Ao contrário do que se poderia pensar, os séculos da Idade Média em que a alimentação foi qualitativamente melhor foram os primeiros. Carestia à parte, os grandes espaços incultos que surgiram após o despovoamento causado pelas guerras e invasões eram, de fato, utilizados para a criação de animais: gado bovino, ovino e caprino nas áreas mais abertas; suíno, nas florestas e nos bosques. A carne, portanto, era comum mesmo nas mesas dos mais pobres, sobretudo a de porco, cujo consumo foi importado ao mundo mediterrâneo pelos bárbaros. Os últimos séculos, porém, se caracterizaram por uma maior diversificação alimentar: os ricos comem caças e carnes, os pobres legumes e alimentos mais frugais. Os temperos, usados não para camuflar os sabores, mas para ostentar riqueza, impuseram-se como símbolo de status. E se nos conventos se pregava (e se praticava com toda a distinção do caso) a moderação, fora dos claustros os excessos serviam – quando se podia – também para exorcizar no gozo o sempre ameaçador perigo das carestias.
O bom prato
Comecemos tomando o exemplo dos lombardos, que se instalaram na Itália no ano 568 conquistando em poucos anos grande parte da península. Os dados obtidos graças à análise química dos restos ósseos descobertos em duas necrópoles de Cividale del Friuli (Udine) demonstram que a população nessa época comia muito e de variadas maneiras, embora com alguma diferença de acordo com os rendimentos. Se as sepulturas de Santo Estêvão em Pertica parecem atestar uma prevalência do consumo de carne vermelha, as de São Mauro sugerem uma utilização maior de cereais e verduras. Provavelmente se tratava de áreas cemiteriais pertencentes a classes sociais diferentes. Mas também os restos descobertos na necrópole dos menos abastados contêm uma elevada relação entre zinco e sódio, própria de um consumo de carne abundante.
A prevalência de áreas incultas em relação àquelas de campos com cultivos regulares permitia, ademais, praticar amplamente a criação, a pesca e a caça, que, em plena conformidade com o espírito dos povos germânicos – nômades e voltados ao pastoreio – tornou-se também na Itália da Alta Idade Média o principal meio de sustento. A base da alimentação se constituía de animais selvagens, aves de capoeira, ovinos, javalis e porcos, esses últimos criados em estado selvagem nos bosques e nutridos com bolotas, enquanto os bovinos eram usados para os trabalhos nos campos e sacrificados apenas mais tarde, quando já não rendiam mais.
A importância do porco era decisiva, a ponto de servir como “unidade de medida” para calcular o tamanho dos bosques, determinado com base no número de cabeças que podia sustentar. Mosteiros e senhorios estabeleciam, também, aos seus rendeiros que o pagamento das rendas, além de em cereais, podia ser feito por meio de um número específico de porcos (e outros animais), a entregar anualmente.
O que diferenciava as dietas não era tanto a qualidade do alimento, mas, no caso, a quantidade. Na mentalidade germânica, o guerreiro – que era parte da aristocracia – “devia” comer muito porque somente assim podia ser valoroso, robusto e também fisicamente imponente. Alimentar-se principalmente de grande quantidade de carne era um sinal distintivo e era intolerável não o fazer, por ser um indicador da força e da violência que distinguia quem tinha a função de guerrear. Apenas com esse conceito em mente é que se pode compreender plenamente a gravidade da punição – descrita em uma legislação de 811 e que previa a proibição de comer carne – reservada a quem fosse renitente ou se apresentasse atrasado para a chamada às armas. Era, enfim, como negar a pertença ao grupo dominante. Uma anedota citada por Massimo Montanari, historiador da alimentação na Idade Média, ajudará a esclarecer esse conceito:
Quando Carlos Magno percebe que um de seus comensais despolpou e esmigalhou uma grande quantidade de ossos, chupando-lhes o miolo e fazendo um pequeno monte embaixo da mesa, não hesita em reconhecer que deve tratar-se de um “fortíssimo soldado” e identificá-lo com Adalghis, filho do rei dos Lombardos. “Comia como um leão que devora a presa”, se diz dele, e a indisfarçável admiração dos presentes é a melhor prova daquilo que se entendia por virilidade. No fundo, tinha razão Aristófanes: “Os bárbaros consideram você um homem apenas se for capaz de comer uma montanha”[44].
O próprio Carlos Magno, com efeito, era um grande comilão. De acordo com seu biógrafo Eginhardo, apesar da gota, fazia como queria e aos médicos que lhe aconselhavam (leia-se “proibiam”, mas tratava-se sempre de um soberano!) evitar os assados e preferir os cozidos, respondia como se pode facilmente imaginar.
Sobre as mesas, as louças eram simples: tigelas, taças, colheres, geralmente de madeira, material barato e facilmente transportável. O garfo não existia na Alta Idade Média e se comia com as mãos, cortando o alimento e espetando-o com a faca. A cerâmica aparecia, via de regra, nas mesas mais abastadas: panelas, tigelas, jarros e potes decorados com motivos geométricos em estampilha ou transparentes.
Ao lado das carnes, principalmente as classes menos favorecidas consumiam vegetais e legumes em abundância, geralmente em forma de sopas. Sua variedade chegou a nós através do Capitulare de villis, a célebre lei emanada pelo próprio Carlos Magno, em 795, para reorganizar as fazendas (villae) do reino. No capítulo 70 elenca todos os cultivos indispensáveis nas hortas:
Queremos que nas hortas seja cultivado todo tipo de plantas: lírios, rosas, trigonelas, balsamitas, sálvia, arruda, abrótanos, pepinos, melões, abóboras, feijões, cominho, alecrim, alcaravia, grão-de-bico, scilla, gladíolo, artemísia, anis, as colocíntidas, endívia, visnaga, antrisco, alface, barbas-de-velho, rúcula, mastruz, bardana, pulicária, snúmio, salsa, aipo, levístico, genebreiro, aneto, funcho, chicória, fraxinela, mostarda, segurelha, zimbro, menta, hortelã-verde, tanaceto, cataia, eritrea, papoula, beterraba, vulvagine, alteia, malva, cenoura, pastinaca, armole, amarantos, nabos, couve, cebola, cebolinha, alho-poró, rábano, chalota, alho, ruiva-dos-tintureiros, cardos, favas, ervilhas, coentro, cerefólio, eufórbia, selarcia. E o hortelão faça crescer sobre o teto de sua casa a barba-de-Júpiter. Quanto ao nome das árvores, desejamos que haja frutíferas de vários tipos: pés de marmelo, de avelã, de amêndoas, amoras, louro, pinha, figo, nozes, cerejas de várias espécies. Nomes de maçãs: gozmaringa, geroldinga, cerevedella, spiranga, doces, azedas, todas as de longa duração e aquelas de consumo rápido e as de estação. Três ou quatro tipos de peras de longa duração, as doces, as de cozinhar, as temporãs.
Identificar algumas dessas “ervas” é quase impossível. Mas o que importa é mostrar como na Alta Idade Média se tinha à disposição variedade e quantidade, não apenas para os ricos, mas para o resto da população.
O queijo era produzido com leite ovino e caprino, mais salgado e aromático, e era muito apreciado o leite coalhado – antepassado do iogurte – que, por exemplo, os lombardos (mas não apenas eles) conheceram dos povos das estepes com quem tiveram contato durante sua estadia nas vastas planícies da Panônia (que corresponde aproximadamente à atual Hungria).
Os condimentos mais utilizados, o lardo e a banha de porco, garantiam um adicional calórico adequado para a vida e o trabalho nos campos, assim como as frutas secas. Para dar sabor (e conservar) os alimentos, recorria-se aos temperos, ao passo que para adoçar se usava o mel, porque o açúcar de cana era difícil de fabricar e muito caro.
O bom prato
Comecemos tomando o exemplo dos lombardos, que se instalaram na Itália no ano 568 conquistando em poucos anos grande parte da península. Os dados obtidos graças à análise química dos restos ósseos descobertos em duas necrópoles de Cividale del Friuli (Udine) demonstram que a população nessa época comia muito e de variadas maneiras, embora com alguma diferença de acordo com os rendimentos. Se as sepulturas de Santo Estêvão em Pertica parecem atestar uma prevalência do consumo de carne vermelha, as de São Mauro sugerem uma utilização maior de cereais e verduras. Provavelmente se tratava de áreas cemiteriais pertencentes a classes sociais diferentes. Mas também os restos descobertos na necrópole dos menos abastados contêm uma elevada relação entre zinco e sódio, própria de um consumo de carne abundante.
A prevalência de áreas incultas em relação àquelas de campos com cultivos regulares permitia, ademais, praticar amplamente a criação, a pesca e a caça, que, em plena conformidade com o espírito dos povos germânicos – nômades e voltados ao pastoreio – tornou-se também na Itália da Alta Idade Média o principal meio de sustento. A base da alimentação se constituía de animais selvagens, aves de capoeira, ovinos, javalis e porcos, esses últimos criados em estado selvagem nos bosques e nutridos com bolotas, enquanto os bovinos eram usados para os trabalhos nos campos e sacrificados apenas mais tarde, quando já não rendiam mais.
A importância do porco era decisiva, a ponto de servir como “unidade de medida” para calcular o tamanho dos bosques, determinado com base no número de cabeças que podia sustentar. Mosteiros e senhorios estabeleciam, também, aos seus rendeiros que o pagamento das rendas, além de em cereais, podia ser feito por meio de um número específico de porcos (e outros animais), a entregar anualmente.
O que diferenciava as dietas não era tanto a qualidade do alimento, mas, no caso, a quantidade. Na mentalidade germânica, o guerreiro – que era parte da aristocracia – “devia” comer muito porque somente assim podia ser valoroso, robusto e também fisicamente imponente. Alimentar-se principalmente de grande quantidade de carne era um sinal distintivo e era intolerável não o fazer, por ser um indicador da força e da violência que distinguia quem tinha a função de guerrear. Apenas com esse conceito em mente é que se pode compreender plenamente a gravidade da punição – descrita em uma legislação de 811 e que previa a proibição de comer carne – reservada a quem fosse renitente ou se apresentasse atrasado para a chamada às armas. Era, enfim, como negar a pertença ao grupo dominante. Uma anedota citada por Massimo Montanari, historiador da alimentação na Idade Média, ajudará a esclarecer esse conceito:
Quando Carlos Magno percebe que um de seus comensais despolpou e esmigalhou uma grande quantidade de ossos, chupando-lhes o miolo e fazendo um pequeno monte embaixo da mesa, não hesita em reconhecer que deve tratar-se de um “fortíssimo soldado” e identificá-lo com Adalghis, filho do rei dos Lombardos. “Comia como um leão que devora a presa”, se diz dele, e a indisfarçável admiração dos presentes é a melhor prova daquilo que se entendia por virilidade. No fundo, tinha razão Aristófanes: “Os bárbaros consideram você um homem apenas se for capaz de comer uma montanha”[44].
O próprio Carlos Magno, com efeito, era um grande comilão. De acordo com seu biógrafo Eginhardo, apesar da gota, fazia como queria e aos médicos que lhe aconselhavam (leia-se “proibiam”, mas tratava-se sempre de um soberano!) evitar os assados e preferir os cozidos, respondia como se pode facilmente imaginar.
Sobre as mesas, as louças eram simples: tigelas, taças, colheres, geralmente de madeira, material barato e facilmente transportável. O garfo não existia na Alta Idade Média e se comia com as mãos, cortando o alimento e espetando-o com a faca. A cerâmica aparecia, via de regra, nas mesas mais abastadas: panelas, tigelas, jarros e potes decorados com motivos geométricos em estampilha ou transparentes.
Ao lado das carnes, principalmente as classes menos favorecidas consumiam vegetais e legumes em abundância, geralmente em forma de sopas. Sua variedade chegou a nós através do Capitulare de villis, a célebre lei emanada pelo próprio Carlos Magno, em 795, para reorganizar as fazendas (villae) do reino. No capítulo 70 elenca todos os cultivos indispensáveis nas hortas:
Queremos que nas hortas seja cultivado todo tipo de plantas: lírios, rosas, trigonelas, balsamitas, sálvia, arruda, abrótanos, pepinos, melões, abóboras, feijões, cominho, alecrim, alcaravia, grão-de-bico, scilla, gladíolo, artemísia, anis, as colocíntidas, endívia, visnaga, antrisco, alface, barbas-de-velho, rúcula, mastruz, bardana, pulicária, snúmio, salsa, aipo, levístico, genebreiro, aneto, funcho, chicória, fraxinela, mostarda, segurelha, zimbro, menta, hortelã-verde, tanaceto, cataia, eritrea, papoula, beterraba, vulvagine, alteia, malva, cenoura, pastinaca, armole, amarantos, nabos, couve, cebola, cebolinha, alho-poró, rábano, chalota, alho, ruiva-dos-tintureiros, cardos, favas, ervilhas, coentro, cerefólio, eufórbia, selarcia. E o hortelão faça crescer sobre o teto de sua casa a barba-de-Júpiter. Quanto ao nome das árvores, desejamos que haja frutíferas de vários tipos: pés de marmelo, de avelã, de amêndoas, amoras, louro, pinha, figo, nozes, cerejas de várias espécies. Nomes de maçãs: gozmaringa, geroldinga, cerevedella, spiranga, doces, azedas, todas as de longa duração e aquelas de consumo rápido e as de estação. Três ou quatro tipos de peras de longa duração, as doces, as de cozinhar, as temporãs.
Identificar algumas dessas “ervas” é quase impossível. Mas o que importa é mostrar como na Alta Idade Média se tinha à disposição variedade e quantidade, não apenas para os ricos, mas para o resto da população.
O queijo era produzido com leite ovino e caprino, mais salgado e aromático, e era muito apreciado o leite coalhado – antepassado do iogurte – que, por exemplo, os lombardos (mas não apenas eles) conheceram dos povos das estepes com quem tiveram contato durante sua estadia nas vastas planícies da Panônia (que corresponde aproximadamente à atual Hungria).
Os condimentos mais utilizados, o lardo e a banha de porco, garantiam um adicional calórico adequado para a vida e o trabalho nos campos, assim como as frutas secas. Para dar sabor (e conservar) os alimentos, recorria-se aos temperos, ao passo que para adoçar se usava o mel, porque o açúcar de cana era difícil de fabricar e muito caro.
As bebidas dos deuses
Bebia-se sobretudo cerveja que, diferentemente da nossa, não era gaseificada e tinha uma cor mais escura e consistência muito mais encorpada, enquanto, difuso sobretudo entre os guerreiros, era o hidromel, bebida alcoólica obtida da fermentação do mel e de forte valor ritual, bebida durante cerimônias e banquetes nos característicos “chifres de beber”.
Nas sagas nórdicas Odin, o chefe da divindade de Asgard, é considerado o deus portador do hidromel aos homens. Mas a Edda em prosa de Snorri Sturluson (1178-1241) conta que antes ainda foram os dois anões Fialarr e Galarr que o produziram:
Ele andou longamente pelo mundo para levar aos homens sabedoria, e foi hospedado por dois anões, Fialarr e Galarr, e estes o convidaram a um colóquio privado e o mataram; fizeram correr seu sangue em dois recipientes e em uma caldeira, chamada Odrerir e os recipientes se chamam Son e Bodn. Misturaram o sangue com mel e daí veio aquele hidromel que torna quem dele bebe poeta e sábio. Os anões contaram aos Asi que Kvasir estava sufocado em sua própria sabedoria, porque não havia ninguém tão sábio a ponto de poder alcançar seu saber.
Depois Odin, fugindo em forma de águia, “deixou cair para trás um pouco de met (hidromel) e ninguém se apercebeu disso, e houve quem o quis. Nós a chamamos “a parte do poetastro”. E Odin deu o hidromel aos Asi e àqueles homens que sabem poetar. Por isso, nós chamamos a poesia “pega” ou “descoberta” de Odin e “surgida” dele e seu “dom” e, ainda, “bebida dos Asi”. O hidromel, portanto, bebida divina por excelência, tornou-se onipresente nas mesas e nos banquetes –as valquírias o servem aos guerreiros no Valhalla (o além nórdico dos mortos em batalha – e era consumido ritualmente em salas preparadas (höll, a propósito). Tal costume é testemunhado tanto pela literatura – o palácio de Hrothgar no Beowulf (poema épico saxão do séc. VIII) – quanto pelos achados arqueológicos, como a longhouse (casa longa) do século IX, descoberta em Lejre, na Dinamarca, que chega a ter 28,5m de comprimento.
As bebidas eram servidas em taças ou copos de madeira; o vidro – para cálices e chifres finamente decorados – era apanágio apenas das classes mais destacadas. Havia também um uso que hoje definiríamos macabro, mas que na realidade seria interpretado sob um ponto de vista totalmente diferente. É conhecidíssima a libação imposta pelo rei lombardo Alboíno à mulher Rosmunda, obrigada a beber usando como taça o crânio do pai de Cunimondo, que ele mesmo havia assassinado. O caso aconteceu durante um banquete em Verona e teve consequências dramáticas: a mulher conjurou com o irmão Helmiques e o potente guerreiro Peredeo, fazendo com que o marido fosse assassinado em 26 de junho de 572. Mas o brinde no crânio, na verdade, não parece que tivesse valor de escárnio: conservar o crânio do inimigo morto e usá-lo como taça para beber era, de fato, um tributo à sua força e uma tentativa de apropriar-se dela. O ato de Alboíno, portanto, não foi uma afronta, mas um reconhecimento do valor de Cunimondo e, quem sabe, até mesmo uma oferta religiosa e de paz, segundo um costume que havia aprendido na Panônia com os ávaros, ferocíssima população das estepes.
A bebida “ordinária”, para os germanos, que até conheciam e apreciavam o vinho por meio dos contatos com o mundo mediterrâneo, era, ademais, como já se disse, a cerveja. Não se pense, porém, que tenha sido “inventada” por eles. Na realidade, os primeiros testemunhos de sua utilização nos levam ao Antigo Egito e até os sumérios. A cerveja, além disso, também era bem conhecida por nós [italianos] antes da chegada dos germanos. O testemunho mais antigo de produção transalpina remonta ao século IX a.C.: trata-se de uma ânfora encontrada perto de Kulmbach no Nordeste da Baviera. Mas já os celtas golasequianos (séc. IX-IV a.C.), instalados entre o Ticino e as margens do Lago Maior e do Lago de Como, eram notáveis produtores de cerveja. Em uma necrópole descoberta em 1995 em Pombia (Novara), uma tumba milagrosamente intacta trouxe à luz, além dos utensílios clássicos, um jarro globular, muito comum na época, cujo fundo conservava um material depositado de cor avermelhada, parecido com uma areia finíssima. Tratava-se dos restos liofilizados de uma bebida fermentada baseada em cereais, quase certamente cerveja vermelha, obtida da cevada e de outros cereais e – uma absoluta novidade – inflorescência de lúpulo. As peças são datáveis de meados do século VI a.C. Do ponto de vista meramente histórico, contudo, o uso dessa planta como ingrediente na produção é testemunhado pela primeira vez em 822 (aparece nos escritos de um abade) e, sobretudo, pela doutíssima abadessa Hildegard von Bingen, que em 1067 a cita expressamente escrevendo: “Se alguém quiser fazer cerveja com aveia, prepare-a com o lúpulo”.
Se o processo fermentativo não obtivesse sucesso (às vezes era iniciado com uma simples cuspida: a saliva contém enzimas...), recorria-se à adição de mel ou fruta, ricos em fermentos naturais: o sabor da cerveja antiga, portanto, era muito diferente daquele com que estamos acostumados hoje, mesmo porque era servida em temperatura ambiente. Não é de admirar que os romanos, grandes amantes (como os gregos) do vinho, a considerassem bebida dos bárbaros. Mas devemos igualmente dizer que o vinho que eles bebiam também não tinha absolutamente nada a ver com o nosso: era diluído com água ou mel para abaixar a gradação alcoólica e aromatizado com temperos.
O mundo mediterrâneo, durante muito tempo, manteve-se cético e, no fim das contas, impermeável ao uso da cerveja. Ainda em 1256 o médico Aldobrandino de Sena, que viveu muito tempo na França e, portanto, a conhecia bem, assim falava a respeito dela:
Não importa com o que seja produzida – aveia, cevada ou com trigo –, dá dor de cabeça e de estômago, cria dificuldades na respiração e estraga os dentes; enche o estômago com vapores prejudiciais, e se alguém a bebe junto com o vinho fica rapidamente embriagado; mas tem a propriedade de facilitar a micção e deixa a pele branca e macia.
A cultura do vinho se afirmou não sem resistências. Um episódio do século VI é eloquente: Quildeberto, rei dos francos, ordenou a um monge que saísse de um terreno que havia ocupado sem ter o direito, e ele, em resposta, ofereceu-lhe, como gesto de paz, um gole de vinho que tinha produzido das uvas que havia plantado. O rei recusou aquele “suco vulgar” e foi embora. Pouco depois, o cavalo empacou como que por encanto e o rei entendeu que havia cometido uma injúria. Portanto, retornou e bebeu o vinho. Para além da metáfora edificante, é evidente que nos séculos da Alta Idade Média os costumes dos germanos se chocassem fortemente contra os dos povos “latinos”, e o “conflito” se manteria por muito tempo. A vida do irlandês Columbano, escrita por seu discípulo Jonas de Bobbio após a morte do santo, o representa em alguns episódios “temperados” com cerveja. Enquanto se encontrava entre os germanos pagãos na Suábia, tentando (a muito custo) convertê-los, ficou sabendo que pretendiam fazer um sacrifício de acordo com seus costumes. Diante deles estava preparado um grande caldeirão cheio de cervogia, ou seja, de cerveja. Columbano então soprou dentro do caldeirão e, como por encanto, o recipiente se despedaçou derramando, junto com o líquido, também o demônio que, evidentemente, pretendia apoderar-se das almas dos participantes do rito exatamente por intermédio da bebida. Mas a relação de Columbano com a cerveja nem sempre foi asssim conflitiva. Aliás, em Luxeuil e em geral em todos os cenóbios da Irlanda, faltando completamente o vinho, era ela o que se bebia. De fato, um episódio lembra que solicitaram a Columbano, já que ela estava em falta, que providenciasse a sua “multiplicação”, juntamente com a do pão, referindo-se ao milagre evangélico do pão e dos peixes.
O triunfo (?) de Baco
Com a progressiva difusão do cristianismo, também no norte da Europa e nas zonas de influência germânica, alguns hábitos mudaram. Impulsionados por motivos de caráter litúrgico e simbólico-religioso, difundiram-se mais o vinho (e, consequentemente, a vinicultura se propagou para as áreas setentrionais até onde as condições climáticas o permitiam) e o pão, pouco valorizado em economias baseadas na caça, na coleta e na pecuária e pouco sobre a cultura de cereais. Nas mesas, foi aparecendo cada vez mais, portanto, também o pão, preferencialmente preto, de centeio, ao passo que ao branco tinham acesso apenas os mais abastados. E, simultaneamente, difundiu-se também um outro modelo cultural relacionado ao alimento: o dos monges e dos ascetas, que reduziam (ou mesmo recusavam) a nutrição e particularmente a carne como meio de mortificar o corpo e alcançar a propagada recompensa celestial.
Isso, naturalmente, em teoria. Não faltam exemplos de prelados e outros eclesiásticos, sobretudo pertencentes à aristocracia, que mantinham o comportamento típico de suas castas. Mas, em geral, aos eclesiásicos se recomendava o jejum ou uma alimentação baseada em vegetais – melhor ainda se crus – porque equivalia a renunciar aos prazeres do mundo. Acreditava-se, particularmente, que comer (e beber) desmedidamente favorecesse o calor do corpo e, portanto, o impulso sexual. Algumas passagens esclarecem melhor o conceito, presente em toda a Idade Média: dos Padres da Igreja (“São nocivos todos os alimentos que aumentam a excitação [do corpo] e faz mais bem à saúde ingerir sempre alimentos frios”: São Jerônimo, 347-420) até os escolásticos (“Os genitais são incitados ao acasalamento com maior ardor quanto mais o estômago é enchido com abundância de alimentos e muitos goles de bebidas”: São Pedro Damião, 1007-1072) passando inclusive pelos diktats do papa (“Da garganta nasce a luxúria”): Gregório Magno (540 c.-604). Lógico, então, que no começo as regras monásticas insistissem na continência para tornar mais fácil aos frades... a abstinência.
Como o consumo de carne evocava a tríade “maldita” corpo-prazer-pecado, a proibição era, geralmente, peremptória. De que outro modo interpretar a maior parte das regras monásticas mais rigorosas, como a do já citado São Columbano? Em outros casos (a Regula Magistri, cap. LII, séc. V-VI), ela era consentida, muito embora “abstinere vero melius”, isto é, abster-se dela seria melhor.
Mas nem sempre os eclesiásticos eram bem-sucedidos em suas tentativas. Certo, temos testemunhos de sobrevivência dessa forma (testemunhos literários, é verdade, mas, mesmo assim, significativos) de ascetismos extremos como o do eremita Paulo, que se encontra na Navigazione di san Brandano: o santo – se recordará – viveu em uma ilha deserta, entre as cavernas, por noventa anos, como ele mesmo especifica, “trinta nutrindo-me de peixes e sessenta da água da fonte”, por um período de ao menos cento e cinquenta anos. O bispo de Langres se mortificava comendo pão de centeio, considerado o pior de todos e, para não exibir suas virtudes, o fazia escondido. Sabemos pela Vida dos Padres do Deserto que sobreviviam alimentando-se de gafanhotos e daquilo que crescia espontaneamente, ou seja, quase nada, além de ervas e raízes amargas.
Algumas dessas não eram comestíveis e provocavam crises de vômito por vezes letais (e, acrescentamos, elas também podem ser uma explicação mais racional para as visões de luta com o demônio que Santo Antão teve diversas vezes). Quando o santo estava já no extremo porque, por medo de envenenar-se, não encostava mais em alimento, costumava aparecer-lhe um deus ex machina: um animal – em geral uma cabra – aparecia no local permitindo-lhe alimentar-se sem riscos. Uma dieta desse gênero poderia parecer paupérrima. Mas muitos anacoretas, ao que parece, viviam mais de cem anos: em primeiro lugar, o já citado Antão, que morreu aos cento e seis anos. Decerto, o aspecto desses últimos devia incutir veneração (talvez também temor) porque eram magros ao limite da subsistência.
O alimento e a penitência
Mas era assim em toda parte? Absolutamente não. A partir do ano mil, o problema é que muitas vezes quem se tornava monge pertencia à aristocracia e sua mentalidade era a mesma dos demais ricos da época, que identificavam o consumo de carne com um conceito de força e poder. Renunciar a isso significava, assim, renunciar duplamente ao mundo: tanto o “físico” quanto o “cultural” ao qual sempre se tinha pertencido.
E se alguém, monge, mas também leigo, em certos momentos do ano se desgarrava? Quem determinava a punição adequada eram os Penitenciais, que continham verdadeiros “tarifários” para emendar os pecados mais diversos. Em um dos mais importantes, compilado entre 1008 e 1012 por Burcardo, bispo de Worms e insigne jurista, lemos a propósito da punição para quem transgredia o jejum prescrito:
Quebraste o jejum quaresmal antes das vésperas, sem que estivesses enfermo? Três dias de penitência a pão e água para cada dia que deixaste de jejuar. [...] Desprezaste os dias do jejum estabelecidos pela Igreja, não os observando como fazem os outros cristãos? Vinte dias de penitência a pão e água. Quebraste o jejum das quatro têmporas ou não o observaste como os outros cristãos? Quarenta dias a pão e água. Infringiste o jejum das litanias maiores, das rogações, das vigílias dos santos? Vinte dias de penitência a pão e água.
E assim por diante, de casuística em casuística. E no caso de quem se deixava levar pela gula e pela embriaguez? As punições eram severas:
Tiveste, talvez, o hábito de beber ou comer além do devido? Se o fizeste, dez dias de penitência a pão e água [...]. Ficaste, por acaso, bêbado a ponto de vomitar? Quinze dias de penitência a pão de água. Ficaste bêbado em uma aposta, ou para te vangloriares de seres capaz de beber mais que qualquer um, arrastando com sua presunção estúpida outros na embriaguez? Se o fizeste, trinta dias de penitência a pão e água.
Se, além disso, por conta da bebedeira se vomitava o Corpo e o Sangue de Cristo, a penitência subia a quarenta dias. Tamanha era a “obsessão com o alimento, a importância dada ao comer e, em contrapartida, o sofrimento (e os méritos) das mortificações alimentares”.
A abstinência de alguns pratos era, ademais, estabelecida para todos também em vários períodos do ano, como, por exemplo, a Quaresma, mesmo que, em caso de carestia, alguma tolerância a mais fosse sempre admitida: os Annales Laureshamenses narram, por exemplo, que em 793, devido à “fames validissima” muitos não puderam abster-se do consumo de carne nem mesmo durante o período do ano tradicionalmente dedicado à continência e ao jejum. A carne, além do mais, era concedida a quem tinha problemas de saúde e quem, por causa da debilidade, não poderia suportar privações alimentares.
A glutonaria dos conventos
Voltando agora aos monges: Se não a carne (estamos certos disso? Veremos logo mais), o que comiam então? Para sabê-lo, leiamos antes de tudo a Regra de São Bento que, nos capítulos XXXIX e XL, disciplina respectivamente a quantidade de alimento e as bebidas:
Cremos que são suficientes para a refeição cotidiana, quer seja esta à sexta ou à hora nona, em todas as mesas dois pratos de cozidos, por causa das fraquezas de muitos, a fim de que aquele que não puder, por acaso, comer de um prato, coma do outro. Portanto, dois pratos de cozidos bastem a todos os irmãos; e se houver frutas ou legumes frescos, sejam acrescentados em terceiro lugar.
As refeições dos monges aconteciam em dois horários precisos, o almoço na hora sexta (12h) e a janta à hora nona (às 15h). Mas ambas deviam se dar em perfeito silêncio, na claridade, por isso no inverno sofriam alguma variação de horário. Em que consistiam os “pratos de cozidos”? No almoço, um era de legumes (geralmente favas ou ervilhas), e outro de verduras (couve, saladas, alho-poró, salsa etc.), a que se acrescentava, aos domingos, terças, quintas, sábados, cinco ovos e, às vezes, queijo cozido. Às segundas e sextas-feiras, no lugar desse “prato”, se servia queijo cru, mole ou duro, além de quatro ovos. Nos domingos e nas quintas-feiras, se disponível, havia o peixe. A carne de quadrúpedes não era jamais permitida, exceto aos enfermos muito debilitados. O jantar era certamente mais leve: fruta e cereais, uma espécie de “lanche reforçado”.
Uma receita clássica preparada em Cluny, um dos maiores e mais importantes mosteiros de todo o Ocidente, por volta do ano mil, revela-nos o particular ritual a que eram submetidos os alimentos antes da preparação. Primeiro de tudo, os que trabalhavam na cozinha lavavam as mãos e rezavam por três vezes (o número, obviamente, é simbólico). Depois, tomavam as favas, lavavam-nas três vezes, e em seguida as punham para ferver. Aquelas que ficassem boiando ou que grudassem no fundo eram eliminadas. Assim que os grãos começavam a se abrir, as favas eram retiradas e passadas três vezes na água fria. Por fim, terminavam a fervura em outro recipiente junto com bastante toucinho. As favas, finalmente, eram servidas sem o toucinho – que era usado para dar sabor a outros pratos –, salgadas e temperadas com outras gorduras, dando vida a um prato certamente muito energético, adequado às necessidades nutricionais da época (considerando-se também a ausência de aquecimento). Os ovos eram cozidos ou fritos e servidos com pimenta e eram, como se viu, muitos. Para acompanhar tudo, uma libra de pão, cuja quantidade efetiva se discutiu por muito tempo: parece que, de qualquer modo, não se tratava de uma unidade de medida romana, equivalente a cerca de 350 gramas, mas a quase um quilo, porque a esse correspondia o peso em bronze que, segundo uma antiga tradição, era conservado em Montecassino desde os tempos do próprio São Bento.
Uma cozinha monótona assim, com o tempo, inevitavelmente submeteria a dura prova também o espírito. Por isso, não é uma hipótese tão equivocada pensar que exatamente nos conventos e justamente para aliviar essa monotonia, os frades encarregados da cozinha se tenham empenhado em experimentar preparados “particulares” – sempre nos limites do permitido, obviamente! – criando receitas que depois estariam na base da gastronomia europeia. Em 1066, na Abadia de Westminster, por exemplo, o prior conseguiu convencer seus confrades a abrir mão da carne graças à habilidade de seus cozinheiros que serviram apetitosíssimos patês à base de... peixe. Evidentemente, mesmo entre as frias muralhas dos conventos, sendo o caso, a necessidade aguçava a criatividade.
Quanto às bebidas, o vinho era permitido, mas em quantidade mais do que moderada: embora a regra insistisse no fato de que “o vinho não é, absolutamente, para os monges”, admitia-se que, “nos dias que correm, não é possível convencê-los”. Concedida, portanto, uma emina por dia, ou seja, cerca de meio litro, não mais, servida em um recipiente que continha o dobro (portanto, para satisfazer a sede de dois monges). Em Cluny manteve-se o costume de beber “em duplas” até o século XII, quando foi introduzido o copo “individual”. Obviamente não se devia exagerar nem na comida e nem na bebida, porque “nada é mais contrário ao cristão do que a gula, como diz Nosso Senhor: ‘Ficai atentos para não sobrecarregar o vosso coração’”. Devia ser absolutamente evitada a embriaguez, antessala do pecado: de fato, “o vinho faz com que se desviem também os sábios”. Pecado, porém, como nos lembram os conhecidos versos dos Carmina Burana extraídos do trecho In taberna – citamos a quadra inteira – que os membros do clero frequentassem as tabernas, e como!: “Bibit hera, bibit herus, / bibit miles, bibit clerus, / bibet ille, bibit illa, / bibit servus cum ancilla...” (Bebe aquele e bebe aquela, / bebe o soldado, bebe o padre, / bebe ele, bebe ela, / bebe o servo com a ancila”), e sendo além do mais frequentada por ambos os sexos, era facílimo cair também em outros tipos de tentação... E como não lembrar, sempre com os Carmina Burana, o famoso abbas Cucaniensis (o abade do País de Cocanha) que realiza os seus conselhos “cum bibulis”, isto é, com beberrões, varando a noite até a aurora? Canções jocosas, decerto, devido ao clima goliardesco estudantil que floresceu em torno do ambiente universitário dos “clérigos viandantes” entre os séculos XI e XIII. Mas que certamente satirizavam qualquer coisa que pudesse fornecer material para suas brincadeiras.
Que os clérigos e prelados fossem tentados pela boa mesa, ademais, aparece um pouco em toda a novelística tardo-medieval, como também na anedótica. Basta lembrar o Papa Martinho IV, no século Simão de Brion (1210-1285), inclusive colocado por Dante no sexto círculo do purgatório, entre as almas dos gulosos, por causa de sua famosa paixão pelas enguias alla vernaccia[45].
Antes foi citada a proibição relacionada à “carne de quadrúpede”: ou seja, a de bovinos, suínos e equinos, em máxima parte. O que, evidentemente, deixava bastante espaço à fantasia quanto ao que dizia respeito, por exemplo, à carne de aves e, sobretudo (e aqui a bicharada medieval atendia plenamente), de outros animais como o castor, que era admitido nas mesas por ser semelhante ao peixe. Como assim? Porque sua cauda... ficava sempre na água.
O importante era que as carnes consumidas não fossem “vermelhas”, cor que evocava a violência, mas também o tabu – que provinha do mundo hebraico, mas que circulava também no Ocidente cristão – do sangue. “As normas do século XIII proíbem rigorosamente aos cristãos de adquirir em açougues judeus a carne não consumida pelos próprios hebreus, e que os cristãos consideram a um tempo como carne contaminada de sacrilégio e sanguinolenta, e resultado de descarte”, escreve Jacques Le Goff. Eram preferíveis, portanto, as assim chamadas “carnes brancas”: de cabra, de ovelha, de cordeiro, de frango (não o peru: esse chegou, obviamente, após a descoberta da América).
Comer pouco ou comer muito?
Mas era verdade que os monges comiam “pouco”? Não é o que parece, ao menos se nos atemos a cálculos recentes. Nos mosteiros mais ricos as rações cotidianas raramente ficavam abaixo das 5-6 mil calorias. Em Aachen (estamos no ano 816) os canônicos comiam, de acordo com o estabelecido, tanto a mais do que era considerado “normal” que o sínodo lateranense de maio de 1059 definiu a quantidade “mais adequada aos ciclopes do que à temperança cristã”.
Os períodos de jejum, ou seja, quando se comia uma só refeição por dia, eram muitos: não apenas os clássicos quarenta dias da Quaresma, mas também os cinco meses que intercorriam dos idos de setembro (13 de setembro) à Quaresma em si, e as quartas e sextas-feiras entre Pentecostes e os idos de setembro. No fim, fazendo as contas, os monges tinham direito a duas refeições diárias apenas da Páscoa até Pentecostes e durante as festividades de Natal, no oitavo dia depois do Natal, na Epifania, no domingo de Páscoa, na Ascensão e na Assunção. As refeições eram coletivas e – se realmente é preciso dizer – feitas em religioso silêncio. Somente tinha permissão para falar o monge que, enquanto os outros comiam, lia em voz alta trechos da Escritura. Havendo necessidade de alguma coisa, pedia-se com gestos.
As regras, portanto, ordenavam a moderação, mas não é fácil estabelecer o quanto elas eram aplicadas na realidade e, desse modo, quanto se comia, com efeito, nos conventos. As proibições relacionadas à carne eram “contornadas” substituindo-a por peixe e aves. Mas conhecemos bem as contínuas tentações a que os monges eram submetidos. Um episódio ocorrido no já citado Pedro Damião, bispo e cardeal, além de constar entre os teólogos mais importantes do século XI, é bastante emblemático. Como faltava peixe, seus confrades o aconselharam a comer carne. Ele tentou resistir durante vários dias, até que chegou ao ermo uma carga de peixes enviada pelo conde de Ímola e da cidade de Faenza. Então Pedro contou aos seus a anedota de um monge convidado para jantar com um conde, e que, não estando na mesa ainda o peixe, atirou-se sobre um suculento pedaço de porco e o comeu, convencendo-se de que não era carne. Naturalmente, logo depois trouxeram à mesa um grande lúcio. Ao monge, que o comia com os olhos, o conde disse em tom de brincadeira: “Tu que comeste carne como um leigo, por que agora olhas o peixe como um monge?”
A sacralidade do alimento
A propósito da abordagem tipicamente “barbárica” da carne, já se falou do vínculo existente entre a abundância de alimento de origem animal e a força física do guerreiro (geralmente, urso ou lobo). Não se pode, porém, ignorar ainda outro valor desse tipo de alimento: o valor sagrado. Se o alimento (e alguns deles eram especiais, como o pão e o vinho) assumia um papel particular entre os cristãos, por recordar a Última Ceia e o sacrifício de Jesus na cruz, entre os germanos e, antes ainda, os celtas e os pagãos em geral, perpetuava-se bem outro tipo de holocausto: o dos animais às próprias divindades. A carne obtida dos animais imolados era consumida em um banquete ritual que era parte essencial do culto.
Trata-se de um aspecto pouco conhecido que, quando aparece nas fontes da época, é sempre com certo embaraço, visto que se tratava quase sempre de fontes ou crônicas produzidas por eclesiásticos e, portanto, fortemente estigmatizadas. É eloquente, por exemplo, o episódio pertencente à cultura lombarda citado nos Diálogos do Papa Gregório Magno: os lombardos teriam obrigado uns quarenta camponeses (“rústicos”), evidentemente itálicos, ou seja, súditos conquistados) a comer carnes que tinham imolado a deuses pagãos. Estes últimos, evidentemente cristãos, não quiseram fazê-lo e pagaram com a vida sua recusa.
Igualmente interessante, mas também bastante escabrosa, contudo, é a “refeição ritual” que o cronista Giraldo Cambrense descreve escandalizado em sua Topographia Hibernica, uma descrição da Irlanda feita depois de uma viagem. O relato tem o filtro do olhar de um douto eclesiástico formado na refinada corte parisiense do século XII e é, portanto, carregado de juízos negativos e estereótipos sobre uma Irlanda bárbara, selvagem e repleta de pecadores que viviam em condições animalescas: algo que sabemos que não condiz com a realidade. Se, de fato, a pregação dos monges, desde o século V, havia levado o Evangelho à ilha e reorganizara em torno de mosteiros e abadias – que se impunham como centros culturais e de poder – uma sociedade de outra forma dispersa amplamente pelo território vasto e difícil de controlar, certo é que sobrevivessem ainda (e sobreviveriam por muitos séculos mais) cultos de clara matriz pagã.
Leiamos a passagem:
Existem comportamentos sobre os quais, se o desenrolar da tratativa não o exigisse, o pudor sugeriria calar. E, no entanto, o rigor histórico não pode poupar nem a verdade nem a verecúndia. No Cenél Conaill, no extremo norte de Ulster, há uma população que conserva o costume de instituir um rei com um ritual particularmente barbárico e abominável. Toda a população da região se reúne em um único lugar e ao centro da assembleia é conduzida uma jumenta branca. Então aquele que deve ser elevado ao posto não de príncipe, mas de um animal, não de rei, mas de um fora da lei, tem diante de todos (com ela) uma relação bestial, assim mostrando ser ele mesmo uma besta. Logo depois, a jumenta é morta, cortada em pedaços e colocada para cozinhar na água e com aquela mesma água se prepara para ele um banho. O homem imerge na água e, circundado por sua gente, ele come juntamente com os outros a carne da jumenta que é oferecida a todos. Não com uma taça, nem com a mão, mas apenas com a boca, bebe sorvendo o caldo em que se lavou. Quando tudo isso termina, a sua autoridade de rei e soberano, ritualmente, mas não retamente, é consagrada.
Idade Média “condimentada”
Perto do ano mil, o novo crescimento demográfico e a consequente fome por terras cultiváveis reduziu notavelmente a superfície das áreas incultas, cujos direitos de utilização, comuns antes, começaram a partir do século XI a ser progressivamente reservados aos grandes proprietários e aos senhores. A consequência foi que as camadas mais humildes (sobretudo camponeses), praticamente impossibilitados de praticar a criação de gado, teve de se contentar com uma dieta à base de cereais e hortifrutigranjeiros (em casos de carestia, era uma catástrofe), enquanto os segundos, praticando a caça, continuaram alimentando-se de carne, que passou, assim, de nutrição potencialmente acessível a todos a símbolo de status. Foi, portanto, nos séculos centrais da Idade Média que pobres e ricos passaram efetivamente a distinguir-se como tais também à mesa. E a dicotomia tornou-se sempre mais evidente na medida em que o desenvolvimento das cidades engolia terreno do interior. No panorama que caracterizou os séculos XII e XIII, a economia europeia veria, de um lado, a cidade (e os ricos) que comiam bastante e, de outro, os camponeses que se viravam com o que sobrava.
Um indicador importante é o que se relaciona com o uso das especiarias. Estavam muito presentes nas mesas dos mais abastados, mas é totalmente infundada a opinião, ainda muito difundida, de que serviam para disfarçar o gosto das carnes em vias de estragar ou, ao contrário, para ajudar a conservá-las. Os únicos (ou quase) que podiam permitir-se as caríssimas especiarias eram de fato os ricos, e os ricos consumiam carnes “do dia”, caçada ou comprada nos mercados. Em vez disso, usar condimentos em abundância equivalia a ostentar as próprias riquezas, tanto mais que, além de serem caros (chegando a custar quarenta vezes mais do que nos mercados de origem!), se considerava que proviessem de distantes “paraísos”, sem melhor definição. Especiarias eram usadas como meio de pagamento, para temperar os alimentos (segundo os manuais de medicina da época, melhoravam a digestão porque, liberando calor no estômago, favoreciam um “segundo cozimento” dos alimentos), eram usadas para curar doenças e também consideradas poderosos afrodisíacos (mas sobre isso falaremos no capítulo dedicado à farmacopeia). A raridade das especiarias ficou comprometida quando foram descobertas novas rotas de navegação e, sobretudo, com a descoberta da América, mas essa é uma outra história.
Mas quais eram as especiarias mais famosas? Além do sal, que servia para conservar os alimentos e era usado inclusive como moeda de troca, sem dúvida, a canela. Caríssima, era um “ingrediente” para dons intercambiados entre soberanos e, embora já fossem conhecidas suas virtudes curativas contra a tosse e a dor de garganta, era utilizada sobretudo nas cozinhas de corte para preparar pratos exclusivos, doces ou salgados, como a salsa camelina inventada pelo grande cozinheiro cortês Guilhaume Tirel (1310-1395), chamado Taillevent (“Cortavento”) ou como o “verte souce” (molho verde), mencionado no receituário do Rei Ricardo II da Inglaterra (séc. XIV).
Muito popular também era a amêndoa. Era componente fundamental do chamado “manjar branco”, que jamais faltava sobre as boas mesas como símbolo de refinamento: tratava-se de uma sopa de arroz cozido com leite de amêndoas, açúcar e especiarias. Apreciada já pelos romanos como remédio para a embriaguez, a amêndoa era estimada por Carlos Magno como alimento nutritivo, completo e estimulante. E, com efeito, tinha razão: no âmbito nutricional, contém o dobro de proteínas do que a carne de boi. Por isso, era abundantemente utilizada nos mosteiros, onde a carne não era admitida, para extrair um leite fortemente energético. Os monges se interessavam também pelo aspecto meramente simbólico do fruto: se para os “profanos” a forma evocava a do órgão feminino pronto a abrir-se no ato de gerar a vida – e, portanto, era usado como ingrediente (hoje ainda!) em pequenos confeitos presenteados nas núpcias e batismos –, para os homens da Igreja ela representava a vida, e, portanto, Cristo. De fato, na arquitetura e nos afrescos, mas também nas miniaturas que os mesmos ilustravam nos scriptoria, a amêndoa era chamada vesica piscis (“vesícula de peixe”) e era a forma ogival obtida com dois círculos com o mesmo raio que se entrecortam de tal modo que o centro de cada círculo se encontra sobre a circunferência do outro. O símbolo da intersecção dos dois mundos, o material e o espiritual, com Jesus de mediador entre eles: nada de pecaminoso, portanto, muito ao contrário. Mas os pobres monges não sabiam (já os árabes, ao contrário, sim!) que a amêndoa enquanto fruto tinha também... poderes afrodisíacos ocultos.
Mais adiante se verá como os condimentos fizeram parte da produção de estimulantes e poções de amor, no capítulo sobre a farmacopeia. Aqui basta dizer que no grupo dos afrodisíacos “populares” aparecia também uma espécie bastante comum como a mostarda, bem conhecida – e documentada – desde os tempos de Roma. Os cravos, por sua vez, eram sinônimos de riqueza. Ignorados no mundo clássico, difundiram-se no Ocidente a partir do século IV e eram tão caros que um punhado deles valia meio boi ou um carneiro. Não por acaso, Dante estigmatiza, no canto XXIX do Inferno (v. 127-129), o comportamento esbanjador de um rico sienense do século XIII, Niccolò de’ Salimbeni, que adquiriu quantidades colossais de cravo para aromatizar as carnes de seus lautos banquetes:
Salvo Nicoló, aquele que inventado
Do cravo tinha a rica especiaria,
O seu uso deixando enraizado!
Tanto que um comentador dantesco, Benvenuto de Ímola, afirma que o jovem mandou assar a carne, não em cima do fogo de madeira, mas sobre uma brasa de cravos, mandando inutilmente pelos ares uma cifra astronômica: de fato, “ista fuit expensa maxima vanissima” [esta foi despesa totalmente vã].
A pimenta, em todo caso, era sempre soberana: havia uma particularmente – chamada, a propósito, “pimenta dos monges” – que servia para aplacar os ardores que atormentavam os clérigos nas celas dos conventos. Nas cortes, por outro lado, se abusava das especiarias para ostentar riqueza e, claro, o estômago dos comensais tinha de ser realmente forte para conseguir digerir – só para citar um exemplo – uma sopa temperada com vinte e seis gramas de cravo, três nozes-moscadas, pimenta, gengibre, canela e açafrão”.
As boas maneiras à mesa
A educação à mesa permaneceu, ao menos até o século XIII, quase como um opcional. Foi até lembrada a admiração que um soberano como Carlos Magno sentiu diante de um desconhecido forasteiro que se lançava impetuosamente sobre a comida quase a dilacerá-la, considerando isso muito mais uma virtude do que sinal de falta de respeito pelos comensais. Em geral, comia-se com as mãos, no máximo contando com uma faca e com o pão. Por isso, a comida era servida já dividida em porções. Entre um prato e outro, porém, se lavavam as mãos em “lavandas” dispostas para esse fim e que, nas cortes, eram enchidas com água perfumada com essências ou pétalas de rosa.
O uso do garfo difundiu-se na Europa apenas na Modernidade, ou seja, no início do século XIV, e apenas na Itália. Não quer dizer que não existisse antes: encontramo-lo, de fato, representado em alguns manuscritos do século XI entre os quais o De Universo de Rábano Mauro, e em uma miniatura do Sacramentário de Warmondo, representando as bodas de Caná. Mas era considerado um utensílio de cozinha e não um modo de pegar comida para levá-la à boca. O costume mais comum era o de comer com as mãos porque esse era considerado um modo – em uma época, aliás, bastante “física” como a Idade Média – de apreciar melhor o alimento. Nem por isso se atacava o prato com descontrolada voracidade: devia-se pegar o alimento entre o polegar, o indicador e o médio, sob pena de ser desprezado ao nível dos animais.
Mas não era assim em toda parte. A história a seguir é bem esclarecedora. Quando – estamos no fim do século XI – a princesa bizantina Teodora Anna, filha do Imperador Miguel VII Ducas, futura esposa do doge de Veneza Domenico Selvo, chegou à Sereníssima [Veneza] para conhecer seu esposo, insistiu não apenas em lavar-se com água de orvalho aromatizada com flores, mas que seus alimentos fossem cortados por seus servos eunucos e de usar um garfo de ouro para comer. Os comensais ficaram desconcertados e Pedro Damião – que, além do mais, pregava abertamente a falta de higiene como sinal de humildade e virtude do bom cristão! – estigmatizou de modo violento o seu comportamento falando de soberba, e quando a pobrezinha morreu, ainda em plena juventude, por causa de uma forma terrível de gangrena, o bispo de Óstia escreveu satisfeito que seu corpo, “apesar de sua excessiva delicadeza, se decompôs completamente”. Ou seja, como todos os outros.
O garfo, de qualquer modo, se difundiu primeiramente pelas mesas dos mais abastados, e em seguida também entre as demais camadas sociais e aos poucos e inexoravelmente na medida em que eram introduzidas novas receitas que requeriam uma ajuda concreta para serem apreciadas. Por exemplo, a massa longa. Frustradas as tentativas de enrolá-la em torno a uma vareta de madeira, foi necessário render-se ao garfo – “instrumento do diabo” para os moralistas mais intransigentes – tanto que, por exemplo, no Trecentonovelle de Franco Sacchetti (1332-1400), aparece sobre a mesa de certo Giovanni que se encontrou dividindo a mesa com um grande glutão chamado Noddo d’Andrea: como o primeiro, usando um garfo, comia lentamente em relação ao segundo que, por sua vez, devorava o macarrão ainda pelando, também o comilão viu-se impelido a maneirar visto que, nesse ínterim, o comensal começava a dar a massa ao cachorro para evitar que Noddo comesse também a sua parte (Novella CXXXIV).
Fazer dieta ou viver em dieta
Quanto comsumiam, de fato, os nossos antepassados? Alguns pesquisadores ingleses tentaram estimar a necessidade calórica de um camponês médio ativo na Europa Medieval. Apenas para dormir e caminhar, em uma época em que se andava quase sempre a pé, um adulto consumia cerca de 1.800 calorias por dia. A isso somava-se o gasto energético decorrente do trabalho cotidiano, que podia chegar a doze horas. Eis uma hipótese de consumo de calorias de um adulto (a cifra é calculada sobre oito horas):
Mulher (30 anos, altura 165cm, peso 55kg)
Dormir: 392kcal
Caminhar (velocidade de 5km/h): 1.437kcal
Atividade agrícula: 1.960kcal
Ficar de pé ou desenvolver tabalhos de intensidade moderada: 1.742kcal
Transportar água: 1.960kcal
Cortar lenha: 5.552kcal (em seis horas)
Cuidar dos animais: 2.613kcal
Homem (30 anos, altura 165cm, 55kg)
Dormir: 392kcal
Caminhar (velocidade de 5km/h): 1.437kcal
Trabalhos de carpintaria: 3.266kcal
Preparar o feno: 3.484kcal
Tratar os animais: 2.613kcal
Cavar a terra: 3.701kcal
Cortar lenha: 7.403kcal
Daqui se deduz que um homem jovem e ativo tivesse uma necessidade calórica extremamente alta se comparável à nossa: de 5-6 mil calorias. A mulher, que além do trabalho nos campos e na granja (mais leve, mas não é óbvio) tinha também a tarefa de acudir (e amamentar) os filhos, mais ou menos a mesma. Não surpreende, portanto, que a dieta fosse muito rica de legumes, ovos e gordura. Eis três dietas básicas:
Dieta I
3 ovos, 750g de pulmentum (o prato costumeiro à base de legumes), 1,5l de cerveja, 240g de queijo: total: 3.515kcal.
Dieta 2
500g de feijão, cozido com banha de porco, 750g de pão, 1,5l de cerveja, 1kg de verdura. Total: 4.358kcal.
Dieta 3
240g de carne suína, 750g de pão, 1,5l de cerveja, 500g de verdura. Total: 4.081kcal.
São, obviamente, suposições. Mas na falta (digamos penúria) de documentação direta, o que temos para nos revelar os segredos alimentares são os esqueletos encontrados nas sepulturas e os restos de comidas ou de carnes encontrados nas habitações escavadas pelos arqueólogos. No sítio do Castrum (“castelo”) de Tremona, perto de Mendrisio (em Canton Ticino), por exemplo, a última campanha de escavações trouxe à luz mais de 7.000 fragmentos ósseos em bom estado de conservação graças ao terreno calcáreo. Os ossos pertencem em geral a mamíferos domésticos: bois, porcos, ovelhas e cabras; em menor medida, restos de equinos e de cães e um úmero de gato. Quanto a animais selvagens, há restos de cervo (ossos e chifres), corça e lebre, ao passo que são raros os roedores. Entre os voláteis tem-se galos, pombas, tordos, corvos e passarinhos, raros (apenas dez) os fragmentos de peixe (ciprinídeos). Muitos fragmentos apresentam marcas de esmagamento e a incisão presente em uma mandíbula de cachorro sugere até um “uso alimentar” desse animal.
Outro indício era o desgaste dos dentes. Vamos dar um exemplo. Na necrópole dos séculos X-XIII de São Lourenço de Aversa (Caserta), os restos dentários dos sepultados mostraram uma baixíssima ocorrência de cáries dentais, o que é um dado excepcional até em relação a outras populações contemporâneas dos Abruzos: isso sugere certa arcaicidade do regime alimentar. A dieta era, portanto, rude, pobre de acúcares simples e rica de fibras, composta de pedaços maiores e difíceis de mastigar, os quais produziam uma eficaz detersão dental (anticariosa), mas provocavam, ao mesmo tempo, um desgaste mais forte dos dentes. De fato, cerca de 23% das amostras dentárias apresenta sinal de desgaste grave sobretudo nos molares e pré-molares, o que demonstra que a população se alimentava de alimentos bastante abrasivos. Não esqueçamos, por exemplo, que as farinhas eram obtidas com auxílio de pedras e, muitas vezes, se não houvesse uma cuidadosa limpeza, ficavam misturados pedacinhos de grãos e outros elementos que, ao serem mastigados, com o tempo lesavam a dentição.
Entre carestias terríveis...
Mas assim como não eram os médicos que decidiam qual dieta seguir (basta lembrar o caso de Carlos Magno, que fazia como bem lhe parecia), às vezes o que fazia apertar o cinto eram as periódicas carestias que afligiam com a fome a Europa, geralmente após guerras e devastações. Mas não apenas. As páginas mais sugestivas e terríveis a esse propósito são as dedicadas pelo monge Rodolfo o Glabro (980-1047) no livro IV da sua Historiae à carestia que se abateu sobre parte da Europa em 1033. O sinal anunciador fora, parece-nos, no ano precedente, a morte de muitos “vexilíferos da nossa Santa Religião”: Papa Bento VIII, o rei dos francos Roberto II, o bispo de Chartres e seu amado Guilherme de Volpiano. O ano começou com um tempo tão inclemente que era impossível semear. Choveu por três anos. O flagelo havia partido do Oriente e em seguida espalhou-se por quase todo o continente até a distante Ânglia (a Inglaterra), atingindo com fúria sobretudo a Itália e as Gálias. A inflação estava nas alturas por causa da extrema escassez de alimentos. Quando não há mais animais para comer, as pessoas, levadas pelos golpes terríveis da fome, se arranjam com as carcaças ou com raízes imundas. Chegando ao mais indescritível dos horrores, o canibalismo: “Viajantes eram agredidos por pessoas mais robustas do que eles e seu corpo, cortado em pedaços, era cozido e devorado”. Não se hesita nem mesmo em recorrer ao infanticídio ou à necrofagia, tirando mortos das sepulturas e alimentando-se de suas carnes.
A periodização de Rodolfo mostra perfeitamente o clima de horror, de dor e de loucura irracional que parecia ter se apossado do gênero humano, reduzido a uma massa informe de seres chafurdando na lama. Os homens caíam como moscas, os cadáveres jaziam por toda parte atraindo lobos e outras feras, até que mãos piedosas decidissem dar-lhes sepultura, amontoando-os às dezenas em uma fossa comum nos cruzamentos ou às margens das estradas. Dessa atrocidade, Rodolfo, testemunha da mentalidade dos monges da época, consegue dar uma só explicação: a cólera divina. E fica desconcertado: nem mesmo nos flagelos os homens retornam, com o coração contrito e humilhado pelos pecados cometidos, para invocar a ajuda de Deus.
Todas as certezas haviam desmoronado, temia-se até mesmo “que a sucessão das estações e a ordem dos elementos, que sempre haviam regulado o correr dos séculos anteriores, tivesse entrado no caos perpétuo indicando assim o fim do gênero humano”.
O pesadelo durou três anos. Depois as chuvas cessaram, os campos tornaram-se novamente verdes e deram uma abundante colheita. Todos, lembrados dos recentes lutos, comportavam-se como bons cristãos. Mas o olhar de Rodolfo, sempre pessimista, porque era, no fundo, bom conhecedor do ânimo humano, mostra impiedoso que “os homens se esquecem logo dos benefícios dados por Deus e, atraídos como tinham sido nas origens pelo mal, como o cão pelo seu vômito e a porca banhada na lama onde chafurda, violaram diversas vezes os compromissos solenes assumidos diante de Deus”. Um novo castigo, de alguma forma e em algum momento, estava sempre para chegar.
...e comer até explodir
De banquetes pantagruélicos temos informações suficientes nas fontes. Tomemos um caso. A testemunha é Salimbene de Adam, religioso e cronista de Parma (1221-1288), a descrição diz respeito à visita que o Rei Luís IX fez ao convento dos frades menores de Sens: pão branquíssimo e cerejas como antepasto; depois, favas frescas cozidas ao leite, peixes e camarões, empadas de enguia; arroz ao leite de amêndoa com canela em pó; mais enguias, agora assadas e acompanhadas de um molho; e, por fim, um monte de tortas e frutas. Note-se que a refeição é considerada “magra”, portanto, não suntuosa. Imagine então os grandes banquetes...
Ouçamos agora Giovanni de Mussis falar do que acontecia em Placência em 1388, verdadeira terra da abundância:
Na comida todos fazem maravilhas, sobretudo nos banquetes de casamento, que via de regra seguem a seguinte ordem: vinhos brancos e tintos para começar, mas antes de tudo, confeitos de açúcar. Como primeiro prato servem um capão ou dois e um grande pedaço de carne para cada mesa [cada um servia duas pessoas], cozido com amêndoas e açúcar e outros bons temperos. Em seguida, servem carnes assadas em grande quantidade, isto é, capões, frangos, faizões, perdizes, lebres, javalis, cabritos ou outra coisa, dependendo da estação do ano. Depois, servem tortas e ricotas com confeitos de açúcar por cima. Por fim, depois de ter lavado as mãos, antes que as mesas sejam retiradas, se dá algo para beber e um confeito de açúcar, e mais bebida. No lugar das tortas e ricotas, alguns oferecem no início da refeição tortas preparadas com ovos, queijo e leite, com uma boa quantidade de açúcar por cima. Para o jantar, servem-se, no inverno, gelatinas de carnes selvagens, de capões, galinha ou vitelo, ou gelatinas de peixe; em seguida, assado de capão e de vitelo; e depois frutas. Tendo lavado as mãos, antes que as mesas sejam tiradas, servem bebida e confeitos de açúcar, e mais bebidas. No verão, por sua vez, servem-se, para o jantar, gelatina de galinha e capão, de vitelo, cabrito, porco; ou gelatina de peixe. Depois, assado de frango, cabrito, vitelo; ou de pato, marreco, ou de outras carnes, conforme a disponibilidade do momento. [...] No segundo dia depois das núpcias servem-se lasanhas com queijo ou açafrão, uvas e os temperos. Depois, assado de vitelo e fruta. Para a janta, cada um retorna à sua casa: a festa terminou. Ainda bem, diríamos!
Os cátaros, puros e abstêmios
Por outro lado, havia também aqueles que tinham o alimento, mas o rejeitavam a priori (ao menos alguns tipos) por motivos religiosos. Entre esses devem ser mencionados, sem dúvida, os boni christiani, os “bons cristãos”, como se autodefiniam: uma das seitas heréticas mais “perigosas” para a Igreja, a ponto de que essa não hesitou, em 1208, a travar contra eles uma verdadeira cruzada que se resolveu com um banho de sangue e reduziu a ossos uma região inteira de Languedoc, na França.
Por que tanta fúria? Os cátaros – o nome vem de katharós, “puro” – nunca foram moderados. Veremos isso em detalhes mais adiante. Basta, por ora, recordar que buscavam a pureza a qualquer custo e uma nova espiritualidade, distante das sirenes mundanas e dos aparatos de poder, com os quais não queriam ter nenhuma proximidade. Seu modelo de sociedade, de fato, era completamente diferente do existente na Europa do século XII, embora, para falar a verdade, eles também fossem filhos da mesma sociedade. Sua concepção de vida era dualista: de um lado estava o bem; do outro, o mal. O bem era identificado com o espírito; o mal, com a carne. Consequentemente, pretendiam viver segundo a pureza originária, renunciando à carne e apartando-se dos prazeres terrenos para conquistar o perfeito conhecimento da verdade.
Sua organização era estruturada de acordo com um modelo hierárquico: no degrau mais elevado estavam os “perfeitos”, aqueles que haviam atingido o conhecimento. Nos patamares inferiores encontravam-se os demais adeptos, que eram progressivamente “iniciados” no mesmo conhecimento e, por intermédio de uma rígida ascese, eram ajudados a libertar-se dos prazeres terrenos e a alcançar a perfeição do espírito. Para obtê-la, deviam renunciar a qualquer contato sexual e a todo alimento que tivesse de algum modo relação com a procriação, ou seja, carne, ovos, queijo, leite. Nada que pudesse colocá-los em contato com o mundo terreno e, portanto, com o pecado.
A epopeia dos cátaros, como se sabe, terminou em sangue: após a destruição de Albi, em Provença (sua cidade principal), os cátaros ou foram mortos ou encarcerados, ou ainda se refugiaram na Planície Padana. E aqui deram novo impulso aos seus “irmãos” cisalpinos de modo que, em meados do século XIII, os encontramos em Concorezzo, perto de Milão, em Desenzano, Mântua, Vicenza, Verona, e continuaram a ser perseguidos até sua extinção. Para além dos aspectos meramente teológicos, o que aqui é necessário destacar é uma experiência rigorista muito forte que quis, nesse caso, por meio da rejeição a alimentos e a qualquer afrouxamento, reencontrar um espírito de pureza que parecia perdido.
Claramente nos limites do patológico, no entanto, é a privação de alimento a que se submetiam muitas místicas medievais, cujos sofrimentos foram recentemente analisados como manifestações de uma doença que se acreditava fruto da sociedade contemporânea, mas que, evidentemente, acometia suas vítimas já no passado: a anorexia. O antecedente era “nobre”: Jesus mesmo, antes de iniciar sua missão, passou quarenta dias em jejum no deserto. A ausência e a recusa do alimento eram experimentadas como a tentativa – extrema – de se autodissolverem em Cristo. Para a santa anoréxica, não comer significa afirmar a própria vontade, negar a própria corporeidade para poder alcançar a única meta realmente importante, a espiritual, rebelando-se contra um sistema opressivo que muitas vezes relegava a mulher a mero objeto de tentação.
Notas
[44] MONTANARI, M. La fame e l’abbondanza. Roma/Bari: Laterza, 1993, p. 31-32.
[45]. Divina Commedia, Purgatório, canto XXIV, v. 22-24: “ebbe la Santa Chiesa in le sue braccia:/dal Torso fu, e purga per digiuno / l’anguille di Bolsena e la vernaccia”. [Trad. de J.P. Pinheiro: “Foi em Tours; já na Igreja exerceu mando. / Stá, por jejuns, anguilas de Bolsena, / Ver na ceia, afogadas, expurgando”.]
Texto de Elena Percivaldi (trad. João Batista Kreuch & Leonardo A.R.T. dos Santos) em "A Vida Secreta da Idade Média", Editora Vozes, Petrópolis RJ, 2018, cap. 5. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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