Interior de um navio negreiro, pintura do artista alemão Johann Moritz Rugendas. (aprox. 1830). |
E por que a história do Brasil sempre é contada como se 80% dela fosse só escravidão?
A escravidão é sempre ruim, mas entre os graus de ruindade existentes, a escravidão conforme praticada no Brasil não foi a pior possível.
Os escravizados homens não eram castrados ao chegar no Brasil, para impedir que deixassem descendentes.
Embora houvesse restrições à prática religiosa e à língua dos escravizados, sobreviveram elementos culturais desses povos, diferente de outros países, onde suas crenças e cultura foram praticamente extintas antes do século XX.
Durante todo o período em que houve escravidão no Brasil também houve a figura do negro liberto, do mestiço (mulatos e morenos) e do negro ingênuo (nascido fora da escravidão). Ainda durante o período colonial tivemos mestiços destacando-se nas artes e na vida militar.
Embora, por preconceito racial, esses personagens tendem, às vezes, a ser "branqueados" em suas representações artísticas, apagando deles qualquer traço de mestiçagem. Muita gente nem imagina que o Padre Vieira era brasileiro, quanto mais mestiço.
Mas nem sempre esse apagamento ocorria. Este é Domingos Caldas Barbosa, o "Lereno" (seu nome artístico), mais bem-sucedido compositor "português" do século XVIII, nascido no Brasil (Rio de Janeiro) e filho de pais mestiços. Caldas Barbosa é citado, inclusive, como um dos responsáveis pela consolidação do fado, a música portuguesa mais típica.
Não consta que nem o Padre Vieira nem Domingos Caldas Barbosa tenham sido tratados como animais inferiores.
João Maurício Wanderley (van der Ley), de ascendência mestiça e holandesa, foi um dos políticos mais influentes do Segundo Império.
André Rebouças (que dá nome ao túnel, no Rio de Janeiro) foi um brilhante engenheiro, filho de pais negros ingênuos. Teve bolsa de estudos paga pelo imperador D. Pedro II para que se tornasse engenheiro com excelente formação. Era monarquista convicto e, por causa disso, depois da Proclamação da República deixou o Brasil e foi viver na Abissínia (atual Etiópia) onde pretendia pôr seus conhecimentos à disposição de um país africano livre. No entanto, ele não se adaptou ao país, ou não foi bem aceito ali, então, em 1893, foi para Portugal, onde se sentia mais à vontade, vindo a falecer em Funchal, Ilha da Madeira, em 1898.
O negro brasileiro André Rebouças se sentiu mais à vontade na Ilha da Madeira que na Abissínia por um motivo simples: por mais que tivesse antepassados "africanos", sua ancestralidade cultural portuguesa era mais próxima. Os abissínios eram outro povo, com outra língua, outra religião, outra cultura, outros costumes. Acima de tudo, eram um povo diferente dos próprios antepassados negros de Rebouças, que não tinham vindo do Chifre da África.
Evidentemente essas histórias não seriam possíveis se o negro fosse visto como um ser absolutamente bruto, incivilizável e animalesco. Tampouco seria possível se houvesse uma perseguição implacável ao negro, objetivando ao seu genocídio. Rebouças não teria preferido ir a Portugal se sentisse que os portugueses o tratavam como a um animal. Ele foi para lá exatamente porque, à parte razões ideológicas (era monarquista e Portugal ainda era uma monarquia), sabia que seria aceito melhor que na Abissínia.
Embora a realidade da escravidão africana seja inegável e indesculpável, ela precisa ser analisada com sutileza: a partir de um certo momento a escravidão originalmente foi situação jurídica e econômica, não racial. O negro não escravo por natureza, era escravo por resultado de um situação legal e de uma escolha econômica de Portugal. Tanto que era possível haver negros 'retintos' nascidos fora do cativeiro, e negros mestiços de pele clara que eram escravos — situação exagerada para fins dramáticos no romance "A Escrava Isaura", de Bernardo Guimarães.
Se a escravidão era uma situação jurídica, isso significava que existia a possibilidade da emancipação — e de fato ela existia há muito tempo. Havia até mesmo uma bula papal determinando que os negros eram seres humanos detentores de uma alma imortal como os brancos e sua escravização só era "tolerada" pelo catolicismo sob o pretexto de sua evangelização, a fim de salvar suas almas.
O que, infelizmente, também havia, era um forte preconceito racial e de classe, que impedia que acontecesse uma transição suave. Se mais negros libertos e ingênuos tivessem ascendido socialmente (como ocorreu a Rebouças e a outros), estes teriam podido erguer a outros, potencializando uma emancipação econômica dos negros livres, que logo resultaria em integração. Mas esses preconceito não era de origem religiosa e nem estava presente no populacho português, ele surge em decorrência do colonialismo.
Foi a escravidão que criou o racismo, não o racismo que criou a escravidão.
Por isso eu acredito que o cativeiro não foi, por si só, a causa derradeira do sofrimento dos escravizados no Brasil — mas foi o instrumento de algo anterior, uma relação econômica (o comércio triangular) que gerou um status quo jurídico (a escravidão) e alimentou um preconceito (racismo). Se esses três fatores não se apoiassem mutuamente, a emancipação dos escravos poderia ter ocorrido muito antes e em condições muito menos desfavoráveis.
Dar fim à escravidão, no período colonial, significava abrir mão de um lucrativo comércio. Mas também significava encarar uma realidade moral: a de que seres humanos haviam sido tratados como gado. Para manter os lucros e evitar esse choque de realidade, os escravagistas aprofundaram o racismo contra os negros, justificando ex post facto uma situação que originariamente fora somente econômica e jurídica.
Este entendimento faz muito sentido quando você observa que a situação dos negros não parece melhorar com a Abolição e que até piora, de certa forma, nos primeiros anos, quando foram empurrados para as margens da sociedade, substituídos pelos italianos na força de trabalho.
O motivo pelo qual se ensina tanto sobre escravidão na história do Brasil é porque esta relação (e seus fatores antecedentes) é o elemento definidor de nossa estrutura econômica, social, cultural e genética. Estudar a escravidão é estudar como surgiu a cultura brasileira — e o racismo estrutural que ela tem praticado há muito tempo.
Não compreender a relação do Brasil com a escravidão é não compreender o Brasil.
Texto de Jose Geraldo Gouvea publicado no site Quora. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa
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