a essas queixas da filha, as quais podem ser encontradas nas associações livres das pacientes em análise: o medo de ser envenenada pela mãe, assim como os inúmeros distúrbios alimentares, como as anorexias nervosas, nos quais todo alimento envenena. A mãe é a primeira fonte de alimento e os assuntos do estômago sempre lhe serão de certa forma alusivos. Ser envenenada é também uma forma de lhe dizer que seu leite é ruim, que seu alimento não nutre, mata. Mais uma vez é a mágoa que dá o tom do texto da filha.

Por tudo isso, as mães farão papéis extremamente cruéis quando a heroína do conto for uma moça, serão finalmente derrotadas e cruelmente castigadas. Quanto aos pais, quando fazem suas maldades, sempre encontram algum tipo de conciliação ou perdão no final. Realmente, ser mãe é desdobrar fibra por fibra...

A maçã envenenada

O espelho tudo sabe e acaba revelando à bruxa que a beleza de Branca de Neve segue viva, assim como sua localização. A madrasta resolve que se algo tem de ser bem-feito tem de ser feito pessoalmente e parte para envenenar a princesa. Disfarçada de velha ou de camponesa, tira do seu arsenal de maldades um veneno poderoso que oferece a ela, sob a forma de uma maçã.

O disfarce de velha é uma sábia forma de enganar Branca de Neve, pois dos velhos pouco há para temer. Costumeiramente, os adolescentes encontram nos avós abrigo para os conflitos resultantes do narcisismo ferido dos pais. No velho, podem reencontrar o conforto daquele amor materno perdido, administrado por quem já se apaziguou relativo aos conflitos do sexo. A camponesa seria uma mulher sem os atrativos de uma nobre, tosca e voltada para o trabalho, portanto fora do circuito da sedução.

Quando pedimos para crianças fazerem desenhos de árvores, qualquer que seja, é incrível a recorrência da macieira, que parece ser um arquétipo de árvore. A maçã ficou, dentro da nossa tradição, inseparável do mito de Adão e Eva, como símbolo de desejo proibido. É morder essa maçã que altera o destino de Branca de Neve, morre uma menina e nasce uma mulher, o veneno é a sexualidade. Porém até aquele momento, a jovem se mostra totalmente casta. A madrasta leva até ela a primeira tentação, sob a forma, é claro, do fruto proibido mais conhecido da tradição ocidental.

Fica a questão do que a feiticeira foi fazer lá, pois a jovem já não perturbava seu reinado, escondida no fundo da floresta, brincando de mamãe junto com a turma dos anões. Porém, uma vez que o espelho lembrou que sua beleza ainda conta, à mulher mais velha coube fazer o resgate.

A cena não é incomum no cotidiano de mães e filhas. Na maior parte das vezes, a vida erótica da jovem é bem maior na fantasia de sua mãe do que na prática da vida da filha. A mãe supõe acontecimentos que a jovem nem sequer ousa pensar, quanto mais dizer. Em determinada etapa do início da adolescência, a mãe passa antecipando em seus pensamentos a principiante sexualidade que sua jovem filha ainda não sente condições de exercer. É isso que a bruxa foi fazer na casa dos anões, na história vai para matá-la, na prática se trata de fazê-la despertar para o desejo sexual, para a tentação. Tanto é assim que é sob os efeitos da maçã que a beleza de Branca de Neve se expõe, tornando-se disponível para o olhar do príncipe. Assim, a mãe é importante fonte de identificações, nas quais a filha bebe a ciência dos atrativos femininos, afinal, ela lhe possibilita afinar a cintura, a fazer penteados diferentes e a se mostrar disponível para ser amada. Mas a história lembra que esse ensino também é acompanhado de rivalidade e de inveja pela mulher mais velha. Talvez essa seja a origem da agressividade latente e da rivalidade sutil que permanece na relação das mulheres entre si, independentemente da idade e do tipo de vínculo.

É importante a ressalva de que, ao associar essas questões da gênese da identidade feminina à história da Branca de Neve, jamais nos ocorreu que houvesse qualquer intencionalidade no sentido da representação desses dramas num conto de fadas. As origens da preservação dessa trama se devem a múltiplos fatores, dos quais apenas podemos aqui conjecturar algumas facilitações, ou seja, uma possibilidade de comparação com certas ocorrências psicológicas constatáveis na nossa subjetividade contemporânea. Nesses casos, permitimo-nos certo tipo de livre associação, aproveitando a ocasião para revelar a trama que se pode associar a alguns aspectos do conto.

Em seu sono letárgico, Branca de Neve seduz passivamente. O fato de permanecer corada é a marca do feitiço, é o que mostra que ela não está morta, quando as cores da vida abandonam o corpo. Tão viva ela está, que sua imagem seduz o príncipe, sobre quem não temos motivos para pensar que seja um profanador de cadáveres, um necrófilo. Ele é apenas mais um homem que se apaixona pela imagem de passividade da mulher. Branca de Neve em seu esquife de cristal é a imagem de uma mulher entregue ao desejo de seu príncipe.

Estar corada é uma expressão da vivacidade do desejo, que nos esquenta quando ruborizamos. A cor vermelha também costuma tingir as faces dos adolescentes, quando são vistos, mencionados ou abordados por alguém que lhes interessa ou consideram. Portanto, essa morte de Branca de Neve mais expressa a possibilidade de ser vista do que um sono propriamente dito. O feitiço da madrasta torna possível que sua beleza possa ser exibida e desejada, disponível para o amor na sua urna transparente.

Essa maldade que sai pela culatra não é uma contradição do conto, é apenas uma prova de que para uma jovem a inveja de sua mãe não é necessariamente nociva. Essa inveja é um móvel importante de confirmação de suas qualidades femininas, uma espécie de fermento que permite a expansão de seus encantos. Além disso, deve ficar bem claro que a jovem a ser invejada está em posição bem diversa da menininha que a mãe enfeitava para sua própria glória. A criança rosada, arrumada com babados e fitas, deve ser envenenada, deve morrer, para que fique claro que agora só restou a jovem cujos atributos não se endereçam à mãe, mas sim a um príncipe encantado de amor pela sua imagem.

Enfim, convém ressaltar a ligação dessa princesa com as cores, desde as características com as quais deveria nascer, até as que conservou em seu sono enfeitiçado. Tanto uma como a outra são as cores com as quais a mãe a pintou, as primeiras do desejo da rainha boa, as segundas as da inveja da madrasta. Seja pelo direito ou pelo inverso, temos o fato de que o amor materno será sempre uma espécie de matriz que definirá a carta de cores dos amores que o sucederão.

Bela, porque adormecida

A história deste conto tem, resumidamente e até onde a prospecção histórica alcança, três momentos. Começa em Giambattista Basile, com o nome de Sol, Lua e Tália13 (1634); encontra outra versão consagrada em A Bela Adormecida do Bosque,14 de Perrault (1697); e assume a forma pela qual a conhecemos hoje em A Bela Adormecida 15(1812), dos irmãos Grimm. Em 1959, os estúdios Disney produziram sua versão em desenho animado.

Na história de Basile, Tália é uma princesa que nasce com a mesma recepção festiva de suas similares. Preocupado com seu destino, o rei manda consultar astrólogos e magos, que se reúnem para lhe dar uma triste notícia: sua filha morrerá sob o efeito de uma lasca de linho. O rei manda retirar de seu palácio tudo o que representasse risco para sua preciosa filha. Em certa ocasião, porém, ela vê uma mulher fiando, interessa-se pela atividade e pede para experimentar. É nessa ocasião que uma lasca presa ao linho entra sob sua unha, e ela cai morta. Desconsolado, o rei a veste suntuosamente, coloca-a num trono de veludo e a deixa num de seus castelos no campo, que manda fechar, como um grande monumento funerário. Certo dia, outro rei que caçava por ali perdeu um de seus falcões, que foi visto entrando no castelo. À procura da ave, ele entrou no castelo abandonado. Quando chega à sala do trono, se depara com a bela princesa desacordada e começa a gritar para despertá-la. Mesmo que ela não reaja aos chamados, ele se enche de desejo pela jovem, leva-a para um leito e a possui. Ao sair do castelo, envolve-se em seus assuntos, esquecendo-se da amante adormecida.

Nove meses depois, Tália dá à luz a um casal de gêmeos, que, auxiliados por duas fadas, são colocados para mamar em seus seios. Certo dia, buscando os mamilos da mãe, os bebês começam a lhe sugar os dedos, possibilitando que a farpa saia de sua unha e ela acorde. Tália desperta e encontra suas duas pequenas jóias, que chama de Sol e Lua, porém ainda não compreende o que lhe ocorreu. O castelo é um palácio encantado, ela e seus filhos têm tudo de que precisam, mas nunca encontram ninguém. Quando o rei finalmente se lembra de Tália, comunica que sairá para caçar e volta a seu castelo. Feliz em vê-la desperta, se prolonga junto dela por muitos dias, enamorado dela e de seus dois belos filhos. Conta-lhe tudo o que aconteceu e promete que encontrará forma de levá-los para seu reino.

O rei está tão enamorado que em sonhos constantemente chama seus nomes, o que motiva sua esposa a investigar quem são, desconfiando que esta seja a razão da longa permanência do rei na floresta. Quando descobre o segredo de seu marido, pensa numa maneira de se vingar e se livrar dessa incômoda rival. Por intermédio de um secretário do rei, ela envia para Tália uma suposta missiva do soberano, solicitando-lhe que confie Sol e Lua a esse homem, que os levará para junto do pai, pois ele sentia falta e queria vê-los. Era uma grande cilada montada pela esposa ciumenta, que pretendia servir os filhos de seu marido como iguarias para o próprio pai. As crianças salvam-se graças ao cozinheiro, que pratica a tradicional substituição de crianças por caça escondendo-as em sua casa. Enganada, a malvada diverte-se, acreditando que está enganando seu marido. Passado um tempo, ela manda buscar Tália, que obedece prontamente, pensando tratar-se de um chamado do rei. Para a rival, a rainha tinha preparado uma fogueira, mas Tália se põe a gritar, e o rei chega a tempo de alimentar as chamas com a perversa mulher e o secretário traidor. Saindo de cena a rainha, Tália se torna a nova esposa do rei, e este é o final feliz. Neste conto, a ênfase está mais na relação de Tália com o futuro marido que naquilo que a adormece.

Já A Bela Adormecida do Bosque, de Perrault, dá contornos mais precisos para o nascimento da heroína, assim como compartilha com o conto de Basile da segunda parte. Como escrevia para a Corte, o francês deu um lustro moral a essa história, que, convenhamos, é bem picante. Aqui a perseguidora da Bela Adormecida não é a esposa traída, mas sim a sogra. Porém, não acreditamos que as transformações produzidas por Perrault visavam apenas à maquiagem moralista da história. Na verdade ele combinou outros elementos dessas inúmeras partes, semelhantes em tantas histórias, que se articulam para formar os diferentes contos de fadas.

Em Perrault, a menina foi muito desejada por seus pais, tanto que quando chegou foi motivo de grandes comemorações. Numa das festas, no entanto, acontece a maldição. As fadas foram convidadas para o batizado, recebendo cada uma talheres de ouro do rei; elas, por sua vez, ofereceram à criança dons, como a beleza, a bondade e a graça. Mas a corte esqueceu de convidar uma fada, tão velha e isolada que inclusive a julgavam morta. Mesmo assim ela foi ao evento, mas sente que não foi bem recebida, por isso amaldiçoa a menina, para que morra quando tocar num fuso. Por sorte, uma jovem fada ainda não oferecera à princesinha seu dom e usou então sua magia para amenizar a maldição: graças a ela a morte se transformou num século de sono.

O rei manda queimar as rocas do reino. Mesmo assim, 15 anos depois, ela encontra uma velha (que não sabia da proibição) fiando linho numa torre do castelo. A menina pergunta, toda a curiosa, o que era aquilo e pede para experimentar o instrumento que para ela era novidade. Mal pegou o fuso, feriu-se e caiu num sono centenário. Quando ficam sabendo da tragédia, as fadas encantam o castelo para que todos, menos os pais, durmam junto com a princesa. Magicamente, a vegetação em volta faz uma cerca de espinhos, que ninguém consegue ultrapassar.

Ao fim de cem anos, um príncipe que foi caçar por aqueles lados encontrou o castelo. Sobre este castelo havia uma lenda de que era habitado por uma beldade adormecida, para cujo resgate estava destinado um príncipe. Entrando no castelo sem encontrar nenhum obstáculo, pois a vegetação espinhosa se afastava só para ele e se fechava em suas costas, encontrou a princesa. Enquanto ele a contemplava pasmo com sua beleza, ela despertou, pois havia chegado o fim de seu encantamento. Como a atração é recíproca, eles começam um romance. Esse caso de amor fica clandestino por dois anos, o tempo necessário para que nasçam um casal de filhos, chamados de Aurora e Dia. Quando o pai do príncipe morre, ele herda o trono e assume publicamente o relacionamento, para que não lhe fosse exigido casar novamente.

Tempos depois, surge uma guerra, o rei é obrigado a partir, deixando o reino e a esposa aos cuidados de sua mãe. Infelizmente, a sogra de Bela Adormecida era descendente de uma linhagem de ogros e quer comer os netos. Ela ordena matá-los, mas o criado incumbido da tarefa lhes poupa a vida, oferece carne de caça para a avó canibal e os oculta em sua casa. Não contente, ainda manda preparar um prato com a carne da nora, que é salva da mesma forma que seus filhos. Felizmente, as tantas artimanhas para enganá-la vão dando certo; no final, o marido volta, e a mãe malvada, surpreendida em sua vileza, se atira num poço de víboras onde encontra seu fim.

Os irmãos Grimm nos legaram A Bela Adormecida que hoje é a versão mais conhecida dessa trama. A ênfase está na relação com os pais, o desejo de ter a filha, sua posterior maldição e seu despertar. As aventuras que ocorrem após o despertar da jovem, simplesmente inexistem nesse relato. No conto, a seqüência é conhecida por todos nós: um casal real espera ansiosamente para ter um herdeiro, um dia uma rã aparece durante o banho da rainha e lhe anuncia que ela terá uma filha. Dito e feito, nasce uma bela menina. Os reis dão uma grande festa de batizado e convidam também as fadas. Como o rei não tinha pratos de ouro para todas (só tinha 12), uma ficou de fora. Essa fada excluída, a décima terceira, chega à festa mesmo sem ser convidada e, na sua fúria, amaldiçoa a menina para que não viva mais que 15 anos. Ao chegar a essa idade, ela estaria condenada a espetar o dedo num fuso e morrer. Por sorte, uma das fadas não havia dado o seu dom e converteu a morte em um sono que imobilizaria a princesa por cem anos.

Nessa versão, todo o castelo, incluindo seus pais, adormece junto com a princesa e começa a crescer uma cerca de espinheiros ao redor do castelo, que o cobre inteiramente. Cria-se uma lenda no local que no tal castelo encantado vivia a Bela Adormecida. E, desde então, assim ficou sendo chamada. Muitos príncipes tentaram chegar ao castelo, mas acabavam desistindo de atravessar o espesso espinheiro. Alguns que insistiram acabaram morrendo. Quando o prazo estava para acabar, surge um príncipe que não tem medo de atravessar a cerca de espinhos. Na verdade, não precisa fazer grandes esforços, ele é de certa forma escolhido, pois ao chegar perto do espinheiro, este se abre em flores e o deixa facilmente passar. Encontrando a beldade que lhe tinha sido predestinada, ele fica subitamente apaixonado e a beija. Após o beijo todo o reino desperta, e eles se casam e vivem felizes até o fim de seus dias.

O desenho dos Estúdios Disney traz-nos uma Bela Adormecida já num viés romântico, pois a livra dessa passividade absoluta. Aqui os dois apaixonados se escolhem antes que ela sucumba ao feitiço. Nessa versão, ela fica escondida, aos cuidados das boas fadas, numa cabana na floresta até os 15 anos para estar a salvo das maldades da bruxa. Desde o começo, a malvada é uma bruxa e não uma fada – uma velha senhora que havia sido prudentemente excluída da festa, pois dela não se esperava nada de bom. Durante seu tempo de esconderijo na floresta, a princesa encontra, por acaso, o príncipe; os dois jovens, sem saber que já estavam prometidos entre si pelas suas famílias, se apaixonam. Quando vão ter de cumprir o desígnio dos pais, já se apropriaram do desejo deles, e então o final é feliz, pois tudo é conciliado.

Mas Disney opera algumas mudanças importantes: o enredo ganha ares de Rapunzel, pois a bruxa tranca a Bela Adormecida num castelo inacessível, os espinheiros estão a seu comando, e ela mesma vira um dragão que impede a passagem do príncipe. Agora o príncipe não encontra um caminho livre, ele tem de vencer os espinheiros e matar o dragão, com uma espada mágica fornecida pelas fadas, para chegar à princesa e desencantá-la junto com seu reino. Embora a salvação esteja na força e na determinação do homem que escolheu essa princesa, ela já o havia explicitamente escolhido também. Esse desenho animado não exime os heróis dos desígnios do destino, de serem joguetes na luta do bem contra o mal, mas se empenha em ressaltar sua capacidade de determinação, tanto na escolha amorosa dos jovens quanto na capacidade de luta do príncipe.

Uma passividade absoluta

Das princesas dos contos de fadas, a Bela Adormecida é a mais passiva, a começar por seu nome. Sua característica principal é a beleza inerte, objeto de cuidado e de contemplação por parte da Corte e do seu príncipe, que vem a conhecê-la no sono enfeitiçado. Ela compartilha dessa sedução passiva com a Branca de Neve e com Tália, que cativam seus príncipes nesse estado de mortas. A Bela Adormecida tem como túmulo o seu palácio enfeitiçado, o príncipe chega até ela deparando-se com os criados adormecidos, surpreendidos pelo sono mortífero que os condenou a só despertar junto com a princesa. Dessa forma, não só a mulher espera imóvel, como seu mundo aguarda um novo amo para voltar a girar. A entrega da Bela Adormecida é completa, nenhuma princesa oferece tanta passividade a um homem como ela.

Apreciamos os amados em geral dormindo, não há mãe que não tenha ataques de ternura ao ver seus anjinhos adormecidos. É extremamente sedutora a visão dos rostos corados, os lábios entreabertos, a respiração tranqüila dos seres entregues ao sono, sem controle sobre seus corpos, inconscientes da força dessa presença apaixonada que os possui com os olhos. O filho e o ser amado adormecidos são perfeitos, são possessões inermes, desarmadas, à mercê da nossa idealização.

No amor, a mulher parece se colocar sempre o dilema de que será bela enquanto se fingir de morta. Ela própria tende a narrar, para si e para os outros, uma situação amorosa dando ênfase no impacto que produziu no outro, no desejo que suscitou, mais que daquele sentido por ela. Embora as mulheres modernas possam incluir seu desejo no relato do desenlace de uma cena de amor, ou seja, dirão se sentiram interesse ou não, a movimentação dos atores tenderá a que ela seduza e ele conquiste. Mesmo que esses papéis amorosos sucumbam ao grande questionamento que vêm sofrendo nos últimos anos, a questão da passividade e da atividade conserva sua atualidade.

A passividade não se define pela ausência de ação. Uma atitude silenciosa pode ser extremamente ativa, basta, por exemplo, silenciar sobre algo em que o interlocutor deseja muito uma resposta, para perceber quanta atividade pode haver numa ausência de palavras ou atos. Se alguém diz ao outro que o ama e este se cala, gerando dor e angústia no primeiro, temos uma situação em que ambos foram ativos. A passividade depende de que alguém se envolva em um evento sem se sentir necessariamente sua causa. Ou seja, significa sofrer em sua pessoa ações ou desejos que não antecipou, que não supôs que pudessem ocorrer.16 Nesse sentido, Bela Adormecida foi realmente passiva, ocupou a posição paradigmática da feminilidade tradicional, aquela que conduzida pelo pai é entregue nos braços do marido na cerimônia de casamento. O simbolismo desse gesto é como o de um objeto, que passa de mão em mão, sem ter um querer que defina sua trajetória.

Não há mulher que possa ou queira plenamente se instalar nesse lugar passivo. Antes de se deitar no esquife, cuidará dos detalhes do cenário, acompanhando com o canto do olho cada movimento do príncipe. Mas essa história dá conta de um resto infantil que se imiscui na gênese da sexualidade feminina: a importância de ser desejada pelo pai. Não há melhor resposta para o desejo de ser desejado que o fato de ser escolhido quando não tínhamos intenção de seduzir. As histórias de amor mais românticas trazem seguidamente relatos em que uma mulher é surpreendida pelo desejo de um homem quando estava ocupada com outra coisa, distraída em seu cotidiano nada sedutor. Nada, então, confirmará mais que somos interessantes para um outro do que sermos fisgados pelo interesse deste antes que qualquer reciprocidade se esboçasse. Assim, uma menina gostaria de perceber o impacto de seus encantos sobre o pai sem que tivesse de passar pelo constrangimento de seduzi-lo, ou de entrar em qualquer disputa com a bruxa da sua mãe. Dessa forma, a passividade passa a fazer parte da cena erótica humana, mais enquanto uma fantasia que uma posição propriamente dita. É também enquanto fantasia que a passividade assumiu lugar privilegiado na erótica feminina, traduzindo-se num intenso desejo de ser desejada, arrebatada e possuída sem ter de fazer nada para provocar a cena.

Existe uma passagem que pode dar uma idéia do quanto essa passividade tem de ativa. Numa das versões dos irmãos Grimm, a Bela Adormecida é chamada de Rosa das Urzes, em referência às flores do espesso espinheiro. Tanto nos Grimm quanto em Perrault, esse espinheiro impedia a passagem de muitos interessados, mas quando chegou o escolhido, ele se abre com facilidade. Aquilo que espinhara tantos e que impedia o acesso à princesa, agora se acha aberto como um corredor. É difícil não pensar tais espinhos como uma proteção da princesa que se escondia ao toque e ao olhar, as descrições enfatizam que a cerca cobria todo o castelo. Ou seja, só quando ela quiser, o caminho estará franqueado para que o outro o faça ativamente. Portanto, é ativa na decisão de abrir o flanco, deixar-se penetrar.

Como existem tantas histórias que alertam sobre os perigos oriundos dos poderes exercidos pelas mulheres, que aliam sua força à sabedoria e às frustrações da maturidade, não surpreende que os príncipes fiquem seduzidos por aquelas que são belas e estão inativas, indefesas. Veremos adiante o quanto Cinderela é diferente dessas princesas. Ela luta para ir ao baile, invoca com seu sofrimento o feitiço que a embeleza, encomenda o vestido, assim como entra e sai de cena mostrando que a sedução é feita de revelar e ocultar alternadamente.

O sangue necessário

A reviravolta da história é feita, como é comum nesse tipo de relato, por alguma transgressão: a Bela Adormecida se pica porque não devia tocar o fuso. Por mais que a proibição tenha tido o objetivo de protegê-la, assim como a imposta à Branca de Neve, de não abrir a porta para estranhos, trata-se de alguma forma de uma ordem que não é obedecida. Essas mocinhas se submetem ao perigo porque são desobedientes. Elas fazem o que não devem, mas uma maldição anterior é a origem da interdição, e é nisso que devemos nos centrar para deslindar a história. A maldição prescreve algo que o futuro não poderá evitar, como crescer, amar e partir.

Uma fada, uma bruxa ou genericamente uma mulher má, não quer que a princesa viva mais de quinze anos. Ao completar essa idade, espetará o dedo em uma roca, sangrará e morrerá. Aqui, mas de uma forma bem disfarçada, a história se aproxima da de Branca de Neve. É uma substituta malévola da mãe, movida pela força do ódio por não ter um lugar reconhecido, por ter sido esquecida, que rogará uma praga contra a transformação de Bela Adormecida em mulher.

Na época em que esses contos faziam parte da tradição oral, acreditava-se mais na eficácia mágica das palavras. Rogar uma praga era realmente um perigo e, caso alguém proferisse uma maldição, o objeto da ofensa estava fatidicamente exposto e necessitava de um contra feitiço. Nós nos afastamos desse funcionamento, mas seguimos acreditando inconscientemente que, se alguém nos quer mal, isso pode, de alguma maneira, nos afetar. As pragas e o mau-olhado ainda fazem as suas vítimas. Vindo então de uma fada, os pais de Bela Adormecida tinham todos os motivos para se alarmar com a maldição.

A roca era um objeto absolutamente indispensável do cotidiano das mulheres; depois de cozinhar, tecer era a ocupação feminina por excelência. Vários são os contos em que até mesmo os reis escolhem por esposas boas fiandeiras.17 As mulheres foram as primeiras artesãs, inicialmente da cerâmica e depois da tecelagem; dominar esse ofício era próprio da condição feminina. O fato é que o rei não quer saber de nada que tenha a ver com fiação e tenta proteger sua filha do inevitável, queimando todas as rocas do reino. Mas o destino nesses contos sempre confirma sua força: uma única roca esquecida numa remota torre qualquer é suficiente, a menina a encontra e, maravilhada, aproxima-se do fuso, cumprindo-se a previsão. A princesa cai num sono profundo.

Antes de tudo, este é um conto sobre a inexorabilidade do destino. Existe uma fatalidade que vai acontecer sejam quais forem as precauções tomadas. Mas, antes de pensar em pessimismo fatalista, convém conjecturar a respeito do que é mesmo o inevitável. É inevitável sangrar. Ser mulher é conviver com sangramentos incontornáveis: o primeiro é a menarca, seguida das regras mensais; e o segundo, para as que começam a ter vida sexual, é o decorrente do rompimento do hímen. O ato desesperado dos pais da Bela Adormecida pode ser visto como uma tentativa de evitar a menarca, ou melhor, todo esse derramamento de sangue que lhes arrebatará a criança e fará dela uma mulher. A menarca marca, designa o fim de uma era onde a mãe é a mais bela entre as mulheres, e o pai é soberano no coração da filha, não há pais que abram mão dessa admiração de bom grado. A mulher que surge dessas gotas de sangue dedicará seus encantos ao príncipe que virá arrancá-la de dentro do reino do pai.

As gotas de sangue derramadas na roca dão início ao efeito de um feitiço que representa a irreversibilidade das transformações próprias da puberdade. Não se determina o crescimento dos seios, dos pêlos pubianos, o início das regras. Rebeldes ao livre-arbítrio, eles escolhem a hora e a forma de se instalar no corpo da menina. Ela poderá, no futuro, usar esses atributos para sedução, mas esse momento não chega junto. No início, essas novidades são secretas e incômodas possessões podem ser vividas como certa maldição.18

Convém lembrar que a boa rainha que concebe Branca de Neve o faz a partir da contemplação de três gotas de sangue derramadas na neve quando picou o dedo com uma agulha de costura. A jovem mulher que devaneia com um bebê, que um dia a fará feliz, é a continuação dessa história da menina que cresce e, às custas de sangue, se torna mulher. Afinal, haverá recompensas pelo sangue derramado: o príncipe e o filho sonhado.

Outro viés interpretativo pode ser tomado: se a questão é evitar o crescimento e a sexualidade, que lugar é esse onde não se pode colocar o dedo? Essa proibição pode evocar outra, bem similar, dessa vez dirigida à atividade de colocar o dedo num lugar proibido, a masturbação. Afinal, essa é uma prática que a levará a pensar em coisas bem longe dos pais, isolando-se em busca de prazeres que os transcendem. Desde Tália, é sempre o dedo, algo que não deve tocar ou ser tocado sob pena de paralisar a heroína. Por isso, é bem possível que esse dedo seja o mesmo utilizado para a exploração sexual pelas meninas. A roca aqui volta a ser um signo mais amplo, é também uma atividade solitária, manual, que imprime na máquina uma certa agitação rítmica, o que pode também sugerir um paralelo simbólico com a atividade masturbatória.

A morte necessária

os ritos de passagem, em várias tradições, existe uma repetição facilmente constatável: a passagem da existência anterior para a que se terá pós-ritual. A vida depois do rito de passagem é separada da anterior por uma morte simbólica e, não em poucas tradições, os neófitos até ganham um novo nome, pois se trata mesmo de uma nova existência. Como são sociedades com menos degraus etários que a nossa, morre a criança para emergir o adulto, sem fases intermediárias. O que entendemos por adolescência, numa sociedade ritualizada, pode se resumir a uma noite na floresta, a alguma mutilação ou prova que se tenha de cumprir. Quando existe um ritual, não há nuances, o antes e o depois não deixam lugar a dúvidas. Antes da cerimônia o sujeito era criança, depois é adulto e ponto, vai responder pelos seus atos de outra maneira, vai ter outro estatuto social e sexual, vai estar pronto para o que quer que seja considerada a vida adulta.

A partir da sociedade moderna, ficou estabelecido que, entre a infância e a vida adulta, haverá o período cada vez mais prolongado da adolescência. Essa é a época de um grande sono, em que os sujeitos estão vivos, mas ausentes do mundo ao qual pertenciam, sendo que ainda não despertaram no tempo que será seu próprio futuro. Esses belos adormecidos provavelmente têm contribuído para a preservação das histórias de princesas adormecidas, já que elas seguem existindo, agora com novos significados. Atualmente, a adolescência é a época de ser o que todos cobiçam: jovem, belo e com todas as possibilidades em aberto. Para nossa sociedade, o jovem parece ter o mundo a seus pés.19 Mesmo assim, é válida a metáfora de tal período como um sono. O adolescente parece adormecido para o mundo dos adultos, mas ele não está nada parado: em seu retiro, seja o quarto, o grupo ou o hobby, praticará frenética e entusiasticamente qualquer coisa que o engate, se entregará ao amor como nunca, dedicará a seus amigos mais tempo do que nunca, odiará ferozmente a todos os que dele discordam. Portanto, fica estranho dizer que essas criaturas dormem.

O longo sono da Bela Adormecida, esse retiro da vida pública, garante que ela de alguma forma morra para sua família e renasça para o exercício da sexualidade, num tempo diferente daquele vivido por seus pais. É interessante lembrar que as duas versões clássicas, de Perrault e dos irmãos Grimm, apresentam diferenças importantes relativas a esse tema da morte e do renascimento.

Na narrativa de Perrault, a jovem é deixada em seu adormecido castelo em companhia da criadagem, enquanto seus pais, tristes pela perda, partem para viver seu tempo, cuidar da vida e do reino. Quando ela desperta, a época é outra, seus pais não existem mais, o rei do lugar mudou e não pertence à sua família. A história prossegue além do despertar da princesa: ela casa com seu príncipe e tem dois filhos, ficando essa relação por dois anos na clandestinidade.

Escrita mais de um século depois, a versão dos irmãos Grimm, que foi utilizada pelos Estúdios Disney, conta que os pais adormecem com a filha e despertam com ela para o casamento e a felicidade eterna. A história de Perrault dá mais espaço para interpretações e seria interessante pensar por que permaneceu a versão resumida.

A tendência natural é que pais e filhos vivam tempos diferentes. Os filhos nunca compreenderão como era o ambiente que abrigou a infância e a adolescência dos pais; e estes, por sua vez, em muitos casos pouco saberão do tempo de maturidade dos filhos, afetados pelas limitações da velhice ou varridos de suas vidas pela morte. Como na história de Perrault, não há concomitância na vida de pais e filhos, há alternância, substituição. De alguma forma, pais e filhos se perdem mutuamente, habitam tempos distintos. Quando uns acordam, outros já partiram. Normalmente, o filho lembra do que gostaria de ter dito, ou perguntado aos pais, apenas depois que estes já se foram. A comunicação entre pais e filhos sempre padece desse desencontro temporal.

Além disso, é ilusório pensar que os pais entregam de bom grado seu filho à vida amorosa, abrindo mão daquele que nasceu como seu objeto de desejo. As anedotas sobre os sogros, principalmente sobre a sogra, são esclarecedoras. Uma vez assumida publicamente uma relação, ainda há que separar o consorte de seus pais, em geral de forma traumática.

A perenidade da versão resumida, na qual os pais despertam com a filha, não ficando claro que o tempo de maturidade dos jovens coincide com o de declínio dos mais velhos, diz respeito à instalação do envelhecimento como um tema tabu. O permanente elogio dos encantos da adolescência na sociedade contemporânea (que preservou a versão dos irmãos Grimm) torna-nos um coletivo sedento de água da fonte da juventude. Face ao declínio da fé na vida eterna e à valorização da vida de cada indivíduo, o prazo de uma existência se revela curto para atingir a felicidade e o sucesso necessários. Não há ser humano que não queira prorrogação.

Fechar a porta do castelo e pensar que os pais não estarão mais lá por ocasião do despertar da filha é uma cena insuportável para os contemporâneos. Hoje queremos viver todas as fases com o maior grau de juventude possível, leia-se, com isso, com o maior grau de distância da morte possível. Para os filhos também é assustadora a idéia de acordar quando seus pais já morreram, é melhor crer que eles seguirão protegendo por prazo indefinido.

Os estudos de história social têm nos oferecido testemunhos de um crescimento da importância da família nuclear para os indivíduos. Outrora o despertar junto com a criadagem do castelo, garantindo seu lugar social, era uma referência identitária suficiente, hoje não há lugar social garantido para ninguém, todos os referenciais de identidade são relativos e pouco duráveis. Nesse contexto, a importância dos familiares na condição de testemunhas, capazes de reconhecer o indivíduo como sendo ele mesmo, apesar de suas transformações, é necessária. Os pais devem sobreviver à transformação da criança em adulto. Isso, porém, não invalida que algum tipo de morte simbólica ocorra nessa transição.

O sono necessário

O conto, na versão de Perrault, tem dois momentos de adormecimento, de latência. O primeiro deles é o sono da Bela, quando cem anos a separam da criança que foi um dia. O segundo é o período de dois anos em que a jovem e seu príncipe mantêm o casamento em segredo. O fato de a relação ficar abrigada, oculta no castelo já desperto, mas adormecido para o mundo, estende a ela os benefícios do sono. A moça acordou para o amor e para o sexo, mas para o mundo é como se ela ainda dormisse, pois ninguém sabe deles, representando um segundo tipo de latência.

O primeiro período de cem anos de adormecimento é a parte essencial desse conto, que não se perde em nenhuma versão. Esse século de sono simboliza aquele distanciamento que separa em dois tempos a vida de pais e filhos. Em sua separação, imposta pelo crescimento, é inevitável a morte do que fomos uns para os outros.

Quando se é adulto, os pais podem ser acolhedores, na melhor das hipóteses, mas já não podem vencer as batalhas pelos filhos como faziam quando eles eram pequenos. Ao filho cabe enterrar a grandeza e o heroísmo que, quando criança, supunha nos progenitores. Os filhos podem até ainda freqüentar os pais, mas possuem um mundo próprio, que transcende de tal maneira a família de origem, que estes não conseguem compreender toda a dimensão do que se passa na vida dos mais jovens. As vivências em comum escasseiam-se, mudam no filho os referenciais com que ele interpreta o mundo. Muitas de suas condutas e crenças serão pautadas por identificações e experiências colhidas e ocorridas fora da vida familiar.

É possível que um clima de amizade e a vivacidade dos pais na maturidade contribuam para minimizar essa distância, mas de alguma forma ela aparecerá. A grande exceção para esse afastamento ocorre quando há netos pequenos, quando o compartilhamento dos cuidados com eles, assim como a constante evocação das lembranças infantis, produz uma renovada familiaridade. Porém, mais uma vez, é por um período. Por mais amoroso que seja um vínculo familiar, quando o filho começa a amar, se instala um estranhamento com seus pais. Quando isso ocorre, os pais não se reconhecem mais nos filhos e, não raro, acusam o parceiro amoroso deste pelas modificações. Temos aqui a morte do filho como possessão, já que não é mais uma criatura totalmente concernida aos seus pais. Com o tempo, um muro não de espinhos, mas de diferenças, se erige entre as gerações, que pode ser compensado com a permanência de um afeto mútuo, ou não.20

Do lado do jovem, o rompimento com a família é vivido como uma forma de exílio. Um exilado é alguém que vive em outro lugar por ter sido de alguma forma expulso, banido, da sua terra de origem. Ele pode ter encontrado abrigo no mais belo e confortável paraíso terreno, mas será inevitavelmente abatido por uma saudade, resultante de sua saída aparentemente involuntária.

O espaço geográfico que se habita na adolescência é típico de um exilado: um lugar que só existe porque é fora de outro. Jovens encontram-se na rua, em lugares públicos, nas casas quando os adultos estão ausentes, enfim, num lugar e tempo que não são reinos de ninguém. Assim o jovem providencia uma forma de não ser visto. Quem não é visto não é interrogado, não é cobrado, não é controlado. Esconder-se assim é uma das formas de passar dormindo por esse período.

Para efeitos da sociedade, também são belos adormecidos, já que se trata de sujeitos crescidos, mas que não fazem muito além de se preparar para a vida que está por vir. É uma fase de ensaio, de treinamento, de simulação.21 Essa latência (ou exílio) social, espécie de depressão normal que ocorre nessa época, é causada justamente por tudo o que os espera. Do lado de fora desse castelo adolescente, a vida adulta espreita como uma matilha de lobos famintos, pronta para cair sobre os jovens. Esse desafio inclui as decisões vocacionais, o trabalho, as opções amorosas e a parentalidade.

Há um potencial de desperdício de tempo nos jovens, uma inutilidade necessária, uma abstinência das grandes tarefas da vida, traduzível por um sono que parece eterno. Diante de tudo isso, é preciso dormir, para postergar, para esquecer, para repousar, para se esconder.

Notas

1.  BASILE, Giambattista. The Pentamerone, traduzido por N. Penzer. A íntegra deste conto pode ser lida em www.surlalunefairytales.com, de autoria de Heidi Anne Heiner, disponível desde 1998.
2.  As fadas, tanto estas, quanto as convidadas ao batizado de Bela Adormecida, não devem ser compreendidas como as entendemos hoje, como seres mágicos femininos benévolos. No folclore europeu “fada” é um nome genérico para inúmeros seres feéricos, não necessariamente femininos, intermediários entre os seres reais e os espíritos. Podem estar nesse conjunto, por exemplo, os elfos, os brownies, os duendes. Enfim é uma palavra pouco precisa e não descreve o caráter desses seres, que parecem tão suscetíveis em seus humores como são os humanos. Ora se apresentam como amigos e doadores, ora podem roubar, raptar e amaldiçoar.
3.  GRIMM, Jacob & Wilhelm. Contos de fadas. Belo Horizonte: Villa Rica Editora Reunidas, 1994.
4.  Ariès nos ilustra esta questão da idade de 7 anos como a do fim da infância, no capítulo denominado Do despudor à inocência: “A partir de 1608, esse gênero de brincadeira (jogos eróticos com suas amas) desaparece: o Delfim se tornara um homenzinho – atingindo a idade fatídica de 7 anos – e era preciso ensinar-lhe modos e linguagem decentes”. In: ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 127.
5.  A beleza da madrasta assemelha-se à do herói do clássico literário O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Nesta história, um rapaz realiza uma espécie de pacto com o diabo para permanecer jovem e belo. Graças a isso, um quadro, que o retratara no auge do viço juvenil, envelhece em seu lugar. O retrato não só envelhece, como também representa a feiúra de sua alma, tomada pelo egoísmo e a maldade. Dorian continua sempre aparentemente igual, sua imagem fica congelada naquele instante juvenil, mas, enquanto isso, seu espírito passa a ser retratado na pintura e revela em seus traços toda a sua miséria interior. A madrasta tem esse tipo de beleza. Quem paga qualquer preço para continuar belo e jovem, diria Wilde, não amadurece, apodrece.
6.  Este olhar paterno será mais analisado no Capítulo VI, O Pai Incestuoso.
7.  Nas fantasias infantis, bem como em crenças de vários povos, a ingestão do inimigo serviria para apropriar-se de suas qualidades. Assim, para um antropófago tupinambá, comer um valente guerreiro inimigo era o reconhecimento de sua bravura e força, assim como a vontade de incorporar essas virtudes. Existia a crença que os leprosos comiam o fígado de crianças para restaurar o seu, pretensamente, danificado órgão. Enfim, devorar seria desejar as qualidades, a madrasta queria era incorporar essa reconhecida beleza da princesa.
8.  É interessante lembrar que essa boa reputação tenha persistido inclusive em nossos tempos ecológicos, onde os caçadores são sempre (justamente) vistos como maus, destruidores das indefesas criaturas da natureza. O caçador como herói é um dinossauro, sobrevivente de um imaginário antigo, já que hoje a civilização é a grande madrasta, enquanto a natureza encarna a profanada virgem, por isso todas as simpatias das novas gerações estão com a caça.
9.  Bettelheim nos faz notar que o espelho mágico parece às vezes falar com a voz da filha, ou seja, fala deste momento em que a menina acredita que sua mãe é a mais bela das mulheres. In BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 246.
10.  Esta não é, de forma alguma, a explicação universal para a homossexualidade feminina. Nesse caso, é apenas a solução para um impasse, proveniente de uma identificação, através de um modo de amar.
11.  Consideramos a casa dos anões como um refúgio transitório e tolerante, onde se gesta o crescimento da heroína. Por isso, discordamos da crítica que Bettelheim dirige ao desenho animado, onde diz (trata-se de uma nota): “Os anões simbolizam uma forma de existência imatura e pré-individual que Branca de Neve deve transcender. Por isso, o fato de dar nome próprio e uma personalidade individual a cada um – como fez Walt Disney no seu filme –, quando no conto de fadas todos são idênticos, interfere seriamente na compreensão inconsciente desse simbolismo: esses aspectos prejudiciais aos contos de fadas, que aparentemente aumentam o interesse humano, podem na verdade destruí-los, pois tornam difícil captar o significado profundo e correto da história”. In: BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. p. 249.
12.  FREUD, Sigmund. Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise. Conferência XXXIII: Feminilidade. Obras Completas, vol. XXII, Rio de Janeiro: Imago, 1987, p. 148.
13.  BASILE, Giambattista. Sol, Lua e Tália. Esta história pode ser encontrada, inclusive acrescentada do original em dialeto napolitano, no livro A Princesa que Dormia – Nas Versões dos Irmãos Grimm, De Charles Perrault e de Giambattista Basile. Florianópolis: Editora Paraula, 1996.
14.  PERRAULT. Contos de Perrault. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1989.
15.  GRIMM, Jacob & Wilhem. Contos de Grimm. Belo Horizonte: Villa Rica, 1994.
16.  Essa compreensão da atitude passiva se deduz da obra freudiana, particularmente no que tange ao tema da sedução, mas uma boa sistematização dessa questão, tal qual formulamos aqui, pode ser encontrada em Jean Laplanche. Conforme ele (citando Spinoza), “somos passivos quando se faz em nós alguma coisa da qual somos a causa apenas parcialmente”. Como exemplo, este autor cita a diferença entre ser amamentado, mamar e dar de mamar. Na conjugação passiva de ser amamentado (diferentemente das posições ativas de mamar e dar de mamar), se expressa de tal forma que “faz-se em nós alguma coisa, da qual somos a causa apenas parcialmente e da qual buscamos tornar-nos causa adequada”. In: LAPLANCHE, Jean. Teoria da Sedução Generalizada. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988, p. 90.
17.  Lévi-Strauss nos conta que entre os indígenas norte-americanos havia uma correlação entre boa tecelã e mulher quente na cama, quem sabe esta ligação não pode ser lembrada nos contos de fada. Afinal, é extraordinário que reis busquem boas tecelãs para rainhas. A equivalência entre mitologias tão distantes sempre se revela problemática e algo arbitrária, mas neste caso acreditamos que há um paralelo. Ver: LÉVI-STRAUSS, Claude. A Oleira Ciumenta. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
18.  Nas sociedade primitivas, as regras determinavam um período de impureza para a mulher, havia objetos e pessoas que ela não podia tocar, atividades que não devia fazer. Com o passar dos tempos, a menstruação perdeu seu caráter social, a mulher não se retira para uma cabana na floresta esperando que passe, ela a sente como algo seu e pessoal, algo privado. Sendo que hoje resta apenas a TPM, nesta fronteira entre o fisiológico e o mítico, para lembrar que a mulher se encontra em estado delicado.
19.  “Os adultos querem ser adolescentes. Os adolescentes ideais têm corpos que reconhecemos como parecidos com os nossos em suas formas e seus gozos, prazeres iguais aos nossos e, ao mesmo tempo, graças à mágica da infância estendida até eles, são ou deveriam ser felizes numa hipotética suspensão das obrigações, das dificuldades e das responsabilidades da vida adulta. Eles são adultos em férias, sem lei. (...) A adolescência torna-se assim um ideal dos adultos”. In: CALLIGARIS, Contardo. A Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000. p. 69.
20.  Voltaremos a esse tema da relação dos jovens casais com as respectivas famílias e com a sociedade no Capítulo X.
21.  Calligaris descreve a adolescência enquanto um período de moratória (termo utilizado originalmente por Erik Erikson) nos seguintes termos: “Ele se torna adolescente quando, apesar de seu corpo e seu espírito estarem prontos para a competição, não é reconhecido como adulto. Aprende que, por volta de mais dez anos, ficará sob a tutela dos adultos, preparando-se para o sexo, o amor e o trabalho, sem produzir, ganhar ou amar; ou então produzindo, ganhando e amando, só que marginalmente”. In: CALLIGARIS, Contardo. A Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 15.

Texto de Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso em "Fadas no Divã - Psicanálise nas Histórias Infantis", Armed Editora, São Paulo, 2006, capítulo V. Digitalizado, editado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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