4.02.2011

CARNE NÃO DÁ LUCRO : A MALDIÇÃO DA MATANÇA

Parte I - A Maldição da Matança

Ninguém ganha dinheiro abatendo boi e vendendo carne, a diferença entre o preço de venda da carne e o custo da arroba para o matadouro é muito pequena, quando não é negativa. Quem acumulou algum capital nesse negócio, dele saiu logo para viver das fazendas que comprou antes de perder tudo que ganhou. Como os espanhóis que dizem não acreditar em bruxas, apesar de elas existirem, eu não acredito na "maldição da matança", que ouvi contar quando era menino e freqüentava o matadouro municipal da cidadezinha onde nasci. A cada açougueiro que adoecia, ou  perdia os bens juntados ao longo da vida, os demais diziam que era a "maldição", por ter o indivíduo em causa tirado a vida de muitos animais, sem compaixão.
Lembro-me bem de um negro forte, estranhamente chamado de Louro Preto, que vez por outra bebia de dia um gole de sangue de boi ainda quente, para rebater os efeitos da cachaça da noite anterior. Quando começou a definhar diminuiu até de tamanho, foi ficando miudinho que dava dó, até que morreu. Lembro-me, ainda, de outro que não se via beber nada além de água, mas que caiu em depressão e acabou atirando-se aos trilhos na passagem do trem da antiga Cia. Paulista de Estrada de Ferro, a mesma que transportava carne da Cia. Anglo, de Barretos ao Porto de Santos. Foi um horror, deixou três ou quatro filhos numa situação complicada. A "maldição" era sempre lembrada nessas situações tristes. E há histórias, que por serem ainda muito recentes é preferível não mencionar.
Não sei se a lenda da maldição surgiu aqui mesmo, no Brasil, ou vem de povos mais antigos, mas que fez vítimas fora daqui é comprovado. E já que o Frigorífico Anglo foi mencionado, não é  demais lembrar a saga da família Vestey, que em 1920 adquiriu a indústria de carnes de Barretos enorme para a época - do conselheiro Antonio Prado. Ela teve passagens homéricas na ascensão, desde os históricos matadouros de Chicago, de onde dois irmãos Vestey começaram a exportar para a Inglaterra, a títulos de nobreza e laços de amizade com a família real, frotas de navios cargueiros, fazendas e frigoríficos no Brasil, Venezuela e Nova Zelândia. E teve seus momentos dramáticos, de queda do império, com acusações por sonegação de impostos e acidentes como o que deixou paralítico Mark, irmão mais novo do "barão da carne" Lord Sam Vestey, numa caçada a cavalo, em 1984.
Há ainda o caso das "big four" (Swift, Armour, Wilson e Cudahy) que, nas primeiras décadas do século 20, chegaram a controlar 50% do mercado do boi e da carne nos EUA. Nenhuma restou, foram substituídas por Tyson Foods, Excel/Cargill, National e a mais recente, e hoje maior do mundo, a multinacional JBS Friboi.
Contudo, se a lenda surgiu no Brasil, imagino que tenha sido no Sul, onde há registros de que os empregados das charqueadas eram instigados a trabalhar num ritmo tão forte, e   apressadamente, que derrubavam bois e vacas cortando-lhes os tendões das patas traseiras com facas fixadas na ponta de uma vara, e começando a esfola antes mesmo de tê-los sangrado, ou seja, os animais eram cortados ainda vivos.
O escritor gaúcho Pedro Wayne, em livro de 1937, narra a história de um bancário, que perseguido por motivos políticos perdeu o emprego e foi trabalhar numa dessas charqueadas de onde observava o sofrimento dos bovinos ali cruelmente abatidos, e dos trabalhadores que viviam num regime de escravidão por dívidas. Maldição da matança?
Na parte II, veremos a tão falada "economia de escala" nos frigoríficos, a dependência de certos mercados de exportação, as idéias fixas que são fruto de planilhas de cálculo e não de conhecimentos técnicos e sociológicos.

Parte II - Não deveríamos copiar o modelo americano

Na primeira parte falei da "maldição da matança", por estar irritado como todo mundo do ramo deve estar com os acontecimentos recentes.
Pode ser que a "maldição" seja de outra natureza, que o leitor irá concluir por si mesmo ao final do artigo.
Voltando ao tema inicial, quem pensa que a matança de gado dá lucro é porque não fez as contas ou errou na planilha. Sei disso porque, em algum momento da vida, tive que aprender a fazer as contas para encontrar, partindo do preço de venda da carne com osso, quanto a empresa poderia pagar pela arroba do boi.
A conclusão a que sempre chegava é de que não dava para comprar. Mas se o frigorífico não comprar boi, então ele faz o quê? É preciso comprar e fazer a mágica de obter uma receita maior do que a despesa via aumento da eficiência no abate, especialmente na economia de mão de obra, energia e outros insumos, e de uma excelente capacidade para vender bem.
Surge disso a chamada economia de escala, ou seja, se a rentabilidade por boi abatido é muito baixa, então, é preciso aumentar o volume de gado, até mesmo extrapolando a capacidade horária de matança e refrigeração e o número de horas trabalhadas. E, de novo, vender muito bem, principalmente exportar para a Europa. Bem, se a empresa abate muito gado ganhando pouco por unidade, o que acontece se ela passa a perder um tanto por cabeça? Obviamente, ela perderá muito mais do que perdia antes, não é?
Quanto à comercialização, é bom por as barbas de molho, porque se já é difícil vender para supermercados em tempos de prosperidade, imagine-se o que acontece numa recessão. E se os países importadores encontrarem algo tecnicamente errado e decidirem com isso justificar um protecionismo escancarado? E o filé mignon a 13,90 reais no supermercado? E tudo isso acontecendo em anos de escassez de gado para abate, porque se abateu muito em anos anteriores, de grande procura. O que fazer?
O problema é que qualquer indivíduo que conheça o setor e tenha um mínimo de bom senso, agindo como observador antevia que tudo isso poderia acontecer em algum momento. Mas, agindo como executivo de empresa, talvez não tivesse alternativa se não apoiar a expansão desenfreada, e foi o que aconteceu nas principais empresas do setor, pois havia financiamento a custo baixo ou investimento, ou ambos.
Sei que isto pode ser a super simplificação de um problema muito mais complexo e, obviamente, não entendo de economia, mas também não me sinto mal por isso. Se até mesmo alguns bancos e empresas que podem pagar os mais caros economistas do mundo estão quebrando, quem precisa ser entendido na ciência que explica, no futuro, o que deu errado no passado?
Quando eu ouvia alguém dizer que este ou aquele país compraria toda a carne que fosse produzida, eu sempre pensava, mas até quando comprará? E o dia que não comprar mais? Já havia acontecido antes com a carne suína exportada para a Rússia e com a própria carne bovina para o Chile.
Outro aspecto que sempre me preocupa é a questão social. Fico indignado quando me dizem que estão construindo frigoríficos para dois ou três mil bois, a tal economia de escala. Sempre penso em quantas famílias irão viver nas vizinhanças dessa indústria atraídas pela oferta de empregos. Mas, e quando ela tiver que ser paralisada, seja por uma recessão, seja porque a oferta de gado na região já não é suficiente, quem vai lidar com o problema social desse desemprego, com a falta de comida, falta de assistência médico-hospitalar, falta de material escolar para as crianças, e tantos outros problemas que nem é preciso mencionar.
Vão dizer que é assim mesmo, que isto acontece em outros setores, da indústria automobilística à que constrói aviões. Mas eu digo que não precisa ser assim, que não temos que copiar os  frigoríficos americanos ou as fábricas de automóveis, porque a mão de obra de frigorífico tem características muito peculiares, é um pessoal de baixa empregabilidade em outros setores, um pessoal de poucas letras.
E não precisa ser assim, também, porque uma unidade frigorífica deve ser pequena, 800 a 1200 bois/dia (há quem se espante com tal sugestão), leve no sentido de que possa ser desmontada e transferida para outro local onde haja maior oferta de matéria prima, ou seja, mais gado e mão de obra abundante Quem estuda um pouco da história dos matadouros (de Chicago e São Paulo, por exemplo, na primeira metade do século 20), de onde eles já estiveram e para onde foram, sabe que uma indústria dessas não é feita para ser eterna. Quantos matadouros nós conhecemos que, com o passar do tempo, ficaram cercados por loteamentos, avenidas, comércio?
Por que copiar os Estados Unidos com a sua concentração de confinamentos e seus matadouros para milhares de bovinos? Do meu ponto de vista, isto é copiar o que está errado, que deu certo por um tempo, mas não tem sustentabilidade, seja nas questões do meio ambiente, seja da mão de obra, e até na controvertida questão da contaminação da carne.
Este modelo está baseado numa política de produção de milho a preços baixos que não vem ao caso agora, mas que é intensiva na utilização de insumos agrícolas, e tem sido muito criticada em termos de sustentabilidade.
Será que podemos ser diferentes, que podemos criar uma legislação que nos dê um diferencial num mundo que sente, agora, como nunca, a premência de produzir alimentos do modo mais natural possível?
Para dar apenas alguns exemplos, por que não limitar a capacidade de um matadouro, ou de um confinamento de gado? Por que não impor limites ao grau de concentração das empresas do setor e proíbi-las de possuírem gado em quantidades tais que possam prejudicar a liberdade concorrencial que deveria vigorar na comercialização dessa matéria prima? O que nos impede de normatizar um setor que está carente de regulação? O que estimula o nosso banco de  desenvolvimento, que deveria ser social, a financiar a concentração da indústria da carne em tão poucas empresas?
Fico muito irritado quando ouço coisas do tipo: "Ah! Este projeto tem ser implantado assim porque foi feito um cálculo de viabilidade econômica que apontou que ele só será viável...", por exemplo, "se a empresa tiver 150 mil cabeças no confinamento para evitar que falte gado na entressafra", ou então, "se tiver uma capacidade de abate de 250 cabeças/hora". Minha vontade é dizer parem com isso, joguem fora esse projeto, convoquem algumas pessoas experientes no ramo de atividades, gente que conheça um pouco de história, geografia, ecologia, e sociologia para uma reunião, e vamos começar do zero. Não aceito que me venham com soluções de planilha de computador.
Para finaliza, nós estamos carentes de diretrizes, de linhas de ação. Ninguém ousa discordar daquilo que está crescendo e se multiplicando, dando lucros, por isso algum dia a casa cairá. É só ver o que está acontecendo com o sistema financeiro mundial.
Carne não dá lucro para os matadouros; negociações sólidas é que são lucrativas em qualquer setor econômico; matar boi é coisa para, onde possível, ser terceirizada. Os empreendimentos devem ser sustentáveis, ambiental e socialmente corretos, devem crescer devagar e não  depender de bancos jamais.

Por Pedro Eduardo de Felício (Professor titular da FEA-UNICAMP). Adaptado para ser postado por Leopoldo Costa.

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