3.18.2019

O MARECHAL DEODORO


Até as vésperas de 15 de novembro de 1889, Manoel Deodoro da Fonseca,o  fundador  da  República,  não  era  republicano.  Pelo  menos  é  o  que  indica  a correspondência que trocou um  ano antes com  o sobrinho Clodoaldo da Fonseca, aluno  da  Escola  Militar  de  Porto  Alegre.  Integrante  da  “mocidade  militar”liderada por Benjamin Constant, adm irador das ideias do francês Auguste Comte e  ardoroso  defensor  da  República,  Clodoaldo  escreveu  uma  carta  ao  tio  em meados de 1888 na qual expressava suas convicções. Recebeu em  resposta um a reprimenda:

República  no  Brasil  é  coisa  impossível,  porque  será  uma  verdadeira desgraça — escreveu Deodoro. Os brasileiros estão e estarão muito mal educados  para  republicanos.  O  único  sustentáculo  do  nosso  Brasil  é  a Monarquia; se mal com ela, pior sem ela.

Em  outra carta, pouco depois, o marechal recomendou ao sobrinho: Não te metas em questões republicanas, porquanto República no Brasil e desgraça completa é a mesma coisa; os brasileiros nunca se prepararão para isso, porque sempre lhes faltarão educação e respeito. [192]

Documentos  como  esses  ajudam   a  explicar  os  momentos  de  indecisão demonstrados  por  Deodoro  no  dia  15  de  novembro.  Nos  momentos  cruciais  do golpe  que  liquidaria  o  Império,  o  marechal  ainda  relutava  em   assumir  o  papel que lhe caberia na história, contra a opinião de outras lideranças militares e civis que  o  pressionavam   para  proclamar  oficialmente  a  República.  “Deodoro  ainda não  tinha  (...)  a  mais  leve  inclinação  pelo  regim e  que  se  pretendia  fundar”,
assegura  seu  biógrafo  Raimundo  Magalhães  Júnior.[193]  Aparentemente,  só  se converteu ao projeto republicano forçado pelas circunstâncias e a contragosto, ao perceber que a mudança de regim e se tornara inevitável.

Nascido  na  província  de  Alagoas  em   5  de  agosto  de  1827,  Deodoro  da Fonseca cresceu em  um a família de militares. Seu pai, natural de Pernambuco, chamava-se  Manoel  Mendes  da  Fonseca  Galvão,  mas,  preocupado  com   a cacofonia  gerada  pela  proximidade  das  sílabas  ca  e  ga,  elim inara  o  Galvão  do sobrenom e Mendes da Fonseca ingressara no Exército em  1806, dois anos antes da  chegada  da  corte  de  dom   João  ao  Brasil,  com o  praça  de  infantaria.  Após  a Independência,  em   1822,  ajudara  a  suprir  de  armas  e  munições  as  tropas imperiais de dom  Pedro I que expulsaram  os portugueses da Bahia. Promovido a alferes logo em  seguida, fora transferido do Recife para Alagoas, onde se casou com  Rosa Maria Paulina, dezessete anos m ais nova do que ele. O casal teve dez filhos  —  oito  homens  e  duas  mulheres.  Com o  era  com um   naquela  época, Mendes  da  Fonseca  acabou  se  envolvendo  na  política  local.  Eleito  vereador, chegou a acumular as funções de chefe de polícia e juiz de direito interino na vila de  Alagoas,  a  primeira  capital  da  província,  atual  município  de  Marechal Deodoro.[194]

Em  1839, quando Deodoro tinha doze anos de idade e seu pai ocupava o posto  de  major,  os  habitantes  da  vila  de  Alagoas,  onde  moravam ,  souberam   da notícia de que a capital da província seria mudada para Maceió, 27 quilômetros ao  norte.  Pelo  plano  já  traçado,  o  primeiro  órgão  a  ser  transferido  para  a  nova sede  de  governo  seria  a  Tesouraria  da  Fazenda.  Feroz  opositor  da  mudança, Mendes  da  Fonseca  reuniu  seus  comandados,  dirigiu-se  ao  palácio  e  depôs  o presidente da província, Agostinho da Silva Neves. Por um a ironia do calendário, a rebelião, logo sufocada, aconteceu no dia 15 de novembro, exato m eio século antes  do  golpe  que  o  filho  do  major  lideraria  em   1889  contra  a  Monarquia. Sitiado por tropas imperiais despachadas de Pernambuco e da Bahia, Mendes da Fonseca fugiu para o Sergipe, onde foi preso e enviado para a sede da corte, no Rio  de  Janeiro.  Submetido  a  Conselho  de  Guerra,  conseguiu  ser  absolvido  em maio do ano seguinte, mas a ousadia lhe custou caro.[195]

Reformado  no  posto  de  tenente-coronel  após  a  fracassada  revolta, Mendes  da  Fonseca  term inou  a  vida  endividado  e  perseguido  pelos  credores. Com o não tinha dinheiro para sustentar a família, fez com  que todos os filhos se alistassem  no Exército. Em  1854, enviou um  apelo patético ao imperador Pedro II suplicando por auxílio financeiro que o ajudasse a saldar as dívidas e permitir que os três filhos m ais j ovens completassem  os estudos: Minha família, coitada, sempre mantida pelo apertado repuxo, já não de justas economias, mas de dolorosas misérias, nunca comeu mais do que o necessário para não morrer de fome, nunca trajou luxo, ainda não viu as paredes  internas  de  um  teatro,  nunca  foi  mesmo  a  um  baile  dos  muitos concorridos nesta Corte, onde vivemos há quinze anos. [196]

Até hoje não se sabe se a súplica do patriarca dos Fonseca foi atendida. Manuel Mendes da Fonseca morreu em  24 de agosto de 1859, quando Deodoro tinha  32  anos  e  era  capitão  do  Exército.  As  dificuldades  da  família  teriam deixado profundas marcas na personalidade do futuro proclamador da República brasileira. Segundo seu biógrafo Raimundo Magalhães Júnior, o fracasso do golpe liderado  pelo  pai  em   1839  teria  também   influência  decisiva  no  seu comportam ento  meio  século  mais  tarde,  quando  pegou  em   armas  contra  o Império. Na manhã de 15 de novem bro de 1889, Deodoro muito provavelmente tinha vivas na memória as dificuldades enfrentadas pelo pai naquele episódio e, portanto,  sabia  perfeitam ente  as  consequências  de  um   novo  eventual  fracasso. Tudo isso, segundo Magalhães Júnior, teria contribuído para sua indecisão diante da  perspectiva  de  derrubar  o  imperador  Pedro II  do  trono  e  proclamar  a República. [197]

No  Exército,  Deodoro  pertencia  à  categoria  dos  “tarimbeiros”,  com o eram   conhecidos  os  oficiais  veteranos  da  Guerra  do  Paraguai  e  oriundos  de famílias  pobres.  A  expressão  fazia  referência  à  tarimba,  estrado  de  madeira usado  com o  cama  improvisada  nos  acampamentos  de  guerra.  Era  um   símbolo das agruras que esses militares haviam  enfrentado ao longo da carreira, vivendo em  condições precárias nos aloj am entos e quartéis, mudando com  frequência de
cidade,  enquanto  lutavam   em   defesa  do  Império  brasileiro.  “Deodoro  era  um pobre  homem ,  de  alm a  franca  e  cavalheiresca”,  definiu  o  historiador  Oliveira Vianna.  “Pertencia  bem   ao  tipo  das  naturezas  ardentes  e  francas,  capazes  de dedicações  profundas,  mas  também   de  antipatias  irredutíveis.” [198]  Raimundo Magalhães  Júnior,  seu  biógrafo,  o  descreveu  com o  “uma  figura  imponente  e bizarra, de olhar vivo, agudo, penetrante, revelando determ inação em  cada gesto e em  cada atitude”. [199]

Aluno da turm a de 1843 na Escola Militar, onde fez o curso de artilharia, Deodoro  teve  um a  carreira  apagada  e  difícil  até  a  Guerra  do  Paraguai.  Seu batism o  de  fogo  aconteceu  em   1849,  durante  a  Revolução  Praieira  de Pernambuco, onde com bateu nas fileiras das tropas imperiais. Depois disso, seu currículo  registra  repetidos  casos  de  indisciplina,  sempre  por  desacato  ou problemas com  os superiores im ediatos. Em  menos de dois anos foi preso cinco
vezes. O comportamento explosivo seria sua marca até o fim  da vida.

Promovido a capitão em  1856 e transferido para Mato Grosso, Deodoro casou-se  em   Cuiabá,  quatro  anos  m ais  tarde,  com   Mariana  Cecília  de  Sousa Meireles,  órfã  de  um   capitão  do  Exército  e  um   ano  mais  velha  do  que  ele.  O casal  nunca  teve  filhos.  Em   1864,  então  com   37  anos,  foi  despachado  para  a Guerra do Paraguai. Seria a grande experiência de sua vida — e também  a de toda  a  sua  família.  Dos  sete  irmãos  homens  de  Deodoro,  seis  partiram   para  a
guerra. Três deles morreram  nos campos de batalha. Deodoro permaneceu seis anos  fora  do  Brasil  lutando  contra  os  paraguaios.  Nesse  período,  foi  promovido sucessivam ente a major, tenente-coronel e coronel, sempre por atos de bravura.

“Só  tive  um   protetor:  Solano  López”,  diria  m ais  tarde  em   uma  entrevista  ao jornal  Diário da Manhã, em  Santos, litoral paulista. “Devo a ele, que provocou a Guerra  do  Paraguai,  a  minha  carreira.” [200]  Ferido  na  batalha  de  Itororó, embarcou  para  o  Brasil  em   meados  de  1870,  quando  o  conflito  já  chegava  ao fim .  Em   1874,  com   o  peito  repleto  de  medalhas  e  outros  galardões,  foi promovido  a  brigadeiro,  posto  equivalente  ao  de  general  na  atual  hierarquia  do
Exército. Com  essa patente, serviu em  diversas regiões do país.

Depois da Guerra do Paraguai, a segunda grande transformação na vida de  Deodoro  aconteceria  em   1883,  ano  em   que  foi  nomeado  comandante  de armas da província do Rio Grande do Sul e começou a se envolver cada vez mais com   a  política  local.  Ali  também   começaram   suas  divergências  com   o estancieiro e conselheiro do Império Gaspar Silveira Martins, a mais importante figura da política gaúcha naquele período. O historiador Hélio Silva afirma que a briga entre os dois tinha origem  em  “uma competição em  que aparece um a bela senhora  da  época”.  Seria  a  baronesa  de  Triunfo,  viúva  bonita  e  elegante, fazendeira  e  filha  do  general  gaúcho  Andrade  Neves.  Nessa  disputa,  Deodoro levara a pior. Silveira Martins, um  homem  galanteador, mais culto, inteligente e viajado  do  que  o  marechal,  teria  conquistado  o  coração  da  bela  baronesa  —  e
desde  então  as  relações  entre  os  dois  azedaram   de  vez. [201]  Seria  a  notícia  da escolha de Silveira Martins para chefiar o ministério de dom  Pedro II na noite de 15  de  novem bro  de  1889  que  levaria  o  até  então  relutante  Deodoro  a  aderir definitivamente à República, com o se verá em  capítulo mais adiante.

Em  1886, depois de um  breve retorno ao Rio de Janeiro, Deodoro passou a acumular o comando de armas com  a presidência interina da província do Rio Grande  do  Sul,  em   substituição  ao  amigo  pernambucano  Henrique  Pereira  de Lucena,  futuro  barão  de  Lucena,  que,  eleito  deputado,  tivera  de  renunciar  ao cargo.  Na  condição  de  presidente  provisório,  coube  a  Deodoro  o  privilégio  de inaugurar a primeira linha telefônica de Porto Alegre, novidade que chegava aos
gaúchos apenas dez anos depois de exibida pela primeira vez por Graham  Bell a dom  Pedro II  na  Exposição  Universal  da  Filadélfia  de  1876.  Foi  de  Deodoro  o primeiro “alô” ouvido na sede da Companhia Telefônica em  15 de setem bro de 1886.  Porto  Alegre  era  a  sexta  cidade  brasileira  a  adotar  a  invenção,  depois  de Rio de Janeiro, Petrópolis, Niterói, São Paulo e Santos. O comércio ficou com  a maioria  dos  prim eiros  aparelhos.  A  assinatura  anual,  de  120  mil  réis  pagos
adiantados,  equivalia  ao  salário  de  um   funcionário  público  de  categoria média.[202]

Deodoro encontrava-se nessa poderosa condição — de simultaneam ente chefe militar e civil dos gaúchos — quando estourou a chamada Questão Militar. De  lá  seguiria  para  o  Rio  de  Janeiro,  onde  se  envolveria  com   a  “mocidade militar” de Benjamin Constant e passaria a participar ativam ente da conspiração contra o Império. Anfriso Fialho, oficial do Exército e deputado piauiense que o conheceu nessa ocasião, descreveu o marechal da seguinte forma:

É  alto,  magro,  moreno  bronzeado,  tem  os  olhos  negros  e  penetrantes, lábios finos, nariz pontudo e aquilino, narinas rasgadas: todos estes traços dão-lhe  à  fisionomia  uma  aparência  de  águia  e  de  grande  energia.  Usa toda a barba, curta, quase branca; os cabelos ainda pretos e rarefeitos no alto  da  cabeça,  formando  uma  calva  em  coroa  irregular;  tem  ombros largos e quadrados, mantém-se direito como um soldado perfilado. [203]

Outra testemunha da época, o coronel e futuro historiador Ernesto Senna relatou que, a despeito da aspereza da vida na caserna, Deodoro conhecia latim  e gostava de música. Segundo ele, o marechal tinha o curioso hábito de cruzar os dedos  e  rodar  os  polegares  enquanto  conversava  sentado  em   um a  poltrona. Vaidoso,  costumava  aparecer  à  porta  da  Alfaiataria  Rabelo,  situada  na  rua  do Ouvidor, Rio de Janeiro, trajando roupas civis. “Quase sempre usava chapéu alto, preto,  fraque  curto  da  mesma  cor,  um   tanto  apertado  na  cintura,  calça  larga, deixando  ver  pendente  do  colete  a  corrente  do  relógio”,  descreveu  Ernesto Senna.  Usava  também   uma  bengala  “cujo  cabo  representava  a  cabeça  de  um frade”. [204]

No  final  de  1888,  superados  os  momentos  mais  tensos  da  Questão Militar, o governo buscava um  motivo para afastar o marechal Deodoro do Rio de  Janeiro  e  do  centro  das  conspirações.  O  pretexto  surgiu  quando  Paraguai  e Bolívia  romperam   relações  em   virtude  de  um a  disputa  territorial  na  região  do Chaco.  Temia-se  que  uma  guerra  entre  os  dois  países  pudesse  ameaçar  as fronteiras do Brasil. Com  a desculpa de que o clima de tensão exigia a presença
de  um   oficial  de  alta  patente  na  região,  o  Ministério  da  Guerra  despachou novam ente o marechal para Mato Grosso com  a dupla função de com andante de armas  da  província  e  chefe  de  um a  expedição  militar  de  observação  das fronteiras.  “Na  realidade,  tratava-se  de  um   desterro  mal  disfarçado”,  com o observou  o  historiador  Celso  Castro.[205]  Em barcou  para  Cuiabá  em 27  de dezembro, deixando Benj am in Constant na presidência interina do Clube Militar.

Ao  chegar  a  Mato  Grosso,  Deodoro  deu-se  conta  de  que  fora,  de  fato, atraiçoado.  Não  havia  m uito  o  que  fazer  ali.  A  disputa  entre  Bolívia  e  Paraguai estava longe de representar qualquer am eaça aos interesses brasileiros. Surpresa maior  ele  teve  ao  ser  informado  de  que  o  governo  havia  nomeado  para administrar  Mato  Grosso  o  coronel  Cunha  Matos  —  aquele  m esm o  oficial  que havia  detonado  a  Questão  Militar  durante  um a  visita  de  inspeção  ao  Piauí.  Na condição de com andante de armas da província, Deodoro estaria subordinado ao novo governador. Portanto, ele, um  marechal, iria responder a um  coronel! Por fim, Deodoro recebeu a notícia de que o conselheiro Gaspar Silveira Martins, seu rival  na  vida  privada  e  na  política  gaúcha,  acabara  de  ser  nomeado  para  a presidência da província do Rio Grande do Sul. Foi a gota d’água. Irritado com  o que  julgava  ser  um a  afronta  direta  aos  seus  brios  pessoais,  o  marechal abandonou o posto sem  antes pedir autorização e tom ou um  navio de volta para o Rio de Janeiro sem  nunca ter exercido as novas funções.

A caminho da capital, Deodoro viajava triste também  com  a notícia do falecimento  do  irmão  Severiano,  ocorrido  em   março,  durante  seu  desterro  em Mato Grosso. Severiano Martins da Fonseca tinha sido, de todos os irmãos, o mais próximo da Monarquia. Fora conselheiro de guerra do imperador, veador (cargo equivalente  ao  de  inspetor  ou  intendente)  da  imperatriz  Teresa  Cristina, comendador das ordens de Cristo e de Aviz, oficial da Rosa e do Cruzeiro. Em  2 de  março  de  1889,  dom   Pedro II  o  agraciou  com   o  título  de  barão  de  Alagoas “com  grandeza”, em  retribuição aos bons serviços prestados ao Império. Morreu dezessete dias mais tarde. Deodoro tinha grande admiração por ele e costumava ouvir os seus conselhos. Por isso, ficara transtornado ao saber da morte do irmão. “Morreu a única pessoa que ainda podia m e conter”, afirmou na ocasião. [206]

Ao  desembarcar  no  Rio  de  Janeiro,  em   13  de  setembro  de  1889, Deodoro era, portanto, um  copo de mágoa já transbordado. E, mais do que antes, convertia-se  no  candidato  natural  da  “mocidade  militar”  e  dos  oficiais republicanos para assumir a liderança da revolução.

Em 14  de  setembro  de  1889,  dia  seguinte  ao  do  retorno  do  marechal Deodoro  de  Mato  Grosso  sem   autorização  prévia  do  governo  imperial,  um incidente menor ocorreu no Rio de Janeiro. Ao visitar a repartição do Tesouro, o presidente do Conselho de Ministros, visconde de Ouro Preto, não encontrou em seu  posto  o  com andante  da  guarda,  que,  pelo  protocolo,  deveria  prestar-lhe continência.  Pelo  relato  do  ministro,  o  tenente  Pedro  Carolino  estava  dormindo.
Na versão dos republicanos, tinha ido ao banheiro. Sentindo-se ofendido em  sua autoridade,  Ouro  Preto  mandou  prendê-lo.  Os  jornais  republicanos  O  País  e Diário  de  Notícias  publicaram   artigos  em   que  criticavam   a  “ignorância”  do ministro.  Dessa  maneira,  o  tenente,  que  até  então  era  um a  figura  apagada  e “bem   pouco  estim ado  dos  seus  colegas”,  segundo  o  depoimento  de  Ximeno  de Villeroy,  foi  promovido  a  celebridade  da  noite  para  o  dia.  Em   cartas  ao presidente  do  Clube  Militar,  dizia-se  injustiçado  e  ultrajado  pelo  presidente  do Conselho de Ministros.

No  dia  16  de  setem bro,  quarenta  sócios  do  Clube  Militar  enviaram   um requerimento a Deodoro no qual pediam  que se convocasse um a reunião com  o objetivo  de  “tratar-se  de  negócio  urgente  e  relativo  aos  direitos  e  garantias  da classe” .[207]  Todos  os  signatários  eram   tenentes  ou  alferes-alunos  da  Escola Superior  de  Guerra,  ou  seja,  a  “mocidade  militar”  de  Benjamin  Constant.

Deodoro devolveu o requerimento com  uma  mensagem   curta  e  seca:  “Por  ora não  há  necessidade  de  reunir-se  a  sessão  pedida”.  O  caso  do  tenente  Carolino era, de fato, irrelevante, um a falta disciplinar menor que poderia ter sido tratada com   uma  advertência  ou  um a  pequena  punição  dentro  da  cadeia  de  com ando militar.  No  clima  explosivo  que  se  instalara  entre  os  militares  e  o  governo,  no entanto, tudo era pretexto para a radicalização. Os republicanos aproveitaram  a ocasião  para  esticar  a  já  morna  Questão  Militar.  Era  a  arrancada  final  do processo que levaria ao golpe de 15 de novembro.

Pelos  jornais,  os  civis  continuavam   a  instigar  os  militares  contra  o governo  imperial.  No  dia  10  de  novembro,  um   artigo  no  diário  O  País,  dirigido por Quintino Bocaiúva, botou lenha na fogueira ao anunciar supostas m edidas que o  governo  estaria  preparando  contra  militares  rebeldes.  “Entre  as  medidas previam ente asseguradas para a instalação do Terceiro Reinado, nos consta que será  apresentado  ao  Parlamento,  pelo  governo  im perial,  um   plano  de
desmobilização  do  Exército”,  afirmava  o  jornal.  Pelo  plano,  as  forças  do Exército até então concentradas no Rio de Janeiro seriam  espalhadas “pela vasta superfície  do  Império”,  em   contingentes  pequenos,  “distribuindo-se,  para  esse fim , os batalhões pelas províncias”. À Guarda Nacional, mais fiel à Monarquia, ficaria  confiada  a  guarda  da  capital  do  Império.  Outras  medidas  afetavam   o valor  do  soldo  dos  militares  e  autorizavam   o  governo  a  demitir  qualquer  oficial sem  processo prévio.[208]

Em  outra manobra desastrada, às vésperas do golpe de 15 de novembro, o  governo  havia  transferido  para  o  Rio  de  Janeiro  alguns  oficiais  gaúchos conhecidos pela militância e pela radicalização na campanha republicana. Eram o major Frederico Sólon de Sampaio Ribeiro, de 46 anos, filho de um  fazendeiro gaúcho  ligado  aos  liberais.  Sólon  passara  a  maior  parte  de  sua  carreira  no  Rio Grande  do  Sul,  mas,  com   a  ascensão  de  Silveira  Martins  à  presidência  da província,  foi  removido  para  o  Rio  de  Janeiro,  onde  passou  a  com andar  o  9º Regimento de Cavalaria em  São Cristóvão. No dia 6 de outubro de 1889 também chegou  à  corte,  vindo  do  Rio  Grande  do  Sul,  o  capitão  Antônio  Adolfo  da Fontoura  Mena  Barreto,  de  43  anos.  Com o  Deodoro,  era  opositor  de  Silveira Martins,  vítima  do  expurgo  prom ovido  pelo  novo  presidente  da  província.  Ao chegar  ao  Rio  de  Janeiro,  passou  a  servir  no  mesmo  9º  Regimento  com andado por Sólon Ribeiro, onde tam bém  estava o alferes Joaquim  Inácio Batista Cardoso. Nos  dois  meses  seguintes,  os  três  oficiais  teriam   participação  fundam ental  na organização  do  golpe  republicano.  Desse  modo,  enquanto  tentava  “limpar”  as fileiras  do  Exército  no  Rio  Grande  do  Sul,  vistas  com o  um   foco  de  subversão republicana, o governo na verdade reforçava o poder de fogo dos conspiradores concentrando-os no próprio coração do Império, o Rio de Janeiro.

Os  temores  se  confirmaram   no  dia  10  de  novembro,  quando  o  22º batalhão  de  Infantaria,  conhecido  reduto  da  campanha  republicana,  embarcou no  navio  Maranhão  com   destino  ao  Amazonas.  Era  comandado  pelo  coronel Carlos  Magno.  Ele  e  seus  oficiais  ficariam   sabendo  da  Proclam ação  da República  ao  chegar  a  Pernambuco  às  sete  horas  da  m anhã  do  dia  16. Retornariam  ao Rio de Janeiro só em  2 de janeiro de 1890. [209] Tudo  isso  teve  a  força  de  um   estopim   aceso  no  ânimo  dos  militares  já em  franco estado de rebelião.

No dia 14, interrogado sobre os boatos pelo ministro da Guerra, visconde de Maracaju, Floriano Peixoto respondeu: — Estamos sobre um  vulcão! [210]

Sem  que o visconde soubesse, entre os que alimentavam  o combustível dentro do vulcão estava ninguém  menos que o próprio Floriano, a essa altura já com prometido com  os republicanos.

Notas

[192] Leôncio Correia,  A verdade histórica sobre o 15 de Novembro, pp. 181-182.
[193] Raimundo Magalhães Júnior,  Deodoro: a espada contra o Império, p. 334.
[194] Para a biografia de Mendes da Fonseca, ver Raim undo Magalhães Júnior, Deodoro: a espada contra o Império, pp. 11-22.
[195] Leôncio Correia,  A verdade histórica sobre o 15 de Novembro, pp. 23-24.
[196] Celso  Castro,  Os  militares  e  a  República:  um  estudo  sobre  cultura  e  ação política,  p. 82.
[197] Raim undo Magalhães Júnior,  Deodoro: a espada contra o Império, p. 20.
[198] Oliveira Vianna,  O ocaso do Império, pp. 182-183.
[199] Raim undo Magalhães Júnior,  Deodoro: a espada contra o Império, p. 197.
[200] Deodoro e a verdade histórica, p. 76.
[201] Hélio Silva,  1889: a República não esperou o amanhecer, pp. 441 e 552.
[202] Elmar Bones,  A espada de Floriano, p. 34.
[203] Anfriso Fialho,  História da fundação da República no Brasil, p. 36.
[204] Ernesto Senna,  Deodoro: subsídios para a história, p. 131.
[205] Celso Castro,  Os militares e a República, p. 134.
[206] Raim undo Magalhães Júnior,  Deodoro: a espada contra o Império, p. 348.
[207] Celso Castro,  Os militares e a República, p. 159.
[208] Claudio da Costa Braga,  El último baile del Imperio, p. 29.
[209] Ernesto Senna,  Deodoro: subsídios para a história, p. 33.
[210] Ibidem , p. 41.

Texto de Laurentino Gomes em " 1889- como um  imperador cansado, um  marechal vaidoso e um  professor injustiçado contribuíram  para o fim  da monarquia e a proclamação da República no Brasil",Editora Globo, São Paulo, 2013, capítulo 10. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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