Nossa Senhora do Desterro 1785 (duché de Farney) |
Sem dúvida, mesmo nos primórdios da ocupação do solo houve a exploração do trabalho escravo. Já com a bandeira de Dias Velho chegaram escravos à Ilha. Paulo José Miguel de Brito, descrevendo-a afirma que o povoador levara consigo "seus dous filhos José Pires Monteiro, duas filhas, cujos nomes se ignorão, e quinhentos indios domesticados, e além disso dous frades e hum homem casado por nome José Tinoco, sua mulher Ignacia da Costa, e hum filho pequeno chamado José, e duas filhas, huma Ignez da Costa, outra Domingas da Costa". Esse texto demonstra não só que desde os primeiros povoadores houve trabalho escravo em Santa Catarina, como que os primeiros escravos foram indígenas.
É importante chamar a atenção para a composição racial dessa bandeira porque não deveria diferir muito das demais que se deslocaram no século XVII para a costa catarinense, nem dos grupos de povoadores que foram ter posteriormente à Ilha. O índio foi o elemento humano com que o bandeirante contou no seu deslocamento para o sul.
Para compreender isto é preciso lembrar que "mesmo no começo do século XVIII, o índio ainda era o principal agente do trabalho escravo" em São Paulo, onde a população negra manteve-se reduzida até os fins do século XVII, bem como que o padrão de composição étnica das bandeiras de apresamento e de descoberta de metais pendia decisivamente para uma participação maior do escravo indígena. O escravo negro só se tornou agente regular de trabalho das minas. Ora, os bandeirantes vicentistas, e mais do que eles os grupos de paulistas que os sucederam, foram homens que se deslocaram para o sul porque, como já dissemos, não puderam competir vantajosamente com as "emboabas" na exploração mineradora, pela impossibilidade de dispôr de recursos suficientes para adquirir escravos negros na quantidade necessária àquela exploração. Compreende-se portanto a razão pela qual as bandeiras que foram para a costa catarinense levaram um contingente tão numeroso de escravos indígenas.
Isso não exclui, evidentemente, a ida de alguns negros com os paulistas para Santa Catarina naquela época. O próprio Dias Velho deixou na sua herança 25 escravos pretos, segundo se infere do inventário do povoador iniciado em São Paulo a 2-11-1689. Embora não haja referências precisas à localização destes escravos, é provável que ao menos parte deles tenha ficado em Santa Catarina, mesmo depois da morte desastrada de Dias Velho.
Os dados disponíveis sobre a Ilha no século XVII e nos começos do século XVIII são escassos e inseguros. Um ou outro viajante, alguma correspondência oficial e pouca coisa mais são dos documentos nos quais temos que nos firmar para tentar reconstruir a atividade e o desenvolvimento econômico da Ilha. Mas, não pode restar dúvidas quanto à participação do negro, se bem que reduzida, na vida de Santa Catarina desde o início da colonização. Nem teria sido possível, não fosse assim, que Frézier, relatando sua estada na Ilha em 1712 escrevesse: "Les Habitants Qui les occupent sont les Portugais, une partie d'Europeens fugitifs, et quelques Noirs; on y voit aussi des Indiens Qui et jettent volontairement parmi eux pour servir, ou qu'ils prennent en guerre". Mas, esse mesmo texto revela a importância do indígena no povoamento. Aliás, pelas indicações que a documentação disponível fornece, vê-se que até 1730 o desenvolvimento econômico da Ilha foi muito reduzido, não cabendo ao indígena um papel definido na estrutura de trabalho dos grupos que a habitavam.
É provável que a escravaria indígena, no início do povoamento, tenha desempenhado um papel importante no desbravamento da Ilha e sobretudo na sua defesa. Mas, pouco se pode adiantar quanto ao seu aproveitamento nas atividades de produção.
Essa restringia-se ao consumo e à troca eventual com um ou outro viajante. Frézier relata que na sua passagem por Santa Catarina o que mais interessou aos habitantes da Ilha foi a aguardente e retalhos de fazenda para se vestirem. Em contrapartida os ilhéus forneceram frutas, galinhas e fumo aos franceses, além da lenha para o navio e água. Carne de vaca, sí vinda de Laguna, especialmente para os viajantes. Esse relato evidencia que, de fato, a economia da Ilha era uma economia natural. Além disso, a descrição que Frézier faz do regime alimentar da população mostra que mesmo a coleta possuía grande importância nos hábitos e padrões de consumo.
Anteriormente à época em que Frézier esteve na Ilha, houve maior atividade econômica e então teria sido possível a utilização da mão-de-obra escrava. Pedro Taques afirma que Dias Velho, ao pedir a concessão de uma sesmaria que abrangia parte da Ilha, alegava possuir aí "fazenda de cultura" .
Depois da tragédia ocorrida com Dias Velho, entretanto, "o povoamento processava-se lenta e intermitentemente, e, só de longe em longe, buscavam pequenos grupos instalar-se nela (na Ilha) ou nas suas proximidades". Durante esse período, tudo indica que, se o papel do escravo indígena na atividade produtiva, por causa das próprias condições da produção econômica, deveria ser pequeno, o do negro provavelmente terá sido ainda menor.
O crescimento demográfico da Ilha nesse período, deveu-se a "sucessivos e logo interrompidos estabelecimentos (que se) bem que precários, sempre deixavam resíduos de povoação; a qual no decurso do tempo crescendo naquele mesmo sítio, em que se fixaram seus primitivos habitantes, mereceu ser em 1726 criada Vila, com a denominação de Desterro, em razão de ser a Matriz dedicada à Senhora do Desterro".
Em torno dessa mesma Matriz, Manuel Gonçalves de Aguiar encontrou em 1711 agrupados os poucos habitantes da Ilha, avaliados em número de mais ou menos 20. Frézier, em 1712 apontava já 147 brancos, além dos negros libertos e escravos indígenas. Em 1719 Jorge Shelvocke passou pela Ilha e no relato de viagem que deixou há dados que indicam ter havido uma formação na sua atividade econômica. O navegador, durante o tempo que permaneceu em Santa Catarina, além de ter utilizado os víveres fornecidos pela população, adquiriu nada menos de 150 alqueires de farinha de pão, 160 alqueires de favas e fumo "em abundância", pagando suas comprar não só em espécie (sal), como em dinheiro. Esses dados sugerem que, como acontecia em outras regiões da Colônia, as transações com os navios chegavam a assumir certa importância. Serviam como meio de abastecimento de utilidades desejadas ou escassas e, por fim, favoreciam a lenta formação de uma economia monetária. Indiretamente, e é o que nos interessa de perto, demonstram que as atividades agrícolas podiam ser intensificadas quando se apresentava a ocasião, a ponto de atender alterações consideráveis do ritmo tradicional de consumo. A população, um ano depois, era estimada pelo ouvidor Raphael Pires Pardinho, que lá estivera em correição, em 27 casais, com 130 pessoas de confissão.
Além do relato de Frézier e dos dados fornecidos por Jacintho Mattos nada há para comprovar diretamente a participação do negro nesta fase do povoamento da ilha. Porém é de crer-se que, embora reduzida, tivesse sido constante. Os dados de que dispomos relativos ao Continente evidenciam que nas expedições de conquista e penetração o negro esteve presente. Brito Peixoto levou-os para Laguna desde a época da fundação. Em 1725 na Frota de João Magalhães, "os trinta comandados eram principalmente os seus próprios escravos e os de seu sogro e a maioria homens pardos".
Entretanto, dadas as condições econômicas da Ilha e de seus habitantes, durante todo esse período a presença do negro foi ocasional, pois nenhuma atividade regular exigia o aproveitamento da mão-de-obra escrava.
Por Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni como 'A MÃO-DE-OBRA ESCRAVA NO POVOAMENTO DA ILHA DE SANTA CATARINA' no livro 'Cor e Mobilidade Social em Florianópolis'. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1960. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
No comments:
Post a Comment
Thanks for your comments...