3.18.2019

NO FOGÃO A LENHA: PALADAR E ALIMENTAÇÃO NO BRASIL COLÔNIA



Comia-se muito, pouco, o quê? Gilberto Freyre, um dos pioneiros em tratar a questão da alimentação no Brasil, já informava: “E ilusão supor-se a sociedade colonial, na sua grande maioria, uma sociedade de gente bem-alimentada”. Talvez, as extremidades: os senhores, porque comprariam ou importariam alimentos. E os escravos, porque tinham que suportar o trabalho duro.

Nas regiões de engenhos, a lavoura monocultora cobrou seu preço. Tanta cana em toda parte não dava espaço para se plantar mais nada. No início do século XVII, o autor dos Diálogos das grandezas do Brasil se queixava: “Resulta a carestia e falta destas cousas.” As “cousas” jram os demais alimentos que enchessem os pratos de estanho ou cerâmica: ovos, legumes, carne fresca. E de boa qualidade, pois, segundo Freyre, os frutos eram bichados, a carne, má, e os produtos importados, malconservados. Muitas doenças do aparelho digestivo eram atribuídas não à alimentação, mas aos “maus ares”.

Na Bahia, grandes proprietários evitavam ter animais domésticos para que não atacassem as lavouras de cana ou tabaco. Não sobrava terra para pasto. Ovelhas e cabras eram consideradas inúteis. Os porcos, difíceis, pois rapidamente se tornavam selvagens. E o gado mais tinha era que obrar na lide do engenho. Os senhores de léguas de terras opulentas não tinham o que comer! Sofria-se da “falta de farinhas”. Por outro lado, a doçaria arredondava a gordura de frades e sinhás.

É certo que padre Fernão Cardim se entusiasmou com os banquetes com que foi recebido em toda parte, na casa de homens ricos e nos colégios de padres. A boa acolhida se justificava: era o Visitador. Mas foi exceção. Ao final, ele mesmo registrava: “Nunca falta um copinho de vinho de Portugal, sem o qual não se sustenta bem a natureza por a terra ser desleixada e os mantimentos, fracos.” Pois era 0 bispo de Tucumã, em visita ao Brasil no século XVII, observou que nas cidades “mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe e nada lhe traziam, porque nada se achava na praça nem nos açougues”. Nóbre- ga se queixava sistematicamente da falta de mantimentos. Os alunos das escolas de padres caçavam e pescavam para encher as próprias barrigas, e em Pernambuco, os jesuítas resolveram criar gado, pois, “se assim não o fizessem, não teriam o que comer". “Todos se sustentam mediocremente [...] por as cousas valerem mui caras e o tresdobro que em Portugal.” Padre Anchieta disse com uma perdoável pontinha de inveja: “Alguns ricos comem pão de farinha de trigo de Portugal, máxime em Pernambuco e Bahia, e de Portugal também lhes vem vinho, azeite, vinagre, azeitona, queijo, conserva e outras cousas de comer.”

Na falta de carne, fazia-se regime com carne branca: “alimentação de classe indigente”, segundo Debret, sobretudo no Rio de Janeiro, onde “as enseadas da Glória e da Lapa eram extremamente piscosas”. Ali de passagem em 1715, De la Caille observou que a dieta de farinha e peixe era comum em todas as classes. Num jantar na casa do governador, “o cardápio foi quase todo preenchido por pescado”, comentou. Na falta de carne, se comiam acaris, acarás, arraias, baiacus, dourados, garoupas, siobas, surubins, piabinhas - enfim, o que caísse na rede. Desde o século XVI, os moradores se deliciavam: ’’abrótea [...] é peixe mole, mas muito sadio e saboroso”, registrou Gabriel Soares de Souza. E um surpreso Francisco de Aguirre complementou: “Os peixes mais apreciados são o cherne, a cavala e a anchova, espécies grandes que julgamos de qualidade superior. Nas peixarias, situadas no lado noroeste da cidade, passam de sessenta as espécies de pescados à venda. Costumávamos percorrer essas bancas simplesmente para apreciar a abundância da mercadoria exposta.”

Ostras se empilhavam nos mercados. Comiam-se as ovas de várias espécies, mas as de moreia davam ânsias e vômitos. “Ovadas de ovas grandes e saborosas”, secas e prensadas, eram vendidas nos mercados em Salvador Bahia. Os fígados de peixes como o peixe-porco eram tidos por iguaria: “Gordos e saborosos.” 0 pacífico peixe-boi era feito em “taçalhos”, “cozido com couves e outras carnes”, e, surpreendentemente, tinha gosto de vaca. Assado, “parece no cheiro e gosto o porco, e também tem toucinho”, apreciava Fernão Cardim. Na Quaresma, o peixe era obrigatório e, sem vinagre n azeite, ingerido “sobre leite”, segundo o Visitador. Camarões eram “sustento dos escravos e regado de muitos brancos”, anotava Vilhena. Em 1768 a James Coock não escapou a presença de pequenos e grandes caranguejos nos riachos à beira-mar, de onde iam para as caçarolas. “Caçar guaiamum” era prática habitual.

No século XIX, foi a vez de Von Spix e Von Martius descreverem os jiraus com ripas onde se secava o produto da pesca, refinava-se azeite e esperava-se novo cardume com arpão e tarrafa. A técnica consistia em abrir o peixe no sentido do comprimento, retirar as entranhas e salgá-lo de leve antes de pô-lo para secar. “Assados na própria gordura, espalham cheiro extremamente agradável.” 0 trabalho de oito dias dava para meio ano, contaram estupefatos. 0 peixe ainda servia como comida de doentes “que estejam no cabo”, e, quando sem ração nos quartéis, os solados eram enviados para pescar, como contou o príncipe Maximiliano Wied-Neuwied.

Em se plantando, tudo dava? Sim. Mas só em se plantando, pois a grande maioria das árvores frutíferas, como os cajueiros e as matas de mangabas do Nordeste, foi dizimada pelas plantações de cana. No século XVI, há menções de Gabriel Soares de Souza a abajeru, semelhante a ameixas europeias ou a amitim, com seus bagos aveludados e cor “bracacenta”. O amendoim, dito manobi, crescia em caroços do tamanho de avelãs, segundo Jean de Lery, e era cultivado pelos indígenas. Frei Vicente de Salvador chupou muito caju no mês de dezembro, quando a colheita ocupava todo mundo. Abacaxis podiam ser comidos frescos ou fritos, fatiados ou em rodelas.

Os araçás, vermelhos ou amarelos, eram considerados “gostosos, de- senfastiados, apetitosos", por terem uma ponta de acidez. Seu emprego em marmelada era comum, assim como a goiaba, “com gosto de morango e cheiro de urina de gato”, definia Debret. A banana crua ou assada, considerada “fresca e adocicada”, lembrando ao mesmo francês “o sabor de um sorvete de framboesa”, regalava. Da grumixama, ele apreciava o suco açucarado e ligeiramente ácido, e o jambo, dizia, tinha “forte perfume de rosa”. Fernão Cardim valorizava o perfume do araticum, um tipo de pinha.

Em 1763, frei João de São José Queiroz, em Óbidos, Pará, louvava o açaí, com sua cor “negro-carmínea”, misturado à água e ao açúcar. Com farinha de mandioca, era comida nutritiva de pobre. Palmeiras como a buriti ou o butiá, assim como os diversos cocos, tais como o de piaçaba, de indaiá, catarro ou da Bahia, emprestavam seu miolo para ser degustado fresco ou em doces: na canjica ou no canjicão. Ou nos pratos como o cuscuz, 0 mun- gunzá, a moqueca, os ensopados de lagostas e camarões. Vilhena gostava do abacate, “muito cálido e oleoso”. A castanha-de-caju seria usada na doçaria para substituir a amêndoa. Fruta verde? Assava-se. No século XVIII, a abundância de frutas ainda impressionava os estrangeiros.

“Os bosques estão repletos de excelentes frutas, muitas das quais desconhecidas na Europa e no restante da América. As laranjas, os limões e outras frutas próprias de climas quentes são tão fáceis de encontrar nos bosques desse país quanto as avelãs nos bosques da Inglaterra”, encantava-se John Byron.

0 guaraná seria repertoriado a partir do século XIX e desceria do Tapajós, onde era consumido pelos maués, para o Sudeste. Colhidas entre outubro e novembro, suas cápsulas eram postas a secar, piladas sobre pedra aquecida por brasas e reduzidas a cinzas. Depois de umedecida pelo sereno, a pasta em forma de bola secava junto ao fogo, até ficar tão dura que fosse difícil de quebrar. Embrulhada em folhas largas de tabaco para conservação, era usada mediante um ralador. Os índios também conheciam o cacau, cujas amêndoas eram raspadas numa peneira para separar o invólucro viscoso do suco adocicado. As favas eram chupadas. Muitas outras frutas faziam parte da alimentação: do cajá ao cambucá, do figo à fruta-pão, da janamacara ao mandacaru. Em épocas de fome, elas faziam, junto com o peixe e a farinha, o trio que tapava os buracos do estômago.

Ah, a milagrosa e polivalente farinha! A de mandioca, usada pelos indígenas, por certo. Das mais antigas espécies cultivadas na América do Sul, crescia segundo “a bondade da terra e a criação que tem”, explicava Gabriel Soares de Souza, que, um tanto exagerado, comparava o tubérculo à grossura da coxa de um homem. Segundo o mesmo cronista, depois de colocada em água corrente por alguns dias até amolecer e liberar a casca, era seca ao fogo ou ralada fresca sobre uma prancha de madeira cravejada de pedrinhas pontiagudas. Virava uma massa que era peneirada com água, graças a gestos precisos das cunhas. Extraído o líquido peçonhento ou ácido prússico que possui, era arrumada em bolos e deixada a secar ao sol.

Tais bolos, esfarelados sobre um tacho raso, borrifados com água e levados ao fogo, davam no beiju, “de melhor digestão do que a farinha", concluía Pero de Magalhães Gandavo. “Mais agradável do que o pão de trigo”, replicava Saint-Hilaire. A semelhança com o filho português e a falta de farinha levaram o beiju das aldeias indígenas às casas grandes e senzalas. Com mel, carne ou peixe seco, ou ainda com caldos, a farinha de mandioca era fundamental. Na falta de acompanhamentos, era ingerida pura. Sem ela, se passava fome.

Já o milho foi o único cereal encontrado pelos europeus no Brasil. Depois de feita a farinha, foi considerado no Diálogo das grandezas do Brasil um “mantimento mui proveitoso para a sustentação dos escravos da Guiné e dos índios, porque se come assado e também em bolos, os quais são muito gostosos enquanto estão quentes”. Relegado a comida secundária pelos portugueses, era usado no preparo de mingaus como o acaçá, papa grossa e consistente, receita africana, além de conhecidos angus. Sua existência no planalto paulista se deve à presença indígena nessas regiões, somada ao fato de que era fácil de transportar e produzir. Em Minas Gerais sustentava, sobretudo, escravos depois de um dia de garimpo. Misturada à água e ao açúcar, a farinha de milho resultava na jacuba, registrada por vários viajantes estrangeiros. Nas mesas via-se com recorrência um montículo de farinha de milho e outro de farinha de mandioca. Acompanhadas de feijão com carne-seca, eram um “jantar substancial”, na opinião de George Gardner de passagem pela Serra dos Orgãos.

Outras farinhas eram adicionadas ou transformadas em alimento: a de maniçoba, a de pau, de peixe, do reino, de araruta, de carimã, de centeio, de aricuri, de trigo, de tapioca ou fubá. Ao formar “grande variedade de pratos saudáveis e gostosos ”, as farinhas eram complementos indispensáveis nas dietas e nas cozinhas.

A carne-seca, por sua vez, é herança do moquém, a grade de varas sobre as quais os indígenas pousavam as carnes de caça que ali passavam do ponto. E com razão: em terra tropical, a vianda ressecada se conservava melhor. Transportada em lombo de mulas, ela vinha das charqueadas sertanejas para o litoral graças ao tropeirismo. 0 boi em pé sofria com as viagens e chegava magro aos mercados de abate. Se criado próximo às cidades, o gado era mau. Quem conta é James Cook:

"A maior parte das terras que visitamos era constituída por pastagens. Nela criavam-se animais tão magros que um inglês só os comeria a contragosto. A erva cultivada ali era muito curta, e só os cavalos e ovelhas conseguiam pastar nessas condições. 0 gado e as cabras, por sua vez, tinham imensa dificuldade em encontrar alimento".

Coube a Debret sintetizar a mesa colonial: “Passando-se ao humilde jantar do pequeno negociante e sua família, vê-se com espanto que se constitui apenas de um miserável pedaço de carne-seca [...] cozinham-no a grande água com um punhado de feijões, e joga-se nele uma grande pitada de farinha de mandioca, a qual, misturada com os feijões esmagados, forma uma pasta consistente que se come com a ponta da faca arredondada.”

Partes mais fibrosas da carne, como nervos, gorduras e pelancas, eram picadas a ponta de faca, fritas em gordura, misturadas à farinha de mandioca e trituradas no pilão, até ficarem reduzidas a pó: paçoca de carne-seca. Entre 1791 e 1793, uma grande seca arrasou boa parte da pecuária no sertão nordestino. Mas outras zonas começaram a se erguer, roubando a maior parte do mercado do sertão. Em 1814, por exemplo, Georg Wilhelm Freyreiss, em viagem pelo Brasil, anotava: “A carne-seca ao ar e levemente salgada vem especialmente do Rio Grande do Sul e, como o consumo é muito grande, constitui uma das mais importantes indústrias daquela capitania.” Uma vez reduzida a produção de ouro, Minas Gerais também se dedicou à pecuária e ao abastecimento do Rio de Janeiro, só que se valendo das terras férteis e bem-hidratadas de seus vales e do cuidado com o gado, criado em vivendas e currais bem-construídos.

Em circunstâncias tão favoráveis, nasceu também o abastecimento de leite e a fabricação de queijos. O leite natado foi muitas vezes servido em chifres de boi, mas sua qualidade era discutível: “aguado", “rançoso”, “não tão bom quanto na Europa” e “insípido” são qualificações que acompanham os comentários de quem o provou. A manteiga era pouca, importada e cara. Já as prensas e fôrmas de queijo davam em produtos apreciados, sobretudo o requeijão, “que fazia esquecer o Alentejo", segundo Fernão Cardim.

Cultivado em pequenas hortas, ou “roçarias de feijão”, a leguminosa já era conhecida dos indígenas. Em 1637, Gaspar Barléus menciona “fei- joais”. 0 grão aparece nos documentos como “prato comum”, “refeição principal”, “cozido com porco e folhas de couve”, alimento de negros, que o misturavam à farinha de milho, responsável por indigestões, oferecido nas vendas à beira dos caminhos, misturado ao arroz, levado nas viagens fluviais, ingerido por damas com “graça e destreza em forma de bola amassada”, servido em cuia e mais outros tantos empregos. Podia ser feijão do mato, guandu, pardo, branco ou preto, o mais comum.

As gorduras usadas na culinária tinham procedência diversa. Desde o período colonial se usava o azeite de oliva, alvo de críticas pelo alto custo: 'Uma pipa por 250 mil réis ou 300 mil réis”, reclamava Luís dos Santos Vilhena. Na falta deste, recorria-se ao azeite de açaí, ao de coco, ao de dendê, 'tempero essencial da maior parte das viandas dos pretos e ainda dos brancos criados com eles”, segundo o mesmo Vilhena. Na Amazônia, emprega- va-se o azeite de peixe-boi; em Minas, a gordura do bicho de taquara; e em toda parte, banha de porco. Além da tradicional, havia a manteiga extraída dos ovos de jabuti, de peixes como o camurupim e do jaú ou de tartarugas. Os óleos vinham da prensagem do amendoim, da castanha-de-caju, das amêndoas da macaúba, da castanha da pindoba. E, em regiões de criação de porcos, usava-se o toucinho, que, em meados do século XIX, passou a ser importado dos Estados Unidos.

Se em 1530 havia gente de estômago exigente como certo João de Mello Câmara, que escrevia ao rei para dizer-lhe, entre outras coisas, que não comeria dos “mantimentos da terra”, tantos outros se renderam à mestiça culinária tropical. As saudades do pão de trigo e do vinho tinto mais funcionavam como uma tentativa de reproduzir um modo de vida que, pouco a pouco, foi ficando para trás.

Texto de Mary Del Priore em "Histórias da Gente Brasileira", Volume I Colônia, Editora Casa da Palavra (Leya), Rio de Janeiro, 2016, excertos pp.242-251. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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