2.01.2020

BOLSONARO - PARANOIAS, IDEIAS FIXAS, MEDOS E OUTROS TORMENTOS


Quando a especialista em segurança llona Szabó, indicada por Sergio Moro para um conselho do Ministério da Justiça, foi “desnomeada” por pressão de bolsonaristas, entendeu-se que esse gesto representava a primeira grande derrota do ex-juiz da Lava Jato como ministro do novo governo. Era mais que isso. Como se viu depois, o episódio dizia tanto sobre a real dimensão do poder e da autonomia do titular da Justiça no gabinete de Bolsonaro quanto sobre quem é, e como pensa, o presidente da República.

Sergio Moro foi o quinto ministro anunciado por Bolsonaro. No dia 1º de novembro de 2018, o presidente eleito tuitou sobre o magistrado: “Sua agenda anticorrupção, anticrime organizado, bem como respeito à Constituição e às leis será o nosso norte!”. Logo ficou claro que a nomeação de Moro era um negócio bem melhor para Bolsonaro do que para o juiz.

Às vésperas da posse, suspeitas sobre as convicções democráticas do presidente eleito continuavam a pairar sobre sua cabeça. Em 1999, quando deputado federal pelo PPB, o ex-capitão deu uma entrevista à TV Bandeirantes que só não resultou na cassação de seu mandato porque ninguém se empenhou muito.22 Na conversa, quando ele criticava o “governo corrupto de FHC” e o soldo miserável dos policiais militares, o apresentador perguntou: “Se você fosse hoje o presidente da República, fecharia o Congresso Nacional?”. Bolsonaro, então com 44 anos e em seu terceiro mandato na Câmara, não titubeou: “Não há a menor dúvida. Daria golpe no mesmo dia. Não funciona! E tenho certeza que pelo menos 90% da população ia fazer festa e bater palma. O Congresso hoje em dia não serve pra nada, xará. Só vota o que o presidente quer. Se ele é a pessoa que decide, que manda, que tripudia em cima do Congresso, então dê logo o golpe, parte logo pra ditadura”.

Em outro momento, o apresentador perguntou se o então deputado do baixo clero tinha a esperança de ver o Brasil ser um país melhor no futuro. Bolsonaro respondeu: “Me desculpa, mas através do voto você não vai mudar nada neste país. Nada, absolutamente nada. Você só vai mudar, infelizmente, quando um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil. Começando com FHC. Não deixar ir para fora, não! Matando! Se vai (sic) morrer alguns inocentes, tudo bem”. Diante da repercussão das declarações, o ex- capitão foi ao plenário reclamar que havia sofrido um “massacre” da imprensa, mas não desmentiu o que disse, ao contrário: “Sou a favor, sim, de uma ditadura, de um regime de exceção, desde que este Congresso Nacional dê mais um passo rumo ao abismo, que no meu entender está muito próximo”.

Em 2018, já candidato à Presidência, Bolsonaro, ao ser lembrado do episódio, se limitou a dizer que “aquilo aconteceu há vinte anos”. Na campanha, porém, as diversas entrevistas em que saiu em defesa de torturadores contribuíram para reavivar o passado. Também não ajudou a esquecê-lo a divulgação de um vídeo, entre o primeiro e o segundo turno das eleições, em que Eduardo Bolsonaro dizia que bastaria “um soldado e um cabo” para fechar o Supremo Tribunal Federal se, em caso de vitória de Bolsonaro, os ministros tentassem impedir sua posse. Para alguns, o “sim” de Moro ao convite do presidente pareceu um raio de sol num horizonte cinzento. Quem via no magistrado o paladino da Lava Jato e da Justiça enxergava em sua nomeação o “compromisso crível” que faltava ao novo governo — a garantia de que Bolsonaro não cruzaria a linha demarcatória da legalidade e, ao mesmo tempo, um sinal de que cumpriria a promessa de acabar com a corrupção no país.

Já para Moro o jogo era bem mais arriscado. Ao pendurar a toga para se tornar representante de um governo que teve como principal adversário eleitoral o partido de Lula — o réu mais célebre da Lava Jato —, o juiz abriu um flanco para o questionamento de sua isenção. A partir daquele instante, Moro e seu uniforme de super- herói estavam a serviço não mais da Justiça, mas de Bolsonaro.

O juiz se tornou um dos três pilares do governo. Os outros dois eram o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o núcleo militar. Enquanto os generais estavam destinados a ser o fiel da balança da gestão Bolsonaro, ou o “Poder Moderador”, como gostava de dizer Augusto Heleno, Moro e Guedes eram vistos como pontas de lança do presidente. Deles, esperava-se ação — e, para isso, Bolsonaro lhes prometeu carta branca. No caso de Moro, a promessa não resistiu ao primeiro teste.

llona Szabó não passou na peneira ideológica de Bolsonaro por, entre outros fatores, ser contra o afrouxamento das regras de acesso a armas e favorável à descriminalização das drogas e do aborto. Em defesa de sua nomeada, Moro ainda argumentou que ela era uma referência no estudo do combate à criminalidade e que, como suplente de membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, não teria qualquer poder de decisão — ajudaria apenas a conferir pluralidade ao grupo. Ao conselho que Szabó havia sido convidada a integrar, cabe, entre outras funções, propor diretrizes para prevenir e combater a criminalidade. Bolsonaro se recusou a aceitar os argumentos de seu superministro. Acatar a nomeação de llona Szabó feria uma de suas certezas mais arraigadas: a de que, na vida e na política, não existem adversários, mas inimigos.

Um incidente durante as eleições municipais de 2016 ilustra até que ponto o presidente leva a sério essa divisão de campos. Na noite de 25 de agosto daquele ano, seu filho mais velho participaria de um debate na Band. Flávio Bolsonaro era deputado estadual pelo PSC e concorria à prefeitura do Rio de Janeiro.

No final da manhã, depois de fazer uma carreata em Bangu, o candidato e sua equipe almoçaram no bairro. Foram a um restaurante self-service do tipo que, para evitar desperdícios, “taxa” clientes que deixam sobras no prato. Flávio limpou o seu. A comida era pesada e o assessor de imprensa do candidato, Gustavo de Almeida, foi o primeiro a acusar o golpe: ele passou tão mal à tarde que não teve condições de acompanhar o debate marcado para aquela noite. Flávio Bolsonaro costuma ficar nervoso em confrontos públicos. No debate anterior, confundiu nomes de municípios fluminenses com bairros cariocas. Fazia mais de trinta graus quando ele chegou ao local do evento, o teatro Oi Casagrande. Para piorar, seu camarim estava sem ar-condicionado. Quando entrou no palco, já suava frio.

No começo do segundo bloco, Flávio empalideceu e suas pernas bambearam. Ao perceberem que o concorrente estava prestes a desmaiar, os deputados Carlos Osório (PSDB) e Jandira Feghali (PCdoB) correram para ampará-lo. “Ele está passando mal”, gritou o tucano. Feghali, que é médica, pediu ajuda: “Ele vai cair!”. O apresentador avisou que o debate seria interrompido e chamou o intervalo.

Fora do ar, alguém da plateia gritou: “Jair, ajuda lá!”.

Bolsonaro saltou as cadeiras em direção ao palco. Antes mesmo de subir, ordenou que Feghali saísse de perto de seu primogênito: “Ela vai dar estricnina para o meu filho!”.

Jandira, perplexa, exclamou: “lsso é distúrbio!”.

Enquanto Bolsonaro tirava Flávio do palco e o levava até uma cadeira na plateia, a deputada gritava: “Fascista! Réu por estupro!”.

Amigos e assessores formaram uma roda em torno de Flávio. Bolsonaro tentava acalmá-lo: “Tranquilo, Zero Um. Paga umas flexões aí”. Depois de alguns minutos, Flávio tomou um suco e sentiu-se melhor.23 Deixou a Band caminhando e seguiu para um hospital, onde nada foi diagnosticado.

No dia seguinte, aproveitando o episódio de intoxicação alimentar do assessor, a equipe do candidato decidiu divulgar que também Flávio havia sido vítima de uma refeição mal digerida. O texto da nota, lido e aprovado pelo Pastor Everaldo, presidente do PSC, dizia que o candidato pedia desculpas aos espectadores e demais debatedores por ter sido forçado a deixar o programa e agradecia “aos concorrentes Jandira Feghali e Carlos Osório pelos gestos de solidariedade ao socorrê-lo”.

O reconhecimento dos préstimos enfureceu Bolsonaro. “Agradecer àquela mulher?”, disse ao filho, na presença de assessores. “É o fim da picada!”

Em seguida telefonou para Carlos, responsável por suas redes sociais, determinando que ele “travasse” qualquer postagem do irmão e de sua assessoria. Por uma semana, e em plena reta final de campanha, Flávio Bolsonaro ficou “de castigo” — não publicou nenhuma linha no Twitter ou no Facebook.

Jair Bolsonaro tem raciocínio binário, dizem conhecidos de longa data. Quem não é seu amigo é seu inimigo. E enquanto os amigos de verdade são poucos, os inimigos estão em toda parte. Desde jovem Bolsonaro mantém hábitos que chamam a atenção de quem convive com ele. No tempo em que era deputado em Brasília, se deixava o carro estacionado na rua por muito tempo, ao voltar se agachava para conferir o chassi do veículo com medo de ser surpreendido por uma bomba. Também receava ser envenenado. Quando chegava ao apartamento que mantinha no Setor Sudoeste, jamais bebia a água de jarras ou garrafas guardadas na geladeira. Por precaução, preferia matar a sede na torneira.

A partir do momento em que se tornou postulante à cadeira da Presidência da República, a desconfiança cresceu. Durante a campanha, optava por andar em aviões de carreira mesmo quando podia voar em jatinhos. Não queria “ser morto como Eduardo Campos”, alegava. Em 13 de agosto de 2014, Campos, então candidato à Presidência da República pelo PSB, morreu quando o Cessna em que decolou do Rio com destino a Santos caiu no trajeto. Em agosto de 2018, a Polícia Federal concluiu que a queda da aeronave fora resultado de um acidente e descartou a hipótese de causa criminosa.

Bolsonaro vivia em estado de alerta: temia ser emboscado, temia ser envenenado, temia sofrer um atentado. No dia 6 de setembro de 2018, seus fantasmas se materializaram.

Naquela quinta-feira, o candidato do PSL foi fazer um bate e volta de campanha na cidade mineira de Juiz de Fora. Pesquisas de intenção de voto o mostravam como líder isolado nos cenários que excluíam Lula — o petista estava preso havia cinco meses.

Bolsonaro viajou a Minas acompanhado dos futuros ministros Gustavo Bebianno e Marcelo Álvaro Antônio, presidente do PSL naquele estado e candidato a deputado federal. Carlos Bolsonaro, que nunca ia aos comícios do pai, também integrava a comitiva — queria testar um drone no parque central da cidade, onde aconteceria o evento mais importante. A agenda do candidato previa em primeiro lugar uma visita a um hospital, seguida de um encontro organizado pela Associação Comercial de Juiz de Fora. Depois Bolsonaro iria para o ato público no parque. Antes, porém, a comitiva parou em um restaurante para almoçar. Com ela, estavam quatro policiais federais, mais os seguranças pessoais de Bolsonaro: o subtenente Max, na época sargento, e o capitão Cordeiro.

O plano da comitiva era sair do restaurante para o parque, onde uma multidão aguardava o candidato. Na frente do parque fica a principal avenida de Juiz de Fora, a Barão do Rio Branco. Atravessando a avenida, chega-se ao calçadão da rua Halfeld, por onde o candidato continuaria a caminhar até alcançar a sede da Associação Comercial — um sobrado histórico de cuja sacada já havia discursado Tancredo Neves. De lá, ele falaria à multidão. Antes de os pratos serem servidos, no entanto, um policial federal disse a Bebianno que a caminhada pelo calçadão da Halfeld apresentava riscos. Havia no entorno muitos prédios, e representantes do movimento LGBT ameaçavam jogar ovos pelas janelas. Bebianno ainda pensou em providenciar um guarda-sol para proteger Bolsonaro, mas logo desistiu. lnformou o candidato sobre o temor da PF e sugeriu que evitassem a rua e fossem de carro para a sede da associação.

A comitiva deixou o restaurante pouco depois das 14h30. Bolsonaro entrou no carro em direção ao parque, seu filho Carlos o acompanhou. Bebianno seguiu atrás em outro veículo, com o capitão Cordeiro e o sargento Max. No carro do candidato, segundo Bebianno, havia um colete à prova de balas. Ao descer do veículo, o ex-capitão estava sem ele.

Ao ver Bolsonaro se misturar à multidão, Bebianno disse ao capitão Cordeiro para dar a volta com o carro na praça de modo a pegar o candidato do outro lado. A ideia era levá-lo direto para a sede da Associação sem passar pela rua conflagrada. O carro ficou estacionado na entrada do parque que dá para a avenida Barão do Rio Branco, à espera do político. “Ele veio vindo e o Cordeiro abriu a porta”, conta Bebianno. “Quando nos viu, já quase na nossa frente, fez sinal com a mão de que não iria entrar. Prosseguiu e atravessou a avenida. Só que nós não tivemos como acompanhá-lo — ficamos presos no meio das pessoas. Quando conseguimos nos aproximar, ele já estava nos ombros da multidão. Aí, aconteceu o negócio.”

Adélio Bispo de Oliveira esfaqueou Bolsonaro na altura do abdômen. O servente de pedreiro nascido na cidade mineira de Montes Claros tinha sido filiado ao PSOL até 2014. Em suas postagens no Facebook, costumava atacar do governo Temer à maçonaria. Para ele, Bolsonaro era um “traidor” que merecia “pena de morte” por supostamente ter entregue a Amazônia aos Estados Unidos.24

“O cara era ruim de serviço”, disse Bolsonaro ao primeiro médico que o atendeu quando deu entrada às 15h40 na Santa Casa de Juiz de Fora, com pressão 7 por 4. A facada havia perfurado o intestino e atingira a veia mesentérica, provocando hemorragia interna e vazamento de fezes para a cavidade abdominal. Até aquele momento, porém, ninguém tinha ideia da gravidade da situação. Bolsonaro disse mais tarde que só se deu conta de que poderia ter morrido quando começou a sentir frio e perder a sensibilidade das pernas. Lembrou que, quando os filhos ainda eram pequenos, socorrera um homem que havia sido esfaqueado no Rio. “O cara parecia que estava legal, mas depois foi falando que estava com frio, que não estava sentindo as pernas e morreu.” Médicos concordam que, não fosse a rapidez do atendimento, Bolsonaro teria tido o mesmo fim.

Na sala de espera da Santa Casa, Bebianno, aos prantos, falava por telefone com o Major Olimpio, candidato ao Senado pelo PSL. Olimpio estava numa carreata no interior de São Paulo e já sabia da facada — havia acabado de ligar para Eduardo Bolsonaro. “Ele não corre risco”, dissera o filho caçula ao major. Olimpio achou que o rapaz tinha a voz serena ao telefone. A impressão, somada à sua experiência como policial militar, o tranquilizou. “Já socorri inúmeras vezes pessoas esfaqueadas ou baleadas que no dia seguinte estavam de alta hospitalar. Não imaginei que fosse uma coisa tão aguda”, lembra o major. Mas depois de ouvir Bebianno chorar ao telefone, ele se deu conta de que o incidente era mais sério.

Eduardo Bolsonaro viajou para Juiz de Fora junto com seu assessor de gabinete Gil Diniz, eleito deputado estadual pelo PSL em 2018. O irmão Flávio foi para Minas com o mais tarde notório Fabrício Queiroz. Em outro veículo, seguiram Rodrigo Amorim, eleito deputado estadual nas eleições de 2018, Leonardo Rodrigues, então segundo suplente de Flávio na Assembleia Legislativa, e Hélio Lopes. Hélio Negão, que já era de poucas palavras, dessa vez ficou mudo: passou a viagem rezando.

Bolsonaro foi operado naquela mesma tarde. No dia seguinte, foi transferido para São Paulo. Por pressão da família, o ex-capitão aceitou trocar a Santa Casa de Juiz de Fora por um hospital paulistano, desde que não fosse o Sírio-Libanês — “hospital de petistas”, como disse. O ex-presidente Lula e a ex-presidente Dilma, ambos diagnosticados com câncer, haviam se tratado lá. Bolsonaro temia que, internado em “campo inimigo”, pudesse ser vítima de uma emboscada. Major Olimpio foi recebê-lo no aeroporto de Juiz de Fora e o encontrou estirado sobre uma maca. “Quando eu o vi deitado no hangar, percebi o quanto estava debilitado”, lembra. “Brinquei com ele, ele tentou esboçar um sorriso, mas estava muito fraco. Fiquei extremamente preocupado naquele momento”, contou.

Junto com os empresários Fabio Wajngarten, atual chefe da Secom, e Nabhan Garcia, hoje secretário de Assuntos Fundiários, Olimpio embarcou no avião-UTl que levou o candidato ao hospital Albert Einstein. O trajeto durou 45 minutos. O major dizia ao ex-capitão: “Força, Zero Um, você é mais forte que isso”.

Filhos e amigos próximos costumam chamar Bolsonaro de Zero Um quando querem reforçar sua liderança ou protagonismo em determinada situação. Raramente se referem desse modo a Flávio, primogênito do clã, que pelo código familiar seria o natural detentor do título.

Da boca do ex-capitão, saía quase um murmúrio: “Tudo bem, tudo bem…”.

“Percebi que ele estava muito ferido”, lembra Olimpio. Chegando a São Paulo, Bolsonaro foi levado ao hospital num helicóptero da Polícia Militar. O major e os demais o seguiram de carro. Na sala de espera do Einstein, já estavam a postos Bebianno, o candidato a deputado federal Alexandre Frota e o senador pelo PR Magno Malta. Apenas Flávio Bolsonaro e Hélio Lopes foram autorizados a subir para a sala de espera da UTl, onde já se encontravam Carlos e Michelle Bolsonaro. Magno Malta tentou furar o bloqueio com uma carteirada: “Sou senador da República!”, gritou para os seguranças que queriam barrar sua entrada para o andar superior. Subiu na marra.

Bolsonaro passou por duas cirurgias antes da eleição. Teria vencido sem a facada?

Segundo a agência Bites, consultoria de análise estratégica de dados digitais, no dia 4 de setembro, dois dias antes do atentado, o candidato tinha em torno de 10 milhões de seguidores em suas contas no Facebook e no Twitter, somadas. No dia 30 de setembro, três semanas depois da facada, esse número havia saltado para 12,5 milhões, um crescimento de 25% (ele chegou ao segundo turno com 17 milhões de seguidores nas redes sociais). Ocorre que, de acordo com os números da Bites, o desempenho de Bolsonaro nas redes vinha aumentando numa curva estável desde o mês de abril. O atentado, portanto, foi um evento excepcional, mas não um ponto de inflexão na campanha — a tendência de crescimento já existia. O cientista social Maurício Moura, um dos primeiros a predizer a vitória do ex-capitão, concorda com a análise. Especialista em psicologia política pela Universidade Stanford e CEO da lDElA Big Data, ele diz que o atentado trouxe benefícios eleitorais e políticos evidentes para Bolsonaro, mas não determinou sua vitória.

Das 16 horas às 18 horas daquela quinta-feira, dia 6 de setembro, o nome de Jair Bolsonaro recebeu mais de 380 mil menções na web. lsso sim “um evento inédito no mundo digital”, afirma Moura, considerando que o número foi alcançado em meras duas horas. Significa que o atentado direcionou milhões de seguidores para as plataformas de interação do candidato do PSL, além de lhe dar um fenomenal, gratuito e diuturno espaço na TV e nos jornais, poupá-lo de eventuais desgastes em sabatinas e debates e obrigar seu concorrente tucano, Geraldo Alckmin, a diminuir o tom das críticas contra ele. Àquela altura, porém, afirma Moura, o candidato do PSL já era o favorito. No dia 5 de setembro, um dia antes da facada, os trackings da lDElA Big Data mostravam que ele tinha quase 20% de votos espontâneos nas pesquisas, o que já lhe garantia o segundo turno. “As condições conjunturais e estruturais favoráveis à sua eleição já estavam dadas”, afirma Moura.25

No dia 24 de maio de 2019, o juiz Bruno Savino, da 3a Vara Federal de Juiz de Fora, concluiu que Adélio Bispo de Oliveira era portador de transtorno mental e, portanto, inimputável. Ou seja, ele era incapaz de entender o caráter do crime que cometera e de responder por seus atos.

A decisão do juiz, proferida oito meses depois do atentado, se baseou em quatro laudos médicos assinados por peritos solicitados por advogados de Oliveira e de Bolsonaro. Os laudos dos psiquiatras oscilavam entre a inimputabilidade e a semi- imputabilidade, mas foram unânimes no diagnóstico de que o servente de pedreiro era portador de transtorno delirante persistente. Trata-se de uma doença psíquica que provoca delírios e falsas crenças que eventualmente podem estimular o paciente a atentar contra si ou terceiros. Os advogados de Bolsonaro decidiram não recorrer da sentença.

No âmbito da investigação criminal, a Polícia Federal abriu dois inquéritos. Um para saber se havia mais alguém com Oliveira no dia do crime; outro para investigar se o atentado teve mandantes ou financiadores. O primeiro foi encerrado em 28 de setembro e concluiu que, no dia do atentado, o agressor agiu sozinho. Para chegar a essa conclusão, a PF analisou 150 horas de vídeos, 1200 fotos e 2 terabytes de informações colhidas por meio de quebras do sigilo telefônico, bancário e telemático de Oliveira.

O segundo inquérito, que pretende averiguar a existência de um mandante ou de um grupo criminoso por trás do agressor, não estava concluído até dezembro de 2019. O responsável pela remuneração do advogado de Oliveira é um dos tópicos a serem esclarecidos. A PF pediu mais prazo para concluir a investigação que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) obteve uma liminar que suspendeu a quebra de sigilo do defensor Zanone Manuel de Oliveira. A OAB alegou que a investigação sobre quem pagou os honorários de Oliveira violava o sigilo profissional do advogado. Em julho, a iniciativa da OAB resultou em um ataque pessoal de Bolsonaro contra o presidente da entidade, Felipe Santa Cruz. O ex-capitão jamais acreditou que o agressor tenha agido por iniciativa própria.

Bolsonaro foi eleito presidente da República e o poder não teve o condão de espantar seus medos, ao contrário. Eleito, o ex-capitão do Exército passou a desconfiar de colaboradores próximos e integrantes do governo. Gustavo Bebianno entrou em seu radar ainda no período da transição. Já indicado secretário-geral da Presidência, o advogado queria priorizar em sua pasta o combate à ineficiência do setor público. “Não faz sentido, por exemplo, o Planalto ter 3200 funcionários e a Casa Branca ter trezentos”, repetia. Em dezembro de 2018, Bebianno coordenou um programa em que profissionais da Fundação Falconi, criada pelo especialista em gestão Vicente Falconi, treinariam uma turma de trezentos gestores públicos a fim de modernizar a prestação de serviços do governo em áreas como saúde, educação e segurança. A consultoria seria bancada pela iniciativa privada — empresários de diversos setores já haviam se mostrado dispostos a aderir ao financiamento. Ao tomar conhecimento da iniciativa, o presidente reagiu com desconfiança. “Essas consultorias são muito caras. Aí tem treta”, afirmou a Onyx Lorenzoni, que assumiria a Casa Civil. O comentário chegou aos ouvidos de Bebianno e teve o efeito de esfriar o entusiasmo do futuro ministro. O projeto foi para a gaveta.

Mas é no campo ideológico que as suspeições do presidente se intensificam. O governo e as repartições públicas estariam infestados de inimigos, os “esquerdistas”. Em janeiro, um dos primeiros atos de seu governo foi afastar “gente suspeita”. No dia seguinte à posse, por ordem do presidente, Lorenzoni anunciou 320 exonerações destinadas, em suas palavras, a “despetizar” o governo.

Bolsonaro estava decidido a “limpar” a área. Para a empreitada, escalou o amigo Hélio Lopes, presença constante nos cafés da manhã do Alvorada, inclusive aos sábados e domingos. É nessas ocasiões que Bolsonaro passa ao deputado as tarefas da semana. Elas podem consistir, por exemplo, na apresentação de projetos de lei que o presidente prefere que saiam pelo Legislativo. Foi o que ocorreu com aquele que prevê a isenção de impostos para a indústria de carros elétricos. Como o governo queria se distanciar da política de subsídios praticada por Dilma Rousseff, o presidente, aconselhado pela equipe econômica, concluiu que não pegaria bem trazer a causa para o Executivo. Lopes assumiu a paternidade da pauta — até o final de 2019, ela não tinha passado pela análise de nenhuma comissão, primeira etapa da tramitação de um projeto.

Outras missões delegadas ao deputado Lopes são de caráter mais reservado. Em junho, por determinação do presidente, parte do gabinete parlamentar do deputado no Congresso e também de seu escritório de apoio no Rio passou a se dedicar quase exclusivamente à tarefa de “caçar esquerdistas” no segundo escalão dos ministérios. Por meio de pesquisas em redes como Facebook e Linkedln, assessores do deputado foram instruídos a apontar funcionários “não alinhados” com o governo — o que, segundo os critérios usados na varredura, poderia ser atestado por um banner de “Lula livre” numa página do Facebook, por exemplo. Lopes repetia em seu gabinete o que ouvia de Bolsonaro no Planalto: “Agora o governo tem uma linha. Quem não seguir a linha, está fora”.

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, por exemplo, recebeu Hélio Lopes em seu gabinete no dia 18 de junho. Na ocasião, o deputado lhe entregou uma lista de onze funcionários de sua pasta que deveriam ser demitidos por falta de sintonia com o governo Bolsonaro. Mandetta já estava a par do motivo da reunião. Pela manhã, havia estado com o presidente no Planalto. No encontro com o ministro estavam presentes também dois assessores. Mandetta resistiu em cortar apenas duas das onze cabeças pedidas. Argumentou que, apesar dos “desvios ideológicos”, os funcionários trabalhavam bem — os dois nomes permaneceram no quadro do ministério. lnfelizmente, para Bolsonaro, nem todos os integrantes do governo estavam ao alcance do seu expurgo.

NOTAS

22. “ACM pede cassação de Bolsonaro”, Jornal do Brasil, 25 maio 1999; “Bolsonaro pode perder o mandato”, Senadores na Mídia, Senado Federal, 25 maio 1999. O processo de cassação do mandato não chegou a ser aberto, depois de uma retratação de Bolsonaro à Mesa da Câmara.
23. Fernanda Krakovics e Juliana Castro, “Flávio Bolsonaro passa mal durante debate na TV”, O Globo, 25 ago. 2016.
24. Felipe Frazão, Breno Pires, Fábio Leite e Renan Truffi, “Agressor pediu ‘pena de morte’ para Jair Bolsonaro e fez curso de tiro”, UOL, 7 set. 2018.


Texto de Thais Oyama em "Tormenta: O Governo Bolsonaro: Crises, Intrigas e Segredos", Companhia das Letras, São Paulo, 2020, excertos pp.63-75. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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