4.18.2024

ROBERT DARNTON E O GRANDE MASSACRE DOS GATOS

 


Assim como A formação da classe trabalhadora inglesa, de Edward Palmer Thompson, temos com o historiador estadunidense Robert Darnton uma tentativa de penetrar na vida mental das classes populares, entendendo o sentido de seus protestos e reconstituindo modos de pensar e viver, vistos usualmente como ultrapassados e fadados ao esquecimento. 

Ao invés de uma história das ideias dos grandes intelectuais, o autor faz uma história da cultura dos trabalhadores e artesãos na Europa pré-moderna. O autor se aproxima da antropologia, como uma dimensão fundamental para o entendimento do comportamento dos indivíduos e da coletividade no passado. Destarte, faz uma história etnográfica, buscando os símbolos e os rituais compartilhados pelos trabalhadores naquela época. Assim, o mundo do trabalho é mais do que luta de classes, ele comporta valores morais que devem ser analisados pelo historiador.

Sua relação com a antropologia deve-se também à sua aproximação com Clifford Geertz, em Princeton, na década de 1970. Este último considerava a cultura como um texto cujo significado deve ser decifrado pelo antropólogo. Darnton aplica esse pressuposto ao passado. Através dos documentos, que são os textos do historiador, ele tem de decifrá-los para chegar ao seu contexto, ao idioma geral daquela sociedade no passado.

Seria um anacronismo ver os homens do passado como nós vemos os homens do presente, como sua simples atualização. Temos de penetrar em sua estranheza para tentar entendê-los. Por isto, o autor selecionou episódios incomuns, que provocam choques culturais com nossos valores hoje. Mostra, por exemplo, como contos do folclore infantil da Europa – o gato de botas, o chapeuzinho vermelho – tinham versões violentas e aterrorizantes entre os camponeses do século XVIII na França. Essas versões, que para nós causam horror, para eles era considerada "normal" à época e, por isso, cabe ao historiador entender aquele, por assim dizer, padrão de normalidade.

O grande massacre dos gatos, traduzido e publicado no Brasil em meados anos 1980, trata de um acontecimento ocorrido numa tipografia francesa na década de 1730, narrado por um aprendiz da oficina para seus colegas décadas depois. O episódio consistiu numa espécie de revanche de dois aprendizes contra a exploração a que seu patrão e sua patroa, ambos burgueses, os submetiam. Situados na escala de poder mais baixa na tipografia, os aprendizes trabalhavam muito durante todo o dia, comiam uma comida horrenda, constituída de restos da cozinha, e não conseguiam dormir, pois à noite os gatos miavam intensamente.

A fim de se vingar de seus patrões, um dos aprendizes resolveu imitar o uivo dos gatos, impedindo o sono do casal burguês. Estes solicitaram aos aprendizes que dispersassem os gatos da região. Atendendo ao pedido, os aprendizes matam o gato da patroa, levando-a ao desespero. Depois de matar, torturar e incinerar vários gatos, os aprendizes representaram para os demais tipógrafos da região um tribunal burlesco de inquisição dos gatos. O ambiente de hilaridade e zombaria produz de início um certo estranhamento, entre os leitores contemporâneos: por que tanta violência? Por que tanta aversão aos gatos? Por que tamanha crueldade?

A resposta imediata seria a da vingança de classe dos aprendizes explorados, contra o símbolo maior dos afetos da patroa, a destruição de seu valor maior, a gata de estimação. Se essa resposta inicial pode ser satisfatória a um historiador do trabalho, para um historiador da cultura, não. Não se trata de fazer como os luddistas da Revolução Industrial, destruir as máquinas como forma primária de expressar uma aversão de classes. Aquele episódio aparentemente bárbaro, culturalmente chocante, contém um mistério que o historiador deve desvendar. E ele só o fará tentando compreender o simbolismo daquele ato.

Nesse sentido, Darnton recorre ao folclore e aos estudiosos da cultura popular. Recolhe relatos que evidenciam todo um imaginário medieval que atribuía aos gatos um significado misterioso, satânico e sobrenatural na Europa. As lendas associavam esse animal aos rituais de feitiçaria e muitos eram considerados encarnações de bruxas.

Por isso, entre os camponeses, durante o calendário carnavalesco e religioso, era permitida a violência contra os gatos, arrancando seus pelos, quebrando e fraturando suas patas, jogando-o à fogueira sem piedade. Neste calendário, dramatizavam-se tribunais que levavam os gatos à fogueira, como nas guerras de religião da reforma e da contrarreforma.

Danton se ampara nas lições de Mikhail Bakhtin sobre a cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O carnaval era um ciclo do ano em que era permitida a inversão da ordem e dos papéis sociais. Assim, tratava-se de um rito ao mesmo tempo festivo e violento. O riso popular era ameaçador contra o mundo estabelecido e é esse mesmo riso que Darnton detecta entre os trabalhadores de Paris no século XVIII. O gato tinha também uma conotação sexual na Europa, associada à condição feminina. 

O episódio é assim algo mais do que uma história bizarra. É um acontecimento revelador de uma cultura muito antiga, que remonta às fontes da cultura popular.

Com seu livro, Darnton desconstrói a visão até certo ponto idealizada de Marx sobre o período pré-industrial na Europa, mostrando os conflitos dentro das corporações de ofício e como a harmonia entre artesão e mestres deve ser relativizada. No texto, isto aparece com a volatilidade e a instabilidade do trabalho, com patrões demitindo empregados, ou estes simplesmente fugindo.

Num diálogo hipotético com Norbert Elias, pode-se lembrar a tolerância e o grau de aceitação da violência física e do emprego da força bruta contra homens e animais. A história do processo civilizador na Europa moderna é a história dessa introjeção individual do repúdio à violência e da transferência da força física para o Estado absoluto e do Estado-nacional, com a profissionalização dos soldados, como também defende Weber. Destarte, observa-se a paulatina repugnância ao sangue, quando da caça à raposa como diversão entre as classes proprietárias rurais na Inglaterra.

A interlocução mais evidente talvez seja com Carlo Ginzburg: aquilo que é excêntrico e incomum pode ser revelador de uma cultura. Mesmo procedimento de decifração da cultura popular na Europa pré-moderna, uma vez que ela não está em oposição à cultura erudita. Como mostra a ideia da circularidade cultural, transita-se entre o alto e o baixo. No caso de Ginzburg, teve-se acesso ao inquérito de um camponês letrado, que defendeu uma concepção religiosa distinta da autorizada pela Igreja, graças ao modo inusitado como lia os textos. Esta forma peculiar de interpretação será desvendada por Ginzburg como fruto das fontes antigas da cultura oral camponesa que ele compartilhava.

Já o incomum em Darnton são os textos relatados por essa classe especial de trabalhadores artesanais, os tipógrafos, que sabiam, por contingências do ofício, ler. A autobiografia de um deles é o texto de onde parte Darnton para penetrar numa cultura estranha e distante, buscando nos elementos da antropologia – o ritual e o simbolismo com gatos na cultura popular – para decifrar comportamentos de uma época e a forma peculiar de expressão de uma revolta de classe.

Texto de Bernardo Buarque de Hollanda publicado em UOL pelo GV Cult- Criatividade & Cultura.  Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

No comments:

Post a Comment

Thanks for your comments...