4.11.2011

PROPRIEDADES DA CARNE FRESCA




I. Introdução


Podemos entender como carne fresca todo tecido muscular que tenha sofrido mudanças químicas e físicas após o abate, mas que não tenha sido processada por congelamento, cura, defumação, cozimento etc. As propriedades da carne fresca determinam sua utilidade para comercialização, sua aparência para o consumidor e sua adaptabilidade para processamentos industriais futuros. Dentre as características mais importantes destacam-se a capacidade de retenção de água (W.H.C), cor, firmeza, textura e estrutura.

II. Capacidade de retenção de água (Water Hold Capacity)

Definida como a capacidade da carne reter sua água durante aplicação de forças externas tais como corte, aquecimento, moagem ou pressão. Muitas das propriedades da carne fresca e da carne cozida são parcialmente dependentes da W.H.C. Quando o tecido muscular apresenta baixa retenção de água a perda de umidade e conseqüente perda de peso durante a estocagem é maior. Essa perda de água ocorre pelas superfícies musculares expostas de carcaças ou cortes. Durante o processamento, a perda de peso ocorre principalmente por evaporação, o que é muito desinteressante pois a relação proteína: água é importante para palatabilidade e rendimento industrial adequado de produtos processados.

1. Bases químicas da W.H.C.

Devido a distribuição de seus elétrons, as moléculas de água não são eletricamente neutras, e sim, apresentam regiões eletricamente positivas (H+) e outras eletricamente negativas (O-2), sendo assim polar. Desse modo, ela associa-se com grupos reativos eletricamente carregados das proteínas musculares. De acordo com o grau de interação com os componentes cárneos, podemos classificar a água da carne em:
• Água de ligação (4-5%):
• Se prende firmemente aos tecidos da carne; permanece fortemente ligada mesmo durante aplicação de severas forças mecânicas ou físicas; incapaz de atuar como solvente, não se congelando a -20 graus Celsius.
• Água de imobilização (8-10%):
• É atraída nas camadas posteriores à camada de água de ligação; com aumento da distância do grupo reativo das proteínas torna-se sucessivamente mais fraca; é removida por processos de desidratação.
• Água livre:
• Mais fracamente ligada, segura apenas pela força de superfície, mantendo-se presa por forças capilares; sua orientação molecular independe do número de cargas reativas; constitui-se meio onde se processam as reações bioquímicas, permitindo o desenvolvimento de microrganismos sendo facilmente removível da carne.

3. Fatores que influenciam a capacidade de retenção de água:

Vários fatores influenciam o número de grupos reativos de proteínas musculares e sua disponibilidade para ligar e reter água. Estes fatores estão relacionados a reações post-mortem como produção de ácido lático (PSE e DFD) queda do ATP, rigor mortis, alterações da estrutura celular associadas a atividade de enzimas proteolíticas. Dentre esses fatores faremos uma abordagem sobre carnes PSE e DFD.

P.S.E

Condição observada em suínos sendo um dos maiores problemas da indústria suína mundial. É prevalente em leitões afetados pela Síndrome do Stress Suíno, podendo afetar também aqueles normais. A massa muscular apresenta-se macia (mole), sem firmeza, com superfície úmida aumentando a reflectância superficial da luz, conferindo característica brilhante, daí a sigla PSE (Pale, Soft, Exsudative). Quando cozida a carne PSE é seca e pouco palatável. Sua utilidade para a indústria de processamento é reduzida por sua pobre WHC.

Animais que geram carne PSE apresentam taxa anormalmente alta de glicólise anaeróbia imediatamente após o abate. A rápida ocorrência de reações bioquímicas produz calor tão velozmente que temperatura, imediatamente após o abate, pode exceder níveis fisiológicos. A elevada taxa glicolítica, que proporciona queda brusca no pH, combinada à alta temperatura são suficientes para desnaturar algumas proteínas musculares. Dessa forma, a habilidade das proteínas musculares reterem água está comprometida, e a conseqüente perda de líquido (exsudação) dá uma aparência úmida à superfície dos cortes.

D.F.D.

A condição seca, firme e escura (Dry, Firm, Dark) é um defeito de qualidade cárnea observada em bovinos e suínos. A superfície da carne aparece seca e o pH está elevado. Essa situação é observada em carnes de animais que tenham sido expostos a longos períodos de stress no pré abate. Em resposta, esses animais utilizarão significante parcela de sua reserva de glicogênio muscular. Quando o abate ocorre o pool glicogênico (substancialmente utilizado durante o stress) possui menos glicose disponível para a glicólise, e a extensão do metabolismo anaeróbio é reduzida. Há menor formação de H+ e lactato, e o pH final obtido na carne é acima do normal. A carne com pH final mais elevado possui maior capacidade de retenção de água, sendo de grande valor para a indústria processadora, porém, por sua aparência firme, escura e superfície seca é de baixa aceitação pelo consumidor.

III. Cor

A cor é resultado da combinação de vários fatores. Uma cor específica tem três atributos conhecidos: 
a) Comprimento de onda;
b) Intensidade;
c) Brilho ou reflectância.

A cor vermelha da carne é devido à presença de uma heme-proteína, a mioglobina. Algum sangue residual pode estar presente na carne, mas é mínima e de pouca prática sua consideração na coloração da carne. Em um músculo bem sangrado, 80-90% do total de pigmentos é constituído pela mioglobina, podendo estar presentes outros pigmentos como hemoglobina, catalase e citocromo oxidase.

O grau de pigmentação da carne está diretamente relacionado ao conteúdo de mioglobina. A concentração de mioglobima de um dado músculo varia de acordo com a espécie ou idade e é dependente da distribuição da fibra (mais presente na fibra vermelha em relação à branca). A quantidade de mioglobina varia também em função do sexo, músculo e atividade física.

A mioglobina consiste em uma porção de proteína globular (globina) e um grupo próstetico, o anel heme. O anel heme é uma estrutura química plana, onde o átomo de ferro está localizado centralmente, e possui seis sítios de ligação para compostos químicos. Um desses locais de ligação está disponível para ligar-se a vários grupos químicos. O grupo químico ligado a este sítio e o estado de oxidação do ferro são os fatores mais importantes na determinação da cor da carne.
O estado de oxidação ferro determina qual molécula se ligará ao sexto sítio do ferro. Quando o ferro está no estado ferroso (Fe+2), sem a presença de um composto ligado ou ligado à água nos referimos à deoximioglobina. Sua cor é vermelho púrpura e é característica de carne fresca embalada à vácuo ou do interior da massa muscular recém cortada.

Mioglobina ferrosa, quando exposta ao ar, ligar-se-á ao oxigênio no sexto sítio de ligação do ferro originando a oximioglobina. Cabe ressaltar que ocorre uma oxigenação do anel heme, e não uma oxidação do ferro, que continua em seu estado reduzido. A oximioglobina confere a cor vermelho cereja desejável na carne.

Após corte, moagem ou exposição ao ar, se baixas concentrações de O2 estiverem presentes, como em embalagens parcialmente vacuolizadas ou embalagens semi-permeáveis, o ferro irá oxidar-se (Fe+2 Fe+3) originando a metamioglobina, que apresenta uma molécula de água na sexta posição. A carne apresentará coloração amarronzada, associada pelos consumidores a carnes estocadas por longos períodos.

O aparecimento de sulfametamioglobina, de cor esverdeada, é o resultado da ligação de enxofre, oriundo do crescimento bacteriano, em contato com mioglobina.

De forma indireta, a cor determina a vida de prateleira da carne, uma vez que aquelas que desviam da cor ideal (vermelho cereja) são discriminadas e tendem a acumular-se no balcão. A aplicação de antioxidantes podem estender o tempo de vida da cor desejável.

IV. Estrutura, Firmeza e Textura

As propriedades físicas da carne como estrutura, firmeza e textura são difíceis de avaliar objetivamente. Estes fatores são geralmente avaliados por análise sensorial (visual, tátil e degustativa). Vários fatores como estado de rigor associado às propriedades de WHC, gordura intramuscular, teor de tecido conjuntivo e comprimento de feixes intramusculares, contribuem para estas propriedades.


1. Estado de rigor.


Durante o resfriamento das carcaça há um evidente e progressivo desenvolvimento da rigidez. Este aumento ocorre a partir da perda de extensibilidade que acompanha o rigor mortis e a solidificação da gordura dentro e ao redor do músculo.

Durante a estocagem algumas alterações podem ocorrer resultando em melhoria da palatabilidade e maciez, estando associado ao processo de maturação da carne, já tratado em edições anteriores.

1.1. “Cold Shortening”: Encurtamento pelo frio.

É um fenômeno que ocorre no pré-rigor e resulta em carne menos tenra. Acredita-se que o resfriamento rápido da carcaça compromete a capacidade de algumas organelas sarcoplasmáticas reterem cálcio. Esse é então liberado no sarcoplasma de maneira descontrolada, e na presença de ATP permite ocorrer uma forte contração. A atividade contrátil resulta no encurtamento das fibras, correspondendo à redução na maciez da carne.

1.2. “Thaw Shortening”: Encurtamento no descongelamento

Se uma carne é congelada antes do início do rigor e posteriormente descongelada, ela irá encurtar drasticamente e pode ficar extremamente dura. O processo de congelamento no pré-rigor cessa as reações metabólica anaeróbias que ocorrem no músculo, bem como pode danificar algumas organelas destruindo suas habilidades de regular a concentração de cálcio entre as miofibras. Durante o descongelamento, todos componentes necessários à contração muscular ainda estão presentes, mas o controle das reações foi perdido. O metabolismo anaeróbio ocorre a altas taxas com severa contração, reduzindo maciez e suculência da carne.

2. Gordura intramuscular

Contribuem para firmeza de carnes refrigeradas. À proporção de 3-7,3% de gordura intramuscular em cortes cárneos apresenta maior satisfação, à degustação, em relação à palatabilidade global da carne após cozimento.

Com aumento do conteúdo de gordura intramuscular, a percepção de suculência pelo homem aumenta. A percepção de suco proporcionada na boca pela mastigação ou entre a primeira mordida e a subseqüente estimulação da glândula salivar pela gordura influencia a percepção de suculência do produto. Adicionalmente, produtos cárneos com maior quantidade de tecido adiposo intramuscular sustentarão a percepção de suculência na cavidade oral.

A relação entre o conteúdo de gordura e a maciez da carne é difícil de ser definida e tem sido muito estudada para que evidências suficientes sejam expostas contra ou a favor de que a maciez da carne é influenciada pela gordura. A magnitude da influência de cada fator citado varia, dentre outros, com espécie, ambiente, genética.

3. Tecido conjuntivo

Influencia diretamente a maciez de músculos. Seu conteúdo nas carnes varia de músculo para músculo, conforme a função desempenhada pelo mesmo. Músculos mais exigidos apresentam maior dureza e textura áspera.Com aumento da idade aumentam as ligações cruzadas de colágeno e decresce a sua solubilidade, reduzindo a maciez. A degradação do colágeno aumentaria a maciez, especialmente se as pontes intermoleculares fossem quebradas. Porém, a proteólise do colágeno no post-mortem é mínima e as ligações cruzadas não são desfeitas.

V. Considerações Finais

É inegável a importância do conhecimento sobre as propriedades da carne fresca e os diversos mecanismos físico-químicos inerentes a elas. O entendimento dos diversos mecanismo das reações que determinam a qualidade final da carne é de suma relevância, pois permitem intervir em diversas etapas do processo de abate à industrialização da carne, da escolha de embalagens à exposição e comercialização de produtos, proporcionando a obtenção de produtos e ou matérias-primas de melhor qualidade, maximizando rendimentos industriais, mantendo ou melhorando a imagem de produtos / empresa perante seus clientes.

VI. Referências Bibliográficas

Muscle Foods: meat, poultry and seafood technology. Donald M. Kinsman, Anthony W. Kotula. Burdette C. Breidenstein. Chapman & Hall, New York, 1994.
Principles Of Meat Science: Harold B. Hedrick, Elton D. Aberle, John Forrest, Max Judge, Robert Merkel, 1993.
Ciência, Higiene e Tecnologia de Carne. Miguel Cione Pardi.

Por André Ceolin Dabés. Artigo digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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