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| N' Zinga |
A rainha N’Zinga tinha já 58 anos quando os holandeses conquistaram a cidade de São Paulo de Luanda, em 1641. A sua era uma longa história de diplomacia e guerras. “Uma guerreira astuta e prudente”, segundo um oficial holandês com quem conviveu, “tão obcecada por lutas que raramente se exercita de outra forma; tão valente quanto generosa: jamais machucaria um português após sua rendição e trata escravos e soldados da mesma forma.”[174]
N’Zinga era uma mulher em cargo masculino que como homem se portava. Vestia-se de homem e fazia com que seus 50 ou 60 concubinos se vestissem de mulher. Não permitia que a chamassem de rainha; era rei. Certa vez, quando bastante jovem e ainda era seu irmão que estava no comando de N’Dongo, N’Zinga foi em missão diplomática negociar uma trégua com o governador português em Luanda. Não lhe ofereceram cadeira; N’Zinga não teve dúvidas: mandou que um escravo ficasse de quatro no chão e, durante todo o encontro, enquanto o governador esteve sentado, também ela sentou-se.
Os povos que os portugueses encontraram na África não tinham nada do primitivismo tupi. Os bantos dividiam-se numa variedade de reinos, a maioria fiéis ao imperador do Congo. Se não tinham a escrita, dominavam quase todas as outras tecnologias de trabalho de metal, cerâmica e tecelagem e organizavam-se numa política complexa. Quando os europeus passaram a agir no continente, entre os séculos XV e XVI, a África estava em guerra, a caminho de organizar-se em grandes nações. O Império do Congo era uma delas, e seu imperador converteu-se ao catolicismo luso.
Próximo a Luanda ficava o N’Dongo, que seguiu independente. Os portugueses trataram de dobrá-lo, mas N’Zinga reuniu seus exércitos e conquistou o reino vizinho de Matamba. Embora já não tivesse domínio do N’Dongo, ainda era vista por boa parte dos seus como a monarca legítima.
Mais de um governador português tentou providenciar sua morte – no entanto, vencidas umas batalhas, perdidas outras, N’Zinga terminava sempre viva, sempre forte, sempre no comando em algum lugar. Em vida, ela apresentou-se a diplomatas e generais os mais diversos como a católica batizada Ana de Souza, ou a rainha em busca de tréguas, ou a canibal em fúria – e era tudo isso. Não à toa, quando os escravos bantos da Bahia apresentaram aos brasileiros seu jogo de capoeira, o princípio da luta era a ginga: a manemolência de estar sempre no mesmo lugar e sempre em movimento, sempre sorrindo e sempre na ofensiva, um contínuo em pé estando fluido. “Ginga”, a palavra, vem de N’Zinga, a rainha.
Do ponto de vista europeu, a história conta que Angola era dos portugueses.
Então os holandeses dominaram o terreno, e aí se seguiu a reconquista. E, contado assim, parece que brancos diversos lutaram enquanto os negros escravos futuros observaram. Mas não foi. A habilidade holandesa foi a de aceitar o acordo que N’Zinga havia proposto antes aos portugueses: que não cassassem escravos em seu reino, que não interferissem na política local, que fornecessem armas.[175] Em troca, ela cuidaria do fornecimento continuado de escravos vindos de suas outras guerras. Assim, conquistada a pequena Luanda, com o apoio de N’Zinga os holandeses conseguiram sufocar até quase eliminar a presença portuguesa na terra dos bantos.
A rainha N’Zinga já tinha chegado aos 65 anos, há 41 no poder, e ainda comandava seus exércitos à frente, embrulhada em suas peles de leopardo – tinha talvez até fome de carne humana – quando seu novo adversário português chegou ao costão africano. A essas alturas, quase todos os reinos já eram fiéis ou a N’Zinga ou aos holandeses. Até o Congo, que a um tempo pareceu irremovível na coluna portuguesa, tinha já se bandeado. Apenas dois reinos muito pequenos continuavam aliados de Lisboa. Só que o novo governador de Angola não era como os anteriores. Este novo poderia ser descrito da mesma forma que N’Zinga: um guerreiro astuto e invicto.
Salvador Corrêa de Sá e Benevides vinha do Brasil. Quando deixou Lisboa nomeado para o cargo africano, carregava duas ordens distintas. Oficialmente, deveria obedecer o cessar-fogo com os holandeses e teria a sua disposição uns 600 homens, angariados entre Portugal e Madeira. Mas d. João IV não nomeou alguém com suas aptidões militares com nenhum outro objetivo que não o da reconquista de Angola.
Os povos que os portugueses encontraram na
África não tinham nada do primitivismo tupi. Se
não tinham a escrita, dominavam quase todas
as outras tecnologias de trabalho de metal,
cerâmica e tecelagem e organizavam-se numa
política complexa.
Era um período crítico: as informações recebidas da Holanda faziam crer que se preparava uma grande expedição, 53 navios, 6.000 homens, que viriam apoiar a colônia no Brasil. Quando Salvador chegou ao Rio, não faltou quem lhe recomendasse prudência. Depois de terem dominado Pernambuco, de terem quase controlado a Bahia, os holandeses talvez quisessem o Rio. O próprio Salvador hesitou – mas o padre João d’Almeida teve uma visão e disse que deveria seguir para a África.
De Lisboa, Salvador tinha partido com cinco navios, umas centenas de homens angariados nas cadeias – “dos piores”, segundo Benevides – e pouco dinheiro. Na Bahia, o governador-geral havia dado ordens para que um imposto sobre o açúcar fosse instaurado para financiar sua expedição. Mas Salvador achou melhor pedir o empréstimo voluntariamente. O dinheiro veio. Um dos homens ricos do Rio chegou a levar sua contribuição acompanhado de uma banda. A generosidade carioca e paulista permitiu que Salvador deixasse a Guanabara rumo à África, em 12 de maio de 1648, com 15 navios e 1.400 homens.
E os holandeses deram dois passos em falso. Em Pernambuco, o governo do Brasil holandês ofereceu-se para interceptar a esquadra de Salvador. A chefia europeia julgou que não havia necessidade. Consideravam que a missão, composta de mais índios do que brancos, não tinha qualquer chance. A notícia de que estavam a caminho, no entanto, não chegou a tempo em Luanda. Salvador teve sorte. Quando deu na costa angolana, em agosto, capturou dois pescadores de quem soube que o governador Symon Pieterszoon estava no interior, acompanhado de pelo menos metade de seus homens e mais N’Zinga, numa marcha para eliminar de vez o bastião português. As duas centenas de homens que restaram, ao ver a frota chegando, deixaram Luanda e abrigaram-se nos pequenos fortes em dois morros próximos à cidade.
No dia 15, Salvador Corrêa de Sá e Benevides simplesmente marchou sobre a capital da Angola acompanhado de 800 soldados e 200 marinheiros.[176] Nos navios, deixou uma série de manequins à proa que foram confundidos com mais gente por quem estivesse assistindo de longe. No dia 16, avançou contra o forte de um dos morros. Não conseguiu muito. Então planejou um segundo ataque, organizado em três colunas. Duas avançariam sobre o forte mais protegido por dois lados diferentes, a terceira contra o segundo forte. Mas, na madrugada do dia 17, contando apenas com ampulhetas para marcar o tempo, os ataques seguiram dessincronizados, um após o outro, facilitando aos holandeses a resistência. O fiasco terminou com 150 homens mortos do lado carioca, três do holandês.
E aí os holandeses levantaram a bandeira branca.
Talvez tivessem os canhões avariados, talvez tenham acreditado que os cariocas eram inúmeros, dados os manequins. Talvez simplesmente não estivessem dispostos a lutar até a morte. Após negociações, assinaram a rendição no dia 21. Marcharam em retirada no dia 24, mesmo dia em que, esbaforido, o governador Pieterszoon voltava do interior sem mais qualquer chance de nada que não aceitar o fato consumado. Repentinamente sem aliados, a rainha N’Zinga retirou-se para o interior. Mais de dez anos depois, finalmente assinou um tratado de paz com os portugueses. Morreu ainda no trono, sucedida por uma irmã. Tinha 80 anos.
Oficialmente, Portugal informou aos holandeses que Salvador Corrêa de Sá e Benevides operou contra suas ordens, fazer o quê. No espaço de uma semana, reverteu a situação africana e assumiu o governo de Luanda, instaurou um imposto para pagar a dívida para com cariocas e paulistas e manteve-se no cargo até 1652. Foi quando voltou ao Rio de Janeiro. No colégio dos Jesuítas, o velho padre João tinha ainda uma última profecia para lhe fazer: de que estaria de volta a Portugal ainda naquele ano.
Em 1649, os portugueses reconquistaram Pernambuco. Foi uma vitória de Pirro. Parte dos holandeses tomou o caminho de Nova Amsterdã, futura Nova York. A maioria seguiu para as ilhas Antilhas, onde estabeleceu o negócio do açúcar com o know-how aprendido no Brasil. Na segunda metade do século, a competição com o novo fornecedor de açúcar tornou-se devastadora para a economia da colônia e de sua metrópole. Portugal e Brasil estavam fadados a uma crise econômica ainda mais grave.
Salvador Corrêa de Sá e Benevides era um homem amargurado quando foi renomeado novamente para o governo do Rio, em 1668. Era mais poder, dessa vez. O Rio tornava-se capital da Repartição Sul: todo o país do Espírito Santo para baixo. O trecho da Bahia até o Maranhão continuava a cargo do governador-geral, mas Salvador sentia que era pouco. Havia dado a Portugal sua primeira grande vitória militar em várias e várias décadas e recebeu quase nada em troca.
D. João IV achava, não sem razão, que se concedesse um título de nobreza ou um cargo importante demais, estaria premiando aquilo que oficialmente tinha sido insubordinação. Salvador tornou-se um homem importante demais para o Império e no entanto devia seguir sem reconhecimento.
A cidade do Rio continuava com a família. Lá, Salvador encontrou seu primo Tomé Correia de Alvarenga no governo, mas não teve pressa de substituí-lo. Fez-se governador de fato, mas permitiu que o outro continuasse com o salário. Ele estava se aproximando dos 60 anos, não tinha alcançado toda a glória que desejou e não por sua incompetência. As ondas políticas pareciam sempre quebrar ao seu redor. Sobreviveu sempre, mas elas encurtaram suas possibilidades. Ao Salvador envelhecido restava apenas uma obsessão: ouro.
Seu pai Martim havia procurado ouro. Assim como todos os bandeirantes. O padre Vieira costumava dizer deles que a busca por ouro não passava de uma desculpa para caçar índios, e talvez fosse verdade. Mas havia uma crença profunda de que em algum lugar existia ouro escondido. As lendas indígenas, herdadas dos tempos quinhentistas, persistiam. Ora falavam de Sambarabussu, as montanhas brilhantes, ora referiam-se à serra das Esmeraldas. E nem todas as buscas tinham sido infrutíferas. Algum ouro já tinha sido encontrado nos leitos de rios próximos a São Paulo. Nos finais dos anos 1640, uma quantidade até razoável foi encontrada próxima ao rio Paranaguá. Só que não era ainda como no Potosí, não era uma quantidade obscena.
Salvador tinha para si que era no Espírito Santo que encontraria. Antes mesmo de assumir o governo, em 1659, ordenou que o filho João conduzisse uma expedição saindo de Vitória.
De resto, tinha outra preocupação: o negócio naval de sua família. Montou um estaleiro na ilha onde funcionou o engenho de seu avô, o velho Salvador. Não tinha sonho pequeno: queria construir o maior navio a singrar nos mares para o transporte de açúcar e mantimentos da Companhia Geral do Comércio. Mas o trabalho no galeão Padre Eterno seguiu lento, durou anos. De qualquer forma, é assim que a ilha do Governador ganhou sua ponta do Galeão, onde funcionaria mais tarde o aeroporto internacional.
Em janeiro de 1660, finalmente assumiu o governo. O Rio de Janeiro estava falido. Os navios da Companhia Geral do Comércio estavam atrasados, várias epidemias em sequência eliminaram boa parte da mão de obra escrava. Sem dinheiro circulando o comércio estagnou-se. Como pouco se comprava e pouco havia à venda, os impostos foram deixando de ser arrecadados. A guarda da cidade, de 350 homens, não recebia salário fazia nove meses, e portanto muitos dos soldados trabalhavam à noite como taberneiros. A cidade estava falida e desguarnecida.
Salvador reuniu a Câmara, queria passar um novo imposto predial de emergência. Não seria, ele argumentava, nada que já não estivesse sendo feito em Pernambuco e na Bahia, onde o funcionalismo público era sustentado diretamente por taxas pagas pelos cidadãos. Só que ninguém tinha dinheiro e a última dívida contraída por sugestão de Salvador, a que financiou a reconquista de Angola, ainda não havia sido paga de todo.
Angola, aliás, havia sido um favor da cidade a Lisboa e havia ganho pouco em troca.
A Câmara fez ao governador uma contraproposta. Que os cidadãos fizessem doações voluntárias. Foi aprovada unanimemente – até com o voto do representante dos jesuítas. Se todo o dinheiro não fosse angariado, restabeleceriam o fabrico de aguardente – que Lisboa havia proibido para conceder o monopólio do álcool à Companhia do Comércio – e dele extrairiam um novo imposto. Mal-humorado, Salvador concordou. O dinheiro voluntário não veio. Veio a cachaça, tascaram novos impostos também no azeite, no vinho, no tabaco. Continuou insuficiente. Aí Salvador simplesmente impôs seu pesado imposto predial.
No dia 11 de outubro, passou o cargo ao primo Tomé, e tomou o rumo do sul para se informar em São Paulo sobre como estava a busca por minas.
A reunião teve início na noite de 7 de novembro, numa praia de São Gonçalo, do outro lado da Guanabara. Então eles cruzaram a baía e não havia sol ainda quando começaram a gritar. A multidão se uniu a eles, invadiram a Câmara. Convocaram o tabelião, o governador em exercício, os vereadores. Tomé não foi; quando soube, fugiu para o mosteiro de São Bento em busca de proteção. Quem se sentia próximo dos Sá fugiu igualmente. O tabelião então lavrou ata datada do dia 8 às cinco da manhã, dando notícia do golpe: Tomé estava deposto. Toda a Câmara, idem. Os impostos, suspensos.
Uma revolução popular estava em curso.
O líder revolto Jerônimo Barbalho Bezerra, cujo pai havia sido herói da resistência aos holandeses na Bahia, mandou carta com ordens para que Tomé se apresentasse. O governador deposto respondeu por escrito que não ia, recomendou calma, explicou que não podia concordar com nenhuma das ações. Aí a multidão subiu São Bento. Aos berros reclamavam que Salvador havia “descomposto os homens, mesmo oficiais da Câmara, com palavras injuriosas e afrontosas”.
Tomé e os seus foram presos na fortaleza de Santa Cruz.
Os impostos e a eventual falta de consideração de Salvador não estavam entre suas únicas queixas. Reclamavam que ele obrigava os fazendeiros a emprestarem seus escravos, que desflorestava as terras dos outros em busca de toras para a construção do Padre Eterno, que manipulou para conseguir o monopólio da venda de carne, reservava de cada carregamento vindo de Angola os melhores escravos para si e impunha aos negreiros um preço de sua escolha. Dava festas em sua casa que seguiam até tarde, onde os frequentadores perdiam o dinheiro que traziam nas cartas. Por fraude, acusavam, tinha se transformado no homem mais rico do Brasil.
E, por aclamação, o povo elegeu Agostinho Barbalho, irmão de Jerônimo, para o governo. Os dois não pareciam ter o mesmo sangue: foi a vez de Agostinho esconder-se, este no convento de Santo Antônio. Foram buscá-lo explicando que sua outra opção era a morte. Ele aceitou o cargo, mas passados uns dias adoeceu, ou assim disse, e foi “sangrado em saúde”, assim disseram.
A providência seguinte foi circular homens com tambores pela cidade lendo a declaração de esquina em esquina. “Que toda a pessoa de qualquer qualidade, parente ou não parente do general Salvador Corrêa de Sá e Benevides, criado, amigo e afeiçoado, que se quiser ir para a sua companhia, se irá manifestar ao Senado da Câmara para se lhe dar licença e toda boa passagem.”[177] Tinham o prazo de dois dias. Depois, “constando que por qualquer via se carteia com o dito general, ou siga a sua voz, será preso e degredado dez anos para Angola, e haverá a mais pena que o povo lhe quiser dar”.
Agostinho ainda tentou reconduzir os depostos aos cargos, mas os líderes revoltos os puseram num navio e os enviaram presos para julgamento em Lisboa. Não se tratava de uma revolução separatista; declaravam-se leais ao novo rei, o jovem d. Afonso IV, filho de d. João, e tinham convicção de que seriam compreendidos pela metrópole. Reuniram quatro companhias milicianas e espalharam-nas em pontos estratégicos da cidade. No dia 16 de novembro escreveram à Câmara de São Paulo contando do ocorrido. Pediam simpatia.
É só que os acontecimentos de 1640, quando o Rio não foi solidário na expulsão dos jesuítas, veio à memória. E, dessa vez, São Paulo ficou do lado de Salvador.
Protegido em São Paulo, Salvador começou seu xadrez. Enviou carta no Ano-Novo nomeando Agostinho Barbalho seu governador interino, ofereceu uma anistia geral e aboliu os impostos que atiçaram a turba. A resposta foi a deposição de Agostinho em fevereiro. Jerônimo fez-se governador revolto. E a frota da Companhia de Comércio, cuja demora havia agravado a situação econômica do Rio, continuava atrasada. Como não tinha escolha que não esperar, Salvador providenciou o alargamento da trilha que levava da praia a São Paulo, permitindo enfim a passagem de carros de boi ou carroças.
Quando teve notícias de que a frota da Companhia estava se aproximando, Salvador deixou São Paulo. Os paulistas ofereceram-lhe reforços, mas ele disse que não precisava. Por mais justas que fossem as queixas cariocas, jamais houve possibilidade de sucesso. Jamais teriam como usar uma milícia maltreinada para resistir a um dos melhores estrategistas militares de seu tempo.
Em 1649, os portugueses reconquistaram
Pernambuco. A maioria [dos holandeses] seguiu
para as Ilhas Antilhas, onde estabeleceu o
negócio do açúcar aprendido no Brasil. A
competição com o novo fornecedor de açúcar
tornou-se devastadora para a economia da
colônia portuguesa e de sua metrópole.
Em Angra dos Reis, Salvador encontrou-se com o filho João. A frota, comandada por Manuel e Francisco Freire de Andrade, seu amigos de há muito, cruzou a Guanabara preparada para dar qualquer apoio que fosse necessário. Na madrugada do dia 6 de abril, acompanhado de índios, seus constantes aliados, Salvador e João entraram na cidade, dominaram o paiol e os pontos de sentinela. Os soldados da frota, devidamente uniformizados, desceram à terra e puseram-se em formação na atual praça XV. Quando o dia amanheceu, a revolução já havia caído sem que seus líderes o soubessem. Foi sua vez de procurar refúgio nos conventos sem qualquer chance.
A corte marcial mandou prender todos no mesmo dia e deportá-los para julgamento na Bahia. Com a exceção de Jerônimo.
Foi decapitado no largo da Polé antes de a noite cair.
Dias depois, em carta para El-Rei, Salvador explicou sua decisão. “Resolvemos pôr-lhe a cabeça no pelourinho, com que não só se conseguiu a quietação, mas um geral exemplo às conquistas de Vossa Majestade.”
Lisboa não gostou. O auto que derrubara Salvador tinha sido assinado por 112 pessoas. O conselho ultramarino se apressou a lembrar tanto para a rainha regente quanto para seu filho que revoltas populares já haviam causado problemas no Ceilão, em Macau e em Goa. Em geral, a população tinha mais razão do que os governadores. E, no caso do Rio de Janeiro, era particularmente grave. A cidade era importante demais no Brasil, e o Brasil ainda sustentava o Império. O Conselho concluía ainda, a respeito da substituição de Salvador, que era “uma pena que não tivesse sido antes”.[178]
Em 29 de abril de 1662, o fidalgo Pedro de Mello foi nomeado governador do Rio de Janeiro. Salvador Corrêa de Sá e Benevides permaneceu em sua casa por ainda mais um ano para cuidar do fim da construção do Padre Eterno.
O período revolucionário, no qual a cidade governou-se por conta própria, durou cinco meses.
Ao aportar em Lisboa, em junho de 1663, Salvador foi preso, acusado de ter aceito suborno de navios holandeses para carregarem-se de açúcar no porto do Rio. Não durou muito a prisão e, ainda no fim do ano, ele retornou à cadeira no conselho ultramarino. Os processos judiciais envolvendo a revolta carioca que ficou conhecida na história como Bernarda terminaram em 68 com uma anistia geral.
Em Lisboa, d. Afonso IV era um imbecil com mais gosto por farras do que governo. As coisas do Estado eram tocadas pelo conde de Castelo Melhor, na recente tradição europeia inaugurada por Richelieu. Salvador rapidamente fez amizade com o conde, e assim sua sorte política virou. Num golpe palaciano, a mulher de Afonso, Maria Francisca de Saboia, o convenceu a renunciar ao trono em nome do irmão, d. Pedro II de Portugal. Aí a jovem, ajudada pelos jesuítas, conseguiu a anulação do matrimônio alegando estar intacta. Casou-se com Pedro. Salvador fez parte ainda de uma tentativa de contragolpe em favor de d. Afonso e Castelo Melhor, mas fracassou. Ao fim de uma longa madrugada, ao lado dos golpistas fracassados, foi vaiado por uma multidão em Lisboa quando visto na sacada do palácio real.
Foi salvo da ira real, no entanto, pela interferência de seus velhos amigos jesuítas, que jamais o abandonaram.
Os Sá mantiveram o título hereditário de alcaide-mor do Rio de Janeiro, mas tratava-se de uma sinecura com alguma renda e nenhum efeito político. Em 1666, Martim de Sá, primogênito de Salvador, foi feito visconde de Asseca. No leito de morte, o último Sá a governar o Rio escreveu sem falsa modéstia: “Sempre dei boa conta de mim.” Ele costumava dizer que queria morrer com “o consolo de ouvir tiros na hora da morte”.[179] Mas não morreu em batalha; morreu na cama, em Lisboa, no Ano Novo de 1687.
A história se nega a dar um veredicto a respeito de Salvador Corrêa de Sá e Benevides. Seu avô, o velho Salvador, era só um garoto para quem sobrou o governo e que foi ficando na terra. Seu pai, Martim, era carioca, tinha bons relacionamentos com o reino, era capaz militarmente, mexia-se com desenvoltura na política local.
Mas Salvador e Benevides foi tão além.
Durante mais de década, os paulistas tiveram medo de uma mera visita sua, como se sua presença fosse capaz de incutir nos índios um desejo de liberdade e revolta que pudesse quebrar o tênue equilíbrio social. A comunidade do Rio e de São Paulo era profundamente incoerente. As índias eram suas mulheres, seus filhos eram mamelucos, falavam tupi mais que português e seus escravos eram índios. Há quem olhe com estranheza para a África onde negros escravizavam e revendiam negros. O sul brasileiro não foi em nada diferente.
Salvador Corrêa de Sá e Benevides é lembrado pela história portuguesa como um dos raros generais capazes em uma longa tradição de incompetentes. Só que não era realmente um general europeu; no fundo era um bandeirante que substituiu o gibão de couro por roupa de mosqueteiro. Mas, com seus índios flecheiros e longas canoas, não enfrentava outros índios. Enfrentou, feriu e venceu Piet Heyn, o herói holandês, o homem que capturou uma das frotas espanholas mais bem protegidas do tempo. Com seus mesmos índios flecheiros, quando Portugal estava falido, em uma trinca de dias reconquistou Angola e encaminhou a paz com os bantos.
Por que terá insistido na defesa dos índios? Os jesuítas tinham lá sua missão religiosa. Mas Salvador se expôs demais pelo apoio aos padres. No fim, esse incômodo que causou teve parte na revolta que o derrubou. Provavelmente havia ali uma carga emocional muito forte; talvez, em seus momentos de fraqueza, quando se permitia exibir medo ou insegurança, encontrasse consolo na figura paterna do padre João D’Almeida, como seu tio-avô Estácio encontrou em Anchieta. Mas Estácio era um menino. Salvador, um homem, um desses personagens maiores que a história. Talvez o espírito de camaradagem em guerras sempre acompanhado dos tupis o fizesse vê-los de maneira diferente. Não é que lhe repugnasse a escravidão; não tinha esses pudores com negros.
Talvez fosse arrogância, um olhar de desprezo para o povo branco, os lojistas, pequenos donos de terras, a classe média carioca ainda provinciana a sua volta.
E talvez este mesmo povo branco o olhasse com inveja. A maioria das pessoas ali conviveu com ele desde sempre. Os revoltosos de 1660, os revoltosos de 1640, todo mundo era a mesma gente numa cidade muito pequena. Seus pais se conheceram e conviveram, seus avós idem. Lutaram juntos, se sacrificaram juntos.
Salvador é lembrado pela história portuguesa
como um dos raros generais capazes, numa
longa tradição de incompetentes. Só que ele
não era realmente um general europeu; no
fundo era um bandeirante que substituiu o
gibão de couro por roupa de mosqueteiro.
E, no entanto, a mesma compaixão que demonstrou para com os índios, a ponto de correr riscos políticos, jamais a demonstrou pela classe média carioca. Para a gente que vivia de produzir e tentar vender o que produzia. O típico senhor de engenho nordestino, não o havia no Rio. As pessoas viviam uma vida difícil. Lidavam com dívidas, o dinheiro que sobrava era parco. Não tinham água. E Salvador jamais teve pudores de explorá-los. Tinha muito dinheiro, muitas terras, e no entanto queria sempre mais. Passava como um trator pela Câmara, pelos comerciantes, pelos fazendeiros. Exigia deles seus escravos, tirava deles as possibilidades dos negócios com algum futuro. Quantos monopólios pôde ter, teve. Quantas terras pôde conseguir, conseguiu. Não tinha, como seu pai teve um dia, qualquer interesse pelo Rio de Janeiro. Aquelas eram suas terras, como tantas outras, e representavam o cargo com o qual podia contar. Só isso.
A história tradicional costuma contar que a Bernarda liderada por Jerônimo Barbalho foi contra a oligarquia dos Sá. Durante o século XX, historiadores alçaram Barbalho a uma espécie de Tiradentes, o primeiro sujeito a levantar-se contra o excesso de impostos, contra os desmandos do poder colonial. E, nisso, não estão de forma alguma errados. Era esta sua revolta. Mas a revolta não foi contra a oligarquia dos Sá. Não foi contra o velho Salvador, contra Martim – não foi sequer contra Tomé Alvarenga de Sá e os outros primos e tios seus contemporâneos. O próprio Salvador, durante a revolta, despachou o primo Tomé descrevendo sua ação como “mais parecida com a de um campônio que a de um soldado”.
A revolta foi contra Salvador.
Mais de uma vez o acusaram de corrupto. Talvez fosse. Não precisava, então talvez não tenha sido. É curioso que o mesmo conselho ultramarino do qual fazia parte tenha julgado que sua deposição já vinha tarde. Tinha muitos inimigos, ali. Como num western, não havia espaço em Lisboa para muitos homens com sua ambição. E, no entanto, se apenas as ondas políticas tivessem sido diferentes; se tivesse demorado mais um pouco para que Portugal ganhasse a independência de Espanha; se d. João não tivesse sido paranoico por conta de sua origem espanhola; se d. João tivesse tido coragem de reconhecer seu feito em Angola; se ao menos d. Afonso não fosse tão fraco e tivesse se mantido no poder, permitindo o governo de Castelo Melhor.
Quase que Salvador foi muito mais do que chegou a ser.
Um governador do Rio que conquistou um país inteiro na África. Um governador do Rio que organizou e quase levou um golpe de estado em Lisboa.
De todas as acusações que lhe fizeram após a Bernarda, a mais curiosa é a de que patrocinava noites de jogatina em sua casa na esquina das atuais Alfândega e Primeiro de Março. Segundo os revoltosos, Salvador terminava sempre limpando o bolso dos presentes. A acusação fazia sentido porque jogos de azar eram malvistos. Mas é curiosa porque só participava quem queria. E é também reveladora. Salvador Corrêa de Sá e Benevides era um jogador. Se havia uma coisa da qual jamais teve medo foi de apostar alto. O tipo de jogador que pega todas suas fichas e as põe às cartas, mesmo que sua mão não seja das melhores. Blefa convicto sem quaisquer dúvidas de que, de alguma forma, talvez apoiado pelo sobrenatural, vencerá. Confiava em si próprio como poucos conseguem. Agiu às vezes com sapiência. Mas também com uma arrogância de quem tem o controle do próprio destino, de que não vê chances de derrota. Salvador jogou por toda a vida e ganhou mais partidas do que perdeu. Morreu muito maior do que nasceu. Mas, para esse tipo de gente, a impressão que fica sempre é de que era possível ir além. Não é à toa que morreu amargurado.
Nunca mais um Sá governou o Rio de Janeiro.
Em 1680, o padre Clemente Martins de Matos comprou a sesmaria que em tempos idos pertencera a João Pereira Botafogo. As terras percorriam o vale a partir da praia até a boca da lagoa de Sacopenapã.[180] O padre Clemente era vigário-geral da cidade e neto de Antônio Martins de Palma, fundador da Candelária. Um dos morros de suas terras, chamou-o D. Marta em homenagem a sua mãe, dona Marta Figueira de Matos.[181] E, a partir da praia, traçou um caminho em suas terras na direção de uma pequena capela que ergueu. Era a capela de São Clemente, em homenagem própria. O caminho marca o começo da atual rua São Clemente. Foi assim, em finais do século XVII, que teve início uma expansão tímida em direção à Zona Sul.
Em 1693, um grupo de bandeirantes descobriu ouro à beira do Rio das Mortes, em Minas.[182]
Notas
[174] BOXER, Charles R. op. cit.
[175] SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo.
[176] BOXER, Charles R. op. cit.
[177] FAZENDA, José Vieira. op. cit., vol. 2.
[178] BOXER, Charles R. op. cit.
[179] BOXER, Charles R. op. cit.
[180] Atual Rodrigo de Freitas.
[181] GERSON, Brasil. op. cit.
[182] BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil.
Texto de Pedro Doria em "1565, Enquanto o Brasil Nascia", Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2012. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.


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