IMAGINE SE VOCÊ PUDESSE DESCOBRIR O QUE exatamente nos alimentos dispara o mecanismo de recompensa no cérebro, e isolasse cada uma dessas substâncias. Para completar, seria quase um milagre se grandes quantidades dessas delícias fossem mais baratas do que os próprios alimentos de onde elas vieram. Pois esse “sonho” foi realizado antes mesmo de você nascer: no fim do século 19, com o começo da produção em larga escala de farinha, açúcar e sal altamente refinados e das doses cavalares de gordura adicionadas na comida.
Hoje, esses quatro ingredientes são a base da comida industrializada. Eles estão em tudo: tem sal até nos doces – no chocolate, no refrigerante, no iogurte – e açúcar nos salgados – como lasanha congelada, ervilha em conserva e frango temperado. Não por acaso, esse quarteto atua no cérebro de um jeito semelhante ao das drogas, porque a ideia é mesmo você querer cada vez mais e mais. E funciona. No Brasil, 73,6% dos alimentos consumidos vêm da indústria, inclusive nas regiões mais distantes dos centros urbanizados. No Norte, por exemplo, existe até supermercado flutuante saindo de Belém, passando pela Ilha de Marajó e chegando ao Baixo Amazonas com bolachas, chocolates, iogurtes, sucos prontos e salgadinhos, que substituem com bastante praticidade um pato no tucupi. É a globalização do paladar. Nem mesmo em um país tão rico em comida de verdade como é o nosso, conseguimos resistir ao apelo industrial e consumir com moderação o que a modernidade oferece.
FARINHA
A farinha existe há séculos. Pegar uma planta e tirar dela as fibras, as proteínas e os minerais – ou seja, refiná-la – é uma prática comum desde os primórdios da civilização. No Egito antigo e na Europa medieval, era hábito comum triturar trigo e centeio para cozinhá-los em pedras e fazer pão. O resultado era uma massa consistente e rústica. A diferença é que o refinamento não era tão grande como nos dias atuais. Hoje, desse processo não sobra quase nenhum nutriente para contar história – até mesmo as versões integrais são empobrecidas se comparadas às menos processadas feitas tempos atrás.
Além de mais caro naquela época, o trigo sempre teve um sabor mais adocicado. Outra característica desse grão é deixar o pão mais leve e fofo do que aquele feito com a cevada. O poder aquisitivo de quem comia era o que determinava a proporção entre os dois tipos de matéria-prima e o acesso ao refinamento dela. Quem tinha dinheiro podia pagar por uma massa mais pura, do ponto de vista de que ela era livre das cascas dos grãos, e mais branca também.
Boa parte dos camponeses não tinha nem moinho para fazer sua própria farinha nem forno para assar pão. Restava levar o trigo e a cevada a um comerciante que os triturasse e depois entregar a farinha para o padeiro. Ambos cobravam como pagamento receber uma parte do produto. E muitos deles ficavam com uma quantidade maior do que prometiam, colocando areia e serragem no lugar do produto que foi retirado. Enfim, resumo da ópera: o pão da plebe era sempre mais escuro. Essa ideia de que quanto mais branca for a comida, melhor ela é, estendeu-se depois ao açúcar também.
O primeiro processo automático de refino da farinha foi patenteado por um americano chamado Oliver Evans, lá atrás em 1785. Ele teve a ideia de submeter as sementes de trigo a um mecanismo em que elas passam por dois cilindros que giram para lados opostos e esmagam os grãos, tirando deles o gérmen, que é o embrião – fonte riquíssima de vitamina E –, e a casca, de onde se produz o farelo, substância de coloração marrom e cheia de fibras. O que sobra desse processo todo é o endosperma, que é a comida da planta, com alta concentração de amido. É esse amido que continua sendo triturado nos cilindros para virar um pó bem fininho – a farinha branca, a energia em estado puro, a substância que faz seu cérebro soltar rojões de tanta alegria quando a pizza chega em casa.
SAL
O sal já foi a moeda mais valiosa do mundo. Os romanos recebiam pagamentos em sal – e você também recebe, de certa forma, porque é daí que vem a palavra “salário”. Nos tempos pré-geladeira, ele era o principal conservante de alimentos devido à ação de uma substância, o sódio, que corresponde a 40% do sal (os outros 60% são de cloro) e atrai para si as moléculas de água.
Quando você salga uma comida, o sódio faz uma drenagem nela e, por isso, torna o ambiente um lugar hostil para muitos micro-organismos. Sem as bactérias no pedaço, o alimento dura mais tempo do que em condições normais.
No seu corpo, duas funções importantes do sal são manter o equilíbrio de água dentro e fora das células e conduzir impulsos nervosos. Mas, em grande quantidade, o sódio chupa mais água do que deveria e desencadeia uma resposta do organismo para tentar equilibrar a quantidade de líquido em circulação: a pressão arterial sobe e o volume de sangue que segue para o bombeamento no coração aumenta. Manter o sistema operando nessa capacidade máxima pode causar infarto, derrame e problemas nos rins, que não dão conta de filtrar tudo.
E o excesso de sal tem sido um hábito. Uma pesquisa do IBGE mostrou que 89% dos homens e 70% das mulheres entre 19 e 59 anos consomem sal acima do limite de 5 gramas por dia – a ingestão média é de 11,38 gramas. Se você considerar que o sal tem 40% de sódio, então são 4,46 gramas dessa substância por dia, quando o limite estabelecido é de 2 gramas.
Recentemente, um estudo da Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia) eximiu a comida processada de ser a maior fonte de sódio na alimentação. Segundo a pesquisa, baseada em dados do IBGE, os produtos industrializados respondem por apenas 23,8%, em média, do consumo de sódio. No Sudeste, o número sobe para 29,6%. Mas os resultados não garantem aos alimentos processados o título de bons moços.
Uma pesquisadora da Universidade de Calgary, no Canadá, analisou 186 papinhas e outros alimentos infantis e descobriu que 63% tinham excesso de sódio ou de açúcar. Nos Estados Unidos, cientistas do Centro Monell, dedicado ao estudo do paladar e do olfato, acompanharam 61 bebês divididos em dois grupos e concluíram que o gosto por sódio pode ser aprendido. Quando eles tinham 2 meses de idade, receberam água com diferentes quantidades de sal. Todos eles rejeitaram a bebida ou se mostraram indiferentes a elas. Aos 6 meses, eles foram divididos em dois grupos: os que comiam alimentos com nenhum ou pouco sal, como frutas e vegetais frescos, e os que eram acostumados a bolachas, cereais, pães e outras coisas salgadas. Os bebês do primeiro grupo preferiram água natural e os do segundo gostaram mais da água salgada. Como a infância é uma fase importante para a definição do paladar, quem aprende a gostar de sal logo cedo dificilmente vai abrir mão de doses extras dele na vida adulta.
O sódio virou a fonte principal dos conservantes químicos que permitiam levar alimentos, de preferência enlatados, a populações cada vez maiores e a soldados que passavam meses nas guerras. É o caso do caldo de carne – uma comida desidratada que, em contato com a água, vira facilmente uma sopa. Meio tablete dele tem 40% de todo o sódio que deveria ser consumido por um adulto em um dia. O produto foi desenvolvido no século 19 por um químico chamado Justus von Liebig, que nasceu na Prússia, em uma região que hoje faz parte da Alemanha.
Liebig fazia vários experimentos em seu laboratório usando comidas. Um dia, decidiu cozinhar pedaços de carne até transformá-los em um líquido concentrado e, depois, em pó. Mais denso e seco do que o alimento fresco, o extrato de carne durava mais tempo e podia ser carregado mais facilmente pelas tropas do exército.
Essa invenção foi não só a precursora dos cubinhos de carne que hoje habitam nossas cozinhas, mas também de um modelo industrial para transformar alimentos frescos em produtos fáceis de transportar – e com prazo de validade bem maior.
Para isso, a indústria desenvolveu outros conservantes à base de sódio, como benzoato de sódio, nitrato de sódio, nitrito de sódio, bissulfito de sódio, metabisulfito de sódio. O potássio e os ácidos também dificultam a vida das bactérias, o que explica a quantidade enorme de sorbato de potássio, benzoato de potássio, ácido sórbico e ácido benzoico no nosso cardápio.
Conservantes, antioxidantes e estabilizantes também foram desenvolvidos para prolongar a vida útil da comida. É o caso de um derivado de petróleo, o TBHQ, que não deixa a gordura ficar rançosa. Comum em margarinas e molhos prontos para salada, ele é rigidamente controlado pelos órgãos de saúde para não ultrapassar a quantidade de 0,02 grama a cada 100 gramas de óleo. Ingerir 1 grama pode provocar enjoo, vômito e desmaio. Cinco gramas são letais. Claro que é impossível você ingerir tanto molho pronto a ponto de ter uma overdose de TBHQ, mas o exemplo deixa claro que estamos comendo com o inimigo.
Outro agente indigesto da industrialização é a amônia, que pode ser utilizada no processamento de carne. A receita padrão do hambúrguer industrializado é pegar restos de carne gordurosa, que antes eram destinados apenas para a produção de sebo ou de ração para animais, e colocar em uma centrífuga de alta velocidade para separar 90% da gordura, deixando apenas uma pasta mais magra. Depois, a maçaroca é misturada com outros pedaços de carne moída, temperos, conservantes e, voilà, você tem um hambúrguer. Tirar mecanicamente a gordura da carne em vez de usar só os pedaços mais nobres barateia os custos em 15%. Para a indústria, é uma economia e tanto. Para o seu bolso, também. Já não podemos dizer o mesmo para a sua saúde.
Quando o New York Times divulgou em 2009 que o maior fornecedor de carne para hambúrguer nos EUA – incluindo o McDonald’s e escolas que servem merenda para crianças – usava amônia nesse processo de separação de gordura, a chapa esquentou. A assessoria da empresa que representa o McDonald’s no Brasil disse que, por aqui, essa substância não é utilizada.
Para você ter uma ideia, as partes mais gordurosas da carne ficam geralmente na traseira dos animais. Essa região é mais propensa a entrar em contato com as fezes, fontes de bactérias mortais como a e.coli e a salmonela. O uso de amônia foi aprovado pelo Departamento de Agricultura Americano porque poderia matar os micro-organismos e, assim, deixar a comida mais segura. Só que os testes vêm demonstrando que a prática não evita a contaminação. Pior, não se sabe ainda qual o risco da ingestão de amônia, mesmo em pequenas quantidades. O que se sabe mesmo é que ela é muito eficiente para dissolver a gordura na centrífuga e ainda produz um extreme makeover na comida: em contato com a carne, a substância química libera uma coloração rosada bem forte, que faz qualquer carcaça parecer filé mignon. Ou seja: une o industrialmente útil ao esteticamente agradável.
O governo alertou a empresa fabricante da pasta com restos de carne, gordura e amônia, mas a prática continua permitida e não se sabe quais marcas adotam o procedimento. Como essa substância não é considerada um ingrediente a mais na fórmula do hambúrguer, e sim uma etapa do processo de fabricação, ela não é discriminada no rótulo das embalagens. Ou seja, não tem como adivinhar se o seu x-salada tem amônia ou não – a não ser que você pergunte diretamente ao fabricante.
Alguns desses químicos deixam um gosto amargo na comida – e ele precisa ser disfarçado com outros químicos. Fora que o aspecto de um alimento que passa meses dentro de uma embalagem não seria lá muito bom sem produtos feitos em laboratório para garantir a beleza deles. Isso explica por que um simples nugget é um amontoado de até 35 ingredientes diferentes.
SÓDIO ESCONDIDO
Chocolate, bala, refrigerante, gelatina, goiabada, iogurte, sorvete... Os doces industrializados também estão cheios de sódio.
ACHOCOLATADO EM PÓ
30 mg a cada 20 g
ACHOCOLATADO LÍQUIDO
130 mg a cada 200 ml
BALA DE IOGURTE
98 mg a cada 4 balas
BARRA DE CEREAL DE
CASTANHA COM CHOCOLATE
36 mg a cada 20 g
BEBIDA À BASE DE SOJA SABOR MAÇÃ
32 mg a cada 200 ml
BISCOITO DE BRIGADEIRO
96 mg a cada 30 g
BISCOITO RECHEADO SABOR BAUNILHA
126 mg a cada 30 g
BOMBOM
32 mg a cada 21,5 g
BOLO PRONTO DE ABACAXI
242 mg a cada fatia
CHÁ PRONTO PRETO SABOR PÊSSEGO
57 mg a cada 200 ml
CHOCOLATE AO LEITE
23 mg a cada 35 g
COCA-COLA
10 mg para cada 200 ml
CREME DE AVELÃ
6,6 mg para cada 20 g
CREME TIPO CHANTILLY
15 mg a cada 20 g
DOCE DE LEITE
24 mg a cada 20 g
ENERGÉTICO
80 mg a cada 200 ml
FLÃ DE BAUNILHA
106 mg a cada unidade
GELATINA EM PÓ DE FRAMBOESA
61 mg a cada 7,9 g
GOIABADA
10 mg a cada 40 g
GRANOLA
141 mg a cada 40 g
IOGURTE COM MEL
93 mg por pote
IOGURTE COM POLPA DE MORANGO
79 mg por pote
IOGURTE NATURAL
97 mg por pote
LEITE CONDENSADO
20 mg a cada 20 g
MISTURA PARA BOLO DE CHOCOLATE
307 mg a cada 40 g
PAÇOCA
23 mg a cada 20 g
PÓ PARA CAPPUCCINO
55 mg a cada 30 g
PÓ PARA PUDIM DE CARAMELO
21 mg a cada 11 g
REFRESCO EM PÓ SABOR LIMÃO
25 mg a cada 6 g
SUCO CONCENT RADO DE MANGA SEM AÇÚCAR
7,6 mg a cada 65 ml
SORVETE DE CREME
34 mg por bola
SORVETE DE CHOCOLATE COM AMÊNDOAS
44 mg por bola
TORTA MUSSE DE LIMÃO CONGELADA
85 mg a cada 60 g
(* 20 gramas equivalem, em média, a uma colher de sopa, e 200 ml a um copo pequeno.)
AÇÚCAR
O outro pó branco que inebria o cérebro é o açúcar. Hoje, ele é tão barato e abundante que fica difícil acreditar que já tenha sido raro e, portanto, caro. A principal fonte natural de açúcar, a cana, não se desenvolve tão bem em qualquer canto, como acontece com o trigo. Ela se dá melhor em lugares com volume alto de chuvas e temperatura média acima de 21 graus. Nos períodos em que os termômetros passam de 27 graus, o desenvolvimento da planta é maior ainda. Por isso, regiões com clima tropical, como partes do Brasil, da Índia, da África e da China, são mais favoráveis à produção.
Por muito tempo, o mel era o único adoçante da maioria da população mundial. Os primeiros relatos sobre a cana-de-açúcar aparecem em manuscritos chineses do século 8 a.C., apontando a Índia como lugar de origem do uso dela na alimentação. Também existem indícios de que foi na Nova Guiné, no Oceano Pacífico, que surgiu a variedade de cana popularizada depois na América.
Os indianos tinham o hábito de mascar o bagaço da cana e, com o tempo, passaram também a triturá-la para tirar dela o caldo e deixá-lo secando em tigelas ao sol até que se formassem pequenos cristais de cor marrom. Quando a Pérsia invadiu a Índia no século 5 a.C., incorporou esse hábito e aprimorou as técnicas de refinamento do açúcar, para que a mercadoria ficasse mais fácil de ser armazenada e transportada.
Ainda assim, foi só por volta de 500 d.C. que o açúcar começou a se tornar mais conhecido, porque os indianos passaram a vendê-lo nas rotas internas de comércio. Naquele tempo, o processo já tinha se sofisticado mais: o caldo de cana era fervido, para que pudesse gerar mais rapidamente os cristais de açúcar.
No século 7, os chineses, que conheceram a iguaria quando monges budistas retornaram de suas viagens com ela na bagagem, enviaram expedições à Índia para trazer de lá o conhecimento sobre o cultivo da planta e a fabricação do açúcar. Nessa mesma época, os povos árabes iniciaram sua expansão, que chegou ao norte da África, à Península Ibérica e ao Oriente, incluindo a Pérsia, onde descobriram os segredos do cultivo da cana e da produção de açúcar. Como bons comerciantes que eram, tornaram-se os principais vendedores da substância doce pelas vias terrestres. Tanto que, em várias línguas ocidentais, a palavra para designar o mais doce dos doces é derivada do nome árabe da coisa: “as-sukkar”. Olha só:
Azúcar (espanhol)
Zucker (alemão)
Zucchero (italiano)
Socker (sueco)
Seker (turco)
A Europa Ocidental tomou contato com os cristais adocicados na época das Cruzadas. Mas, para o Ocidente, o jeito de consegui-los era pagar o preço que os árabes queriam – aproximadamente R$ 230 o quilo, no câmbio atual.
Logo as grandes navegações dariam uma força para derrubar esse preço. Cristóvão Colombo chegou à América; Pedro Álvares Cabral veio parar no Brasil. A ideia de se aventurar em caravelas globo afora foi movida não pelo açúcar, mas pela pimenta (a do reino, entre outras especiarias hipervalorizadas nos séculos 15 e 16). E boa parte das recém-conquistadas colônias, principalmente as portuguesas e as espanholas, se transformou em grandes plantações de cana (Brasil incluído).
No século 17, os britânicos também viraram uma potência da indústria açucareira. Com muito mais produto circulando, os preços baixaram, mais gente começou a comprar e mais empresários passaram a investir para aprimorar a técnica de refinamento do açúcar. Tanto que, no final do século 18, ele já tinha virado item de primeira necessidade.
A concorrência entre os mercados impulsionou a sofisticação dos processos de fabricação. Os moinhos de engenho deram lugar a usinas de açúcar produtoras de mercadoria em larga escala. Para tornar o produto cada vez mais claro, a indústria adotou o uso de dióxido de enxofre, que destrói as substâncias que dão coloração escura ao açúcar. O refinamento também foi aprimorado, transformando os cristais em pó.
Em 2009, o biólogo Robert Margolskee descobriu que os receptores de açúcar na língua têm relação direta com a produção de endocanabinoides, substâncias encontradas também na maconha e que o corpo produz para disparar a fome. Inclusive, alguns médicos hoje estudam os endocanabinoides para tratar a perda de apetite em pacientes com câncer submetidos à quimioterapia. Outro estudo, feito em 2012 por cientistas da Universidade da Califórnia, concluiu que o excesso de açúcar causa os mesmos danos no fígado do que o álcool. Eles até defendem que a venda de refrigerante seja proibida para crianças.
O primeiro estudo brasileiro que avaliou o consumo de bebidas entre crianças e adolescentes de 3 a 17 anos indicou que, nessa fase, justamente quando o paladar é formado, as pessoas trocaram o leite e a água por sucos industrializados e refrigerantes. Coordenada pela Faculdade de Saúde Pública da USP, a pesquisa chegou a números alarmantes: quem tem até 10 anos consome 21 quilos de açúcar só em bebidas todo ano. O recomendável é não ultrapassar 18 no total – ou seja, considerando outras fontes na alimentação. Na faixa etária entre 11 e 17, são 26 quilos anuais vindos de bebidas. Uma lata de refrigerante contém, em média, duas colheres de sopa de açúcar, que equivalem a 24 gramas. Em um mês, são 720 gramas. Em um ano, 8,6 quilos – só do refrigerante.
Hoje, 67% dos brasileiros entre 19 e 59 anos ultrapassam a quantidade ideal de açúcar na dieta. Em 1930, cada um mandava para dentro 15 quilos de açúcar por ano. Vinte anos depois, o número dobrou. Entramos na década de 1990 com 50 quilos por ano e, hoje, batemos nos 55. A média mundial é de 21 – na China, de 7.
O fato é que o excesso de açúcar é a causa da morte de 35 milhões de pessoas no mundo, segundo o relatório The Toxic True About Sugar. Dá um Canadá por ano. Boa parte dessa situação alarmante tem a ver com o fato de que comemos várias doses de açúcar sem perceber: nos produtos industrializados, que adicionam o doce até mesmo nos salgados.
AÇÚCAR ESCONDIDO*
Lasanha congelada, camarão empanado, peito de peru, patê de presunto, caldo de carne e outros salgados levam açúcar na composição.
Nos rótulos, os ingredientes sempre aparecem em ordem decrescente de quantidade. Pode dar uma olhada no supermercado: no caldo de galinha, tem mais açúcar do que carne de galinha. No salgadinho de queijo, tem mais desse pó doce do que de queijo. Veja alguns produtos e seus principais ingredientes. Tem de tudo, mas o açúcar é onipresente:
AMENDOIM JAPONÊS
Amendoim, farinha de trigo, açúcar, sal, molho de soja.
CALDO DE CARNE
Sal, gordura vegetal, amido, açúcar, alho, carne bovina, pimenta vermelha, salsa, louro, realçadores de sabor glutamato monossódico e inosinato dissódico, aromatizantes, corantes caramelo e urucum, acidulante ácido cítrico. Contém traços de leite, ovos, soja, aipo e mostarda.
CALDO DE GALINHA
Sal, gordura vegetal, amido, açúcar, alho, carne de galinha, salsa, condimento preparado de cebola, realçadores de sabor glutamato monossódico e inosinato dissódico, aromatizante, corantes naturais cúrcuma e caramelo. Contém soja e aipo, traços de leite, ovos e mostarda.
CAMARÃO EMPANADO CONGELADO
Camarão eviscerado descascado, farinha de trigo enriquecido com ácido fólico e ferro, amido, gordura vegetal, derivados de milho, sal, maltodextrina, albumina, especiarias (alho, cebola e pimenta preta), açúcar, óleos essenciais (alho e cebola), fermento químico, fermento biológico.
CATCHUP
Polpa de tomate, açúcar, vinagre, glicose e sal.
ERVILHA EM CONSERVA
Ervilhas, água, açúcar e sal.
FRANGO TEMPERADO CONGELADO
Frango, água, sal, proteína vegetal hidrolisada, alho, cebola, maltodextrina e açúcar.
LASANHA CONGELADA
Carne bovina, polpa de tomate, condimentos naturais, bacon, sal, açúcar, amido modificado, pimenta branca, creme de leite, margarina, leite em pó, água, ovo, mussarela e parmesão, presunto e “aroma de fumaça”.
MACARRÃO INSTANTÂNEO
Farinha de trigo, gordura vegetal, sal, fécula de mandioca, purê de batata em flocos, carne bovina em flocos, farinha de arroz, maltodextrina, condimento preparado sabor costela, tomate desidratado, condimento sabor barbecue, condimento sabor churrasco, alho em pó, pimentão em flocos, cebolinha verde em flocos, condimento preparado à base de extrato de levedura, condimento preparado sabor carne, cebola em pó, açúcar, salsa em flocos, pimenta vermelha em pó.
MAIONESE
Água, óleo vegetal, vinagre, amido modificado, ovos pasteurizados, sal, açúcar, suco de limão.
MINIMILHO EM CONSERVA
Milho, água, vinagre, açúcar, sal.
MOLHO DE TOMATE
Tomate, cebola, sal, açúcar, amido, óleo vegetal, salsa, aipo, pimenta do reino.
MOLHO PARA SALADA
Água, óleo vegetal de soja, vinagre, sal, açúcar, amido modificado, suco de limão, salsa, pimenta preta, acidulante ácido cítrico, conservadores de sorbato de potássio e benzoato de sódio, estabilizante goma xantana, corante natural clorofila, aromatizantes realçadores de sabor glutamato monossódico, sequestrante, ETBHQ, cálcio dissódico antioxidante TBHQ.
MOLH O SHOYU
Água, sal refinado, soja, milho, açúcar.
MOSTARDA
Água, vinagre, açúcar, mostarda, amido modificado, sal, pimenta do reino, pimenta preta, canela em pó.
PATÊ DE PRESUNTO
Presunto, gordura suína, água, amido, proteína de soja, sal, cebola, açúcar.
PEITO DE PERU DEFUMADO
Carne de peito de peru, sal, proteína de soja, açúcar.
SALGADINHO DE QUEIJO
Lactose, amido de milho, óleo de girassol, tomate em pó, sal cloreto de sódio, maltodextrina, óleo de palma, milho, soro de leite, leite desnatado, cebola, açúcar, alho, cheddar, óleo de milho, pimenta vermelha, pimenta preta, pimenta branca.
SOPA PRONTA
Amido, maltodextrina, creme de leite, peito de frango, batata, sal, gordura vegetal, açúcar, cebolinha, cúrcuma, queijo, cebola, alho, noz-moscada.
TORTA DE FRANGO CONGELADA
Massa: farinha de trigo, água, açúcar, sal. Recheio: requeijão com gordura vegetal, frango desfiado, farinha de milho, óleo de soja, extrato de tomate, sal.
GORDURA
Carne é tecido animal, em geral muscular. As fibras que a compõem são feixes de células musculares, enroladas umas nas outras. Em volta delas, há uma cobertura de gordura, cuja função é lubrificar o músculo e permitir que ele relaxe e se contraia suavemente. Ou seja, não há carne sem gordura. Ela é fundamental para o corpo: dissolve vitaminas para o organismo conseguir aproveitar, garante o bom funcionamento do intestino e do fígado. É o óleo lubrificante do nosso motor interno. O problema é o excesso. A gordura cria tolerância nos receptores dos neurônios que processam o hormônio responsável pela sensação de saciedade, a leptina. Em português claro: ela faz com que sejam necessárias doses de comida cada vez maiores para convencer sua cabeça de que a barriga já está cheia.
Pesquisadores do Scripps Research Institute alimentaram um grupo de ratos com ração comum e outro com doces, comida congelada, salsicha e bacon – todos ricos em gordura. Depois de 40 dias, os que receberam ração continuavam magros, como se esperava, e os outros ficaram gordos. A novidade é que algo de diferente tinha acontecido no cérebro dos ratos que se esbaldaram com as guloseimas. Eles desenvolveram resistência à dopamina e, portanto, não sentiam mais prazer com a comida como no começo do experimento. Então, passaram a devorar compulsivamente doses cada vez maiores daquelas maravilhas que dominam a nossa dieta, na tentativa de experimentarem a mesma satisfação que tinham antes. Aí vem a parte mais impressionante. Os pesquisadores começaram a dar choques nos ratos que se aproximavam das comidas hipercalóricas, para que eles parassem de comê-las. Não adiantou. Àquela altura, nada mais importava na vida dos bichinhos, nem mesmo a dor. Eles passaram a viver em busca da próxima dose de dopamina. É o que acontece também com usuários de crack.
A gordura é tão viciante quanto os doces. O neurocientista Edmund Rolls, da Universidade Oxford, na Inglaterra, comprovou isso em uma experiência. Os participantes ficaram três horas sem comer e, um a um, passaram por uma máquina de ressonância magnética. Lá dentro, um tubo colocado na boca deles enviava separadamente três tipos de solução: uma neutra, outra com açúcar e outra com óleo de canola. A neutra não fez nem cócegas no cérebro. Mas tanto a açucarada quanto a gordurenta excitaram o centro de recompensa e geraram descargas de dopamina, o hormônio do prazer.
Existe outro fenômeno que tanto a gordura quanto a farinha, o açúcar e o sal dividem com o mundo dos entorpecentes: a tolerância. Do mesmo jeito que um bebedor contumaz aguenta vários copos de chope antes de ficar bêbado, o comedor profissional manda ver nesse quarteto até dar perda total nos órgãos.
E o negócio vai piorar. A ciência da alimentação superou a ficção científica e já conta com réplicas fiéis do nosso sistema digestivo nos laboratórios, da boca até o intestino, com sensores capazes de identificar a ação das substâncias. Hoje, pesquisadores desenvolvem, com a ajuda dessas réplicas, glóbulos de gordura que dão a sensação de maciez quando tocam a língua e se dissolvem mais facilmente na boca, disparando rapidamente o sistema de recompensa do cérebro. Também produzem partículas ainda mais finas de sal e açúcar com poder adoçante 2 mil vezes maior.
A indústria não investe nessas tecnologias por “maldade”, claro. Ela faz isso porque você gosta. Tire um pouco de açúcar do seu refrigerante e ele se tornará repulsivo. Experimente uma bolacha sem gordura e você vai achar que está comendo casca de árvore. Sem isso a indústria da comida não existe. E, como qualquer indústria, ela é importante para a economia de qualquer país. É por isso que, apesar de os governos se mexerem para tentar diminuir os custos com um sistema de saúde atolado de doentes crônicos, mantêm uma relação de amor e ódio com as empresas.
Um exemplo claro no Brasil foi o acordo que o Ministério da Saúde fez em 2011 com a indústria alimentícia para reduzir a quantidade de sódio e de gordura nos alimentos até 2020. No mesmo ano, o Ministério concedeu ao McDonald’s o título de Parceiro da Saúde. Mas espera um pouco: só um Big Tasty tem 104% de toda a gordura saturada que um adulto pode comer no dia – ou seja, um sanduíche já ultrapassa a cota. O Angus Bacon tem 97%, o Angus Deluxe tem 96%, o McNífico Bacon e o Quarteirão têm 64%. Ok, o Big Mac tem “só” 44%, mas o restante do combo se encarrega de estourar o limite: uma McFritas grande soma outros 30% de gordura saturada e o Top Sundae de chocolate, 34%. Se optar por uma saladinha, a Premium Salad Crispy tem 35%, mais do que o sundae. O Angus Deluxe é campeão em sódio, com 80% da recomendação diária. O Big Mac tem 34%, as fritas, mais 18% e dez unidades de Chicken McNuggets carregam 42% de todo o sódio que você deveria comer no dia. Se preferir se basear pelas calorias, aí vão: Angus Deluxe, 863; Angus Bacon, 861; Big Tasty, 841; Big Mac, 494; Fritas, 412; Top Sundae de caramelo, 508.
Depois de protestos, a foto do ministro da Saúde com o presidente do McDonald’s para a América Latina foi retirada da rede de compartilhamento de fotos do governo. E ambos disseram que o título não é formal, apenas uma honraria simbólica dada a empresas que “ajudam a divulgar informações sobre alimentação saudável”.
O McDonald’s é o símbolo máximo da comida viciante porque desenvolveu e popularizou um sistema extremamente eficiente de produção, que mudou para sempre o mundo dos restaurantes.
A INVENÇÃO DA FAST FOOD
Na Europa do século 18, existiam lugares onde os viajantes podiam fazer uma parada para tomar uma sopa restauradora – daí o nome restaurante –, servida em mesas coletivas. Um dos mais antigos do mundo ainda em atividade é o Botin, fundado na Espanha por um francês. Hoje, o endereço de Madri é um dos mais disputados pelos amantes da gastronomia.
O sistema que a gente conhece hoje, de um lugar com mesas pequenas e opções no cardápio para clientes escolherem, popularizou-se na França depois da revolução de 1789, quando os excessos da nobreza começaram a ruir. Os cozinheiros dispensados das cortes montaram negócios próprios, e a classe trabalhadora emergente passou a ter um pouco de dinheiro para pagar pela comida.
Mas o século 20 deu início à era da conveniência, a nossa era. E os restaurantes tradicionais ganharam um concorrente de peso. Principalmente depois que dois irmãos, Richard e Maurice McDonald, decidiram restruturar em 1948 sua pequena lanchonete na Califórnia, aberta oito anos antes. Foram três meses de reforma para transformá-la em um lugar com autoatendimento, onde as pessoas fizessem os pedidos de dentro do carro. O cardápio teve redução de preço e de itens à disposição, apenas com cheeseburguer, batata frita, refrigerante, leite, café e torta doce. Um combo por apenas 15 centavos – só US$ 1,50 em valores atuais, contando a inflação de lá até aqui.
Com a operação enxuta, dava para focar em eficiência e agilidade. A cozinha foi adaptada ao mesmo modelo de produção em larga escala da indústria automobilística. Cada funcionário foi encarregado de uma etapa da linha de montagem, fazendo movimentos repetitivos e, portanto, fáceis de assimilar em um curto período de tempo: fritar a batata, tostar o pão, colocar molho e queijo, fazer o hambúrguer, acomodar o sanduíche nas caixas, pegar o refrigerante e checar a qualidade final do produto antes de liberá-lo para o cliente. O resultado foi uma produção extremamente rápida e uniforme. Para os consumidores, parecia um sonho não ter de esperar pela comida justamente no momento em que o estômago mais roncava. O sucesso foi estrondoso e a lanchonete, que levava o sobrenome dos dois irmãos, ficou rapidamente famosa: McDonald’s.
O negócio chamou a atenção de um empresário, Ray Croc, que aceitou ser o agente de franquia da loja e levá-la a outros Estados. Anos depois, Croc comprou os direitos exclusivos da marca e estabeleceu um padrão de treinamento rigidamente seguido pelos franqueados. Comer num McDonald’s da Califórnia tinha de ser igual a comer num de Nova York – o mesmo gosto, o mesmo ambiente, o mesmo atendimento, o mesmo “Sundae acompanha?”. Em 1961, ele criou a Universidade do Hambúrguer para os funcionários. Os alunos recebem certificado de hamburgólogos. O mundo nunca mais foi o mesmo depois dessa invenção, que até hoje é o maior e mais bem-sucedido modelo de produção e venda de refeições em massa, adotado por tantas outras redes. “A humanidade sempre procurou por alimentos calóricos e palatáveis, mas antes eles eram mais raros. A comida diária dos nossos antepassados não era necessariamente saborosa. A maioria dessas culturas mal tinha sal. Fora que precisavam gastar energia para consegui-la e prepará-la”, me contou o bioquímico e neurobiólogo Stephan Guyenet, pesquisador da Universidade de Washington. “Hoje, podemos ter comidas altamente palatáveis e calóricas em qualquer lugar, a qualquer hora. Isso fica evidente em nossa cintura.”
RAIO-X DO NUGGET
Parece frango empanado, mas, na verdade, é um amontoado de até 35 ingredientes, muitos deles criados em laboratório.
Veja os mais estranhos.
REBOCO
Maisena modificada: é um pó de milho que dá liga à carne de frango moída.
GRUDE
Lecitina, mono, tri e diglicerídios: derivados do milho, impedem que a água e a gordura se separem. Por isso, são chamados de emulsificantes.
FERMENTO
Fosfato duplo de alumínio e sódio, fosfato monocálcico, pirofosfato ácido de sódio e lactato de cálcio: eles fazem a massa ganhar corpo.
ANTIGOSMA
Um derivado do petróleo, o TBHQ, serve para evitar que as gorduras animais e vegetais fiquem rançosas, principalmente depois de fritas.
MELECA DE BACTÉRIAS
Goma Xantana: é uma pasta feita de bactérias que adoram o açúcar dos carboidratos. Serve para dar consistência a um produto processado.
DETERGENTE
Tripolifosfato de sódio: é um faz-tudo da indústria química, porque entra na formulação de sabão para lavar roupa e louça, detergente para banheiro, creme dental. Na comida, ele serve apenas para estabilizar e conservar os ingredientes.
VICIADOS DESDE PEQUENOS
Desde a infância, somos educados a ter uma relação de poder com a comida: para comer a sobremesa, você precisa comer a verdura – a premiação depois do sacrifício. Quando você cresce, conquista a independência alimentar e pode comer nuggets todo dia, sorvete e chocolate sem fazer escalas em repolhos e acelgas, pipoca em frente à TV nas tardes inúteis de domingo. Porque você merece uma recompensa imediata, depois de um dia difícil. Você merece, depois de ter levado um fora, de ter sido promovido ou despedido. Não porque está com fome ou desaprendeu a comer. Autoindulgência. “É uma relação inconsciente que as mães estabelecem com os filhos quando prometem sobremesa depois da chicória e que a indústria alimentícia – e a do cigarro também – usa com maestria”, me contou Robson Henriques, publicitário, pesquisador e historiador, que trabalhou com as maiores marcas de cigarro, alimentos e consumo do mundo.
Nos manuais de boas práticas da propaganda de cigarro estavam escritas as regras de ouro da recompensa imediata para os fumantes: os homens ficavam instantaneamente mais viris, aventureiros, misteriosos e desejados. Mulheres ganhavam autoconfiança e certo ar de rebeldia. Atores e atrizes de Hollywood eternizaram que fumar era sexy. As marcas patrocinavam cada vez mais eventos esportivos, principalmente aqueles ligados à aventura, para o fumante se sentir radical e livre só de acender um cigarro.
Com a comida, acontece o mesmo: redes de fast food vendem felicidade, e não hambúrguer e batata frita; refrigerantes são abraços apertados em quem você mais ama; margarina é garantia de família unida e contente; cereais, biscoitos e cookies cheios de açúcar são energia para encarar o dia; comida congelada é a certeza de elogios do maridão, da mulher ou dos filhos e, grátis, tempo livre para ficar com eles. Porque você merece neste exato momento, ora!
Do ponto de vista comercial, não existem motivos para pensar que comprar comida é diferente de comprar cigarro ou roupa ou carro. De um lado, existe um consumidor com um desejo ou uma necessidade buscando satisfação. E do outro tem alguém que desenvolveu um produto ou serviço e está buscando lucro. Gostaria de acreditar que a indústria alimentícia tem intenções mais nobres do que a do cigarro. Mas na embalagem comprada pelo fumante está escrito que aquele vício pode causar câncer no pulmão. E nas latas de refrigerante? Não me lembro de ter visto indicações sobre risco de desenvolver obesidade e males associados a ela.
Quando as restrições ao tabagismo começaram, na década de 1980, a coisa começou a mudar. O Ministério da Saúde obrigou os fabricantes a estampar na embalagem uma frase dizendo que aquilo fazia mal. Depois vieram as fotos de pessoas doentes, a criação de fumódromos nos locais fechados e, hoje, a permissão de soltar fumaça apenas ao ar livre.
Criou-se uma consciência a respeito do tabaco, que naquela época estava relacionado às principais causas de morte nos Estados Unidos. Em 2004, a liderança do ranking foi perdida para as doenças derivadas da má alimentação. Por quê?
Porque, se hoje o poder de convencimento da indústria do cigarro foi limitado, o da comida industrializada foi ampliado. Enquanto você lê este livro, um grupo de americanos está reunido em uma sala respondendo a perguntas de um entrevistador interessado nas impressões deles sobre uma determinada comida. Aconteceu, por exemplo, quando eles quiseram saber o que leva as pessoas a comprar café.
Eles passaram a primeira hora falando sobre coisas práticas e racionais ligadas ao café, como o preço do produto e quantas xícaras tomam por dia. O entrevistador fingia que dava a maior importância, mas na verdade não estava nem aí.
Na segunda hora, as perguntas foram para o lado mais emocional e o papo começou a ficar bem interessante: o café alivia as tensões acumuladas? É bom para uma pausa no trabalho? Facilita a interação com os outros?
Na terceira hora, os participantes foram convidados a se deitar. A ideia era que atingissem o estado em que ficam logo depois que acordam, quando ainda não estão conscientes das tarefas do dia. Conforme pensamentos e lembranças vinham à mente, eles anotavam tudo em uma folha de papel e depois voltavam a relaxar. A atividade beirava a terapia.
Essa é uma reunião comum na empresa do antropólogo francês Clotaire Rapaille, fundador e presidente da Archetype Discoveries Worldwide, especializada em marketing e estratégia de comunicação baseados no comportamento humano. Para conduzir seus estudos, o antropólogo se baseia na teoria dos três cérebros criada pelo neurocientista e psiquiatra Paul MacLean na década de 1960.
MacLean identificou três regiões principais no cérebro com funções diferentes: o neocórtex, onde se processam o raciocínio e a linguagem; o sistema límbico, relacionado às emoções; e o reptiliano, que é a parte mais primitiva, ligada aos instintos. No caso do café ali atrás, o objetivo era saber o que fazia os americanos quererem comprá-lo. “O gosto”, responderam no começo, usando a razão para elaborar algo que parecia fazer sentido para eles.
Na segunda etapa, aquela em que sensações entram no jogo, surgiu um motivo diferente: era o aroma que os levava a querer o café. Mas por quê? A charada só foi descoberta na terceira hora da reunião, quando o grupo estava naquele estado de relaxamento e desorientação que a gente experimenta logo que acorda.
Nessa hora, o córtex racional ainda não está totalmente ativado e o que prevalece são as áreas mais antigas e instintivas, ligadas às emoções. Pois então descobriu-se que os americanos compram café porque o cheiro remete, inconscientemente, à mamãe preparando com muito amor a primeira refeição do dia e garantindo a sobrevivência da família. Faz todo o sentido.
Rapaille e sua turma sugeriram que o fabricante injetasse aroma de café na embalagem para que o “cheirinho de infância” inebriasse o consumidor na hora em que ele a abrisse. Foi um sucesso. Para a neurocientista Sarah Leibowitz, pesquisadora da Universidade Rockefeller, nos Estados Unidos, cada vez que comemos, o cérebro registra uma ficha completa com o gosto, o cheiro, as sensações e o nível calórico que acompanharam as mastigadas. E, na infância, esses registros são mais intensos.
Agora, pense nos bebês com menos de 3 meses de idade comendo açúcar. Naqueles com menos de 1 ano bebendo refrigerante. Nas crianças levadas frequentemente a lanchonetes de fast food. Em você comendo toneladas de carne com batata frita. Olha só que tipo de memória ligada à infância, à família e ao prazer está sendo gravada na parte mais primitiva do cérebro.
(* Os ingredientes variam de acordo com as marcas e os sabores.)
Texto de Marcia Kedouk em "Prato Sujo : Como a Indústria Manipula os Alimentos Para Viciar Você", Editora Abril, São Paulo, 2013. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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