4.11.2011

O CAMINHO TRILHADO PELA CARNE

Saborosa, macia, suculenta. A carne, com seu valor nutritivo e degustativo, tornou-se um alimento de importante presença no cardápio do brasileiro. Entretanto, poucos consumidores sabem ao certo o caminho que a carne percorreu para chegar ao seu prato e muito menos os cuidados e vigilâncias exigidos a cada elo da cadeia. Ele não sabe do trabalho exaustivo que o pecuarista precisou ter com o animal em relação a alimentação, pastagens, medicamentos, água, sal, entre outros itens; da mesma forma que também ignora o quanto o frigorífico precisou se policiar quanto às medidas corretas para abater e desossar um boi, tomando os devidos cuidados para a minimização do estresse do animal, e, por fim, não sabe exatamente como o açougueiro se policiou com o corte, a apresentação e a qualidade da carne.
Todos esses cuidados são tomados para garantir ao consumidor um produto saudável, seguro e, sobretudo, saboroso, no entanto, poucos sabem disso. Até mesmo os próprios elos da cadeia produtiva de carnes não conhecem e nem reconhecem o trabalho, as responsabilidades e os problemas enfrentados pelo profissional responsável a cada fase do boi - genética, cria, recria, engorda, abate, desossa, transporte e comercialização da carne. Em cada fase, um cuidado. Em cada elo, uma responsabilidade. Processos que poucos sabem, mas é chegada a hora de se conscientizar.
Embora ainda exista deficiência de informações quanto ao desempenho da bovinocultura de corte brasileira, sua grande importância para o agronegócio do País é incontestável. Atualmente, o Brasil possui, e ainda com condições potenciais de aumento altamente significativo, o maior rebanho bovino comercial de corte do mundo e uma área de 180 milhões de hectares ocupada por pastagens, sendo a maior parte na faixa tropical. Desta forma, a bovinocultura responde por cerca de 47% do volume total da produção brasileira de carne, e se desenvolve em quase todos os municípios nacionais, embora sob diferentes sistemas de produção e com grande variabilidade nos níveis de produtividade.

Como essa área é aproveitada? 

Apesar de sua vasta área de pastagem, a pecuária de corte brasileira ainda possui um fraco desempenho, produzindo pouco por rebanho e por área de pastagens. Segundo os estudos feitos em 1998 pelo médico-veterinário Dr. Vasco Picchi, estima-se que mais de 60% das propriedades não conseguem produzir além de 50 a 70 quilos de peso vivo/hectare/ano, quando deveriam produzir dez vezes mais. "O manejo inadequado e, sobretudo, a defesa sanitária deficiente são os responsáveis pela baixa produtiva", afirma Picchi, e complementa: "esses fatores, de certo modo, passaram despercebidos enquanto o País conviveu com uma inflação alta, durante na qual a moeda do pecuarista era o boi. A partir da estabilização da moeda e da abertura das importações, o segmento é envolvido por uma crise sem precedentes, a qual a maior parte dos pecuaristas, divorciados da tecnologia, dificilmente conseguirão superar e deixarão a atividade". Embora a maior parte do rebanho bovino brasileiro concentre-se nas mãos de produtores sem disposição para investir em pastagens, e detentores de rebanhos de baixa qualidade genética, a pecuária de corte do País deu um grande salto nesses dois anos em relação à precocidade do animal para o abate. Nos últimos anos, alguns pecuaristas do Rio Grande do Sul, empenhados em melhorar a qualidade da pecuária de corte daquele Estado, vêm promovendo cruzamentos industriais das raças européias como Angus, Hereford, Simental e outras com o Nelore, na expectativa de conseguir animais mais precoces, com bom rendimento de carcaça. A Nelore é uma raça zebuína que se destacou nas últimas décadas por sua adaptação ao clima tropical, com aptidões fisiológicas e anatômicas capazes de transformar alimentos fibrosos de baixo valor nutritivo em carne. Nos Estados do Mato Grosso do Sul e Goiás, os melhores resultados têm sido com os cruzamentos da raça Nelore com Limousin e Chianina Charolês. Os produtos desses cruzamentos, quando criados em pastagens de boa qualidade, com suplementação mineral suficiente, ou em regime de semi confinamento, têm sido abatidos com um peso vivo acima de 450 quilos, e idade entre 18 e 24 meses. Isso significa uma carne mais macia e saborosa no prato do consumidor, afinal, é ele que exerce influência sobre os demais componentes da cadeia.
A nutrição animal e o manejo estão intriscicamente ligados à qualidade da pastagem na qual se encontra o boi, e ela é a principal fonte de alimentação do rebanho. A contaminação por pragas e a degradação das pastagens são comuns, logo são necessárias suplementações alimentares, as quais nem sempre são realizadas ou são feitas de forma inadequada. O manejo dos bovinos nas propriedades também não obedece a critérios adequados de alimentação, o que afeta diretamente o nível de produtividade do rebanho. Por exemplo, o manejo reprodutivo utiliza-se freqüentemente da estação de monta natural, que ocorre entre os meses de setembro e janeiro, no entanto, o final da gestação, o parto e o início da lactação, fases em que as necessidades nutricionais do animal aumentam, ocorrem em períodos de baixa disponibilidade e qualidade das pastagens.
Outro problema enfrentado na pecuária de corte brasileira é em relação a enfermidades como a cisticercose (maior responsável pela condenação de carcaças nos frigoríficos), toxoplasmose, mosca-de-chifre, carrapato, babesiose, anaplasmose, brucelose, raiva, febre aftosa e outras. Esses e outros fatores têm contribuído negativamente para que o ciclo da pecuária, que poderia ser de quatro a cinco anos, seja mantido em torno dos sete anos. "Assim, torna-se cada vez mais evidente a importância do desenvolvimento da pesquisa nesse setor, conduzida, em princípio pelos organismos governamentais em parceria com as universidades e institutos de pesquisa, dispensando o pecuarista na busca de soluções para o melhoramento de seu rebanhos, seja através de novos cruzamentos ou do aperfeiçoamento daqueles existentes, além de incrementar outros tipos de pastagens que melhor se adaptem às nossas condições climáticas", argumenta Picchi. Pois, como diz Sylvio Lazzarini, "a carne bovina tropical produzida a pasto, com alta produtividade e precocidade, é imbatível, tanto no que diz respeito à preferência dos consumidores (maciez e baixo teor de gordura), quanto no que se refere aos custos de produção bem menores".


A indústria da carne bovina 

Vinte e quatro horas de jejum são necessárias para realizar o abate. Chuveiros instalados nos cercados lavam o animal e um veterinário verifica se há alguma anormalidade visível. Uma rampa de acesso leva o gado à sala de matança e mais uma vez ele recebe uma ducha para reduzir o estresse e conseguir uma contração dos vasos sangüíneos. Para a higienização dos funcionários e sanitização do local, todos usam roupas brancas, botas, protetor de cabelos e capacete. Os animais caminham por um corredor e são atordoados com uma pistola de ar comprimido. Suspenso pela pata traseira esquerda e, logo em seguida, pela direita, o boi é abatido, retirado o seu couro, separados os subprodutos (orelha, focinho, vísceras), serrado o peito, centrifugado o sangue, retirada e lavada a cabeça, bem como as carcaças e as vísceras, as quais recebem o mesmo número para seguirem para a linha de produção. Aprovadas para consumo, as carcaças seguem para a pesagem. Em seguida, são lavadas e ficam em uma câmara refrigerada à temperatura de 2 a 7 graus durante 24 horas, para depois seguirem em caminhões isotérmicos para os pontos de vendas. Tudo aprovado e controlado pelo Serviço de Inspeção.
Nessa pequena sinopse, pode ser percebida a importância do trabalho e da tecnologia utilizada nos matadouros-frigoríficos. De alto custo, esses estabelecimentos são instalados com sala de matança mecanizada, dependências para desossa e preparação de cortes comerciais, frio industrial compatível, sempre com instalações para o processamento dos subprodutos do abate e, eventualmente, com alguma forma de industrialização de produtos comestíveis. A indústria da carne nacional, com a paralisação e a desativação de vários estabelecimentos de abate de melhor categoria técnica do País e o surgimento de outras unidades de menor padrão, perdeu muito em qualidade. Na verdade, essa queda de padrão vem se dando principalmente a partir de 1976, com a desativação do Programa de Federalização, quando o Serviço de Inspeção Federal viu perdida grande parte de seu prestígio e autoridade, o que se refletiu na queda do atendimento das exigências nos projetos de instalação de novos matadouros-frigoríficos.
Um avanço importante a ser salientado na maioria dos estabelecimentos abatedores de bovinos do País é a comercialização da carne desossada em grandes cortes para fornecimento de supermercados, açougues e cozinhas industriais, esperando que essa medida passe a predominar em atendimento à Portaria 304. Metas e objetivos foram alcançados nessa última década dentro desse segmento. No entanto, conforme mostram os estudos realizados pelo Dr. Vasco Picchi, a indústria de abate de bovinos é considerada uma atividade de limitada rentabilidade no balanço custo-benefício. "A situação deficitária do balanço industrial é ainda agravada pela concorrência absolutamente desigual do abate fora da área de controle federal, ou seja, abate de controle estadual, municipal e clandestino. Essa desigualdade de concorrência decorre dos seus baixíssimos custos operacionais, da escassez ou da ausência das condenações e ônus sanitário e da sonegação fiscal. Tudo isso em razão da falta de um controle oficial válido e efetivo dos estados e municípios nos estabelecimentos de abate sob sua responsabilidade e, finalmente, de forma decisiva, do nivelamento no varejo, do preço da carne independente de sua origem" explica o médico-veterinário.

O produto para o consumidor 

Caracterizado como uma vitrine na qual os produtos cárneos são expostos ao consumidor, a eficiência do varejo está em valorizar ou não o produto apresentado, assim como o seu sucesso no mercado. O sistema de comercialização da carne para o varejo é predominantemente o da venda em quartos com osso para serem desossados e porcionados. Com isso, a preferência do consumidor pelos principais cortes comercializados no mercado varejista depende do atendimento no local de compra, da variedade, da embalagem e do preço. Já nos cortes especiais, o consumidor procura qualidade e sofisticação, não se importando em pagar preços mais elevados.
Conforme afirma no Boletim técnico no. 42, de Prospecção de Demandas Tecnológicas na Cadeia Produtiva de Carne Bovina no Estado de São Paulo, "a carne bovina detém a preferência do consumo sobre as demais proteínas animais, porém vem sofrendo maior concorrência dessas outras proteínas, atualmente mais baratas, especialmente da carne de frango e ovos. A maior concorrência torna o quesito "qualidade" ainda mais importante atualmente. Está ocorrendo uma mudança nos hábitos alimentares da população, a qual tem implicação direta nos diferentes segmentos de cada cadeia produtiva, que precisam se mobilizar para atender as novas exigências".
O alerta serve para mostrar que a proposta moderna não é mais a empresa ofertar um produto e esperar que o mercado o consuma sem muita alternativa. Isso era possível nos mercados regionalizados, mas é atualmente insustentável com a globalização da economia. Lamentavelmente, ainda hoje, fazem-se cruzamentos na pecuária, produzindo novilhos precoces sem perguntar nada ao consumidor.
A indústria frigorífica de grande porte briga pela exclusividade da desossa, sem ter feito nenhuma pesquisa junto ao consumidor para saber quais os cortes e de que maneira este os prefere. Quanto ao comércio varejista, o Brasil tem alguns açougues e supermercados tecnicamente bem preparados, mas sem nenhuma informação sistematizada a ser oferecida ao consumidor.
A preferência do açougueiro é pela compra de quartos com osso, de peso mais elevado, correspondente a carcaças da faixa de 16 a 18 arrobas. Essa é a condição normal do mercado. A razão fundamental é que nessa faixa de peso obtém-se, na desossa, melhor rendimento em carne, porque a relação carne/osso/gordura é favorável ao percentual de carne, o que não ocorre com os quartos mais leves. Além disso, nessa faixa de 16 a 18 arrobas, as gorduras de cobertura e intramuscular (marbling) dos animais criados a pasto se mantém dentro dos níveis de preferência do consumidor.
Finalmente, é importante ressaltar o papel desempenhado pelos açougues na sustentação da Portaria 304, pelo fato de ser o elo final da cadeia produtiva e aquele que mantém contato direto com o consumidor. "O ideal no cumprimento da Portaria 304 seria que toda a carne viesse dos abatedouros e das centrais de desossa já preparada para a comercialização direta no varejo", conclui Dr. Vasco Picchi.

Publicado na 'Revista do Açougueiro & Frigorífico', ano VI, n° 61, agosto de 2000, adaptado e editado para postagem por Leopoldo Costa

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