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Frigorifico Anglo de Barretos em 1974 |
Não por coincidência, resolveram os diretores da Paulista, logo após haver chegado com seus trilhos a Barretos, encaminhar à prefeitura local, na própria pessoa do conselheiro Antônio Prado, um pedido de concessão para a construção de um grande matadouro frigorífico no município. Conforme a lei municipal de número 42, assinada em 16 de outubro do mesmo ano de 1909, sem demora ou qualquer tipo de impedimento, a Câmara concedia a esta empresa - ou à empresa por ela organizada - o privilégio de estabelecer tal empreendimento.1 Em 1910, a Paulista transferiu seus direitos de concessão à Companhia Frigorífica e Pastoril, firma privada nacional, fundada em São Paulo (1910) e subsidiária da Companhia Mecânica e Importadora de São Paulo. Nas reuniões anuais de 1910 e 1911, os acionistas da Paulista debatiam animadamente a respeito da criação da Companhia Frigorífica e Pastoril, afirmando que:
"Preparados estes elementos (concessão do frigorífico e escolha do local a ser implantado), promoveu a Directoria a incorporação da Companhia Frigorífica e Pastoril, que se fundou nesta cidade em 11 de Abril do corrente anno, á qual trata de transferir a concessão obtida da Câmara de Barretos e os immoveis adquiridos naquelle municipio, pelo preço de custo.
Fundada com o capital de 3.000:000$000, de que a Companhia Paulista subscreveu a décima parte, ou 300:000$000, está a Companhia Frigorifica e Pastoril, apparelhada com amplos recursos para iniciar no Brasil, e sob os melhores auspícios a exploração dos importantes ramos industriaes de que nos temos occupado e seus derivados, exploração que, se tiver o desenvolvimento que é de esperar, muito há de contribuir para o augmento da riqueza publica e particular. (AESP - Relatório n.61, 1910:13-14)
Por escriptura publica, lavrada em notas do 2º tabellião desta capital, em data de 30 de janeiro de 1911, a Companhia Paulista transferiu á Companhia Frigorífica e Pastoril o privilegio que obtivera da Câmara Municipal de Barretos para a construcção e exploração no referido município, de um matadouro em que se empregue o processo frigorífico para o esfriamento da carne e exploração dos productos derivados do gado abatido.
Essa transferencia foi feita pelo preço de 25.000$000 de réis, importância das despesas feitas pela Companhia. Por conta das acções da nova empresa, subscripitas pela Companhia Paulista, foi realisada, no exercício de 1910, a primeira prestação chamada, no valor de 20% na importancia de 60:000$000 de réis. Segundo se vê do relatorio publicado pela respectiva directoria, para ser presente á assembléa geral, que se reuniu a 27 de março do corrente anno, a Companhia Frigorifica e Pastoril trabalha com actividade para a installação do matadouro de Barretos, que segundo está projectado e em via de construcção, occupará logar saliente entre os mais importantes matadouros frigorificos existentes." (AESP - Relatorio n. 62,1911:11)"
Explica-se, assim, a citada transferência de concessão. Na condição de subsidiária da Companhia Mecânica e Importadora de São Paulo, a Companhia Frigorífica e Pastoril de Barretos estava, na verdade, envolvida com diversos outros negócios e empreendimentos, como cafeicultura, ferrovias, indústrias e bancos, da qual eram proprietários, além do próprio conselheiro Antônio Prado e irmãos, membros da parentela e Alexandre Siciliano (PERINELLI NETO, 1999). Assim, o estabelecimento instalado em Barretos compunha um conglomerado de empresas, que incluía a Companhia Paulista de Vias Férreas e Fluviais (responsável pelo transporte do gado a ser abatido no frigorífico e da carne a ser enviada aos centros consumidores), o Banco do Comércio e Indústria em São Paulo (garantia de linhas de crédito e ativos disponíveis) e a Companhia Prado Chaves Exportadora (oportunidade de obtenção dos bens de produção). Além disso, fazia parte também algumas das maiores fazendas produtoras de café de São Paulo, como as fazendas “Veridiana” e “Guatapará”, entre outras (fontes seguras de capitais). Era a Companhia Frigorífica e Pastoril de Barretos, portanto, parte daquilo que já foi denominado grande capital cafeeiro”2.
Durante os anos de 1910 a 1913, a Companhia Frigorífica e Pastoril de Barretos promoveu a construção do seu estabelecimento industrial de refrigeração de carne. A obra ficou sob encargo da empresa francesa Societ Dyle et Balacan (Paris), representada pelo engenheiro Ítalo Morelli, que lançou mão da planta de um frigorífico norte-americano. Concretizada as obras, estava fundado o maior frigorífico de capital privado nacional do Brasil, com um capital constituído por cerca de 5.000 contos de réis, uma equipe composta por 350 funcionários e uma capacidade de produção estipulada em 400 cabeças de bovinos abatidas por dia, sem contar a quantidade de abates de suínos ou de ovinos, também existentes (SUZIGAN, 1986: 338). A mão-de-obra especializada foi trazida da Argentina e dos Estados Unidos. Ao que consta, aos moldes do que já fazia a Companhia Paulista de Estradas de Ferro e Fluviais, foi providenciada a construção de uma colônia para os operários.
A Companhia Frigorífica e Pastoril de Barretos adotou uma série de medidas para agilizar os trabalhos. Foram providenciadas as aquisições de uma propriedade rural formada por uma extensão de terras em torno de 427 alqueires localizada na região de Barretos e de uma outra constituída por cerca de 27 mil alqueires no município de São José do Rio Preto, ambas dominadas por pastagens e destinadas a garantir a reserva de alimento necessário ao gado magro adquirido junto aos criadores e recriadores pelos “compradores” do frigorífico. Junto a isso houve também a construção de um ramal ao lado do prédio do frigorífico e interligado à Companhia Paulista, que permitia o embarque da produção sem prejuízos para os mercados consumidores, bem como proporcionava a entrega direta de maquinário, de certos insumos e até mesmo de gado para abate. Somam-se ainda as ações promovidas pela Diretoria junto ao poder público paulista para que implantasse o mencionado Posto Zootécnico (inaugurado em 1911), subordinado a Secretária da Agricultura e responsável por promover a melhoria genética dos rebanhos.
A existência da Companhia Frigorífica e Pastoril de Barretos durou pouco. Entre 1919 o referido estabelecimento foi arrendado pela Brazilian Meat Company, mesma empresa que o adquiriu definitivamente, alterando sua denominação para Frigorífico Anglo S/A, em 1923. Essa aquisição envolvia um negócio de grande monta, pois a indústria estava situada numa área composta por quarenta e um alqueires e meio, contendo diversos prédios: sala de matança, de resfriamento e de preparo de sub-produtos, câmara de refrigeração, salgas de couros, calderaria, salsicharia, preparo de charque, fábrica de gelo, máquinas, acessórios, oficinas diversas, caldeiras, almoxarifado, escritórios, moradias, açougues, armazéns de primeira necessidade, escola, cinematographo, depósito de wagons e materiais, currais, seringas de gado, cercas, entre outros. Tal transação alteraria o funcionamento desse frigorífico e acarretaria conseqüências negativas aos criadores e recriadores de gado.
A Brazilian Meat Company fazia parte de um conglomerado: a Vestey Brothers Company, sediada em Liverpool, capitaneada pelo Barão Vestey e organizada na década de 1890. Os dados envolvendo o conglomerado inglês a qual pertencia a Brazilian Meat Company impressionam, pois estava envolvido com ações em torno de ferrovia, controle de portos, posses fundiárias, ações em bolsa de valores, imóveis urbanos, sistema de telecomunicações em países como Argentina, Uruguai, México, Venezuela, China, Índia, Egito, África do Sul, Austrália, Nova Zelândia e muitos outros países europeus. Faziam parte da Vestey Brothers Company empresas como a The Blue Star Line, Blue Star Ship Management Ltda e a Union Cold Storage Company. No Brasil, este conglomerado inglês possuía imensas fazendas de gado e frigoríficos estabelecidos em Mendes, Santos e Pelotas, inaugurados por volta do mesmo período e igualmente adquiridos junto a capitalistas nacionais. Para os diretores deste grupo financeiro o Frigorífico de Barretos parecia figurar como mais um bom investimento.
Não obstante, a fundação do Frigorífico de Barretos representava mais do que a presença de um estabelecimento industrial de grande porte nessa cidade. Vinculada aos discursos e as práticas mais atualizadas do período, o advento de tal empresa trazia consigo a materialização de um projeto de controle social do trabalhador mais amplo e que envolvia, inclusive, a construção de um bairro operário anexo à própria fábrica (DE DECCA, 1991). Tal controle era bem visto pelos representantes do poder público local, daí o fato desta empresa estar situada na mesma direção do bairro “Outro Mundo” (sul de Barretos), porém, cerca de 5 Km desta área. É preciso considerar que boa parte dos diretores-proprietários deste frigorífico era composta por homens habituados a viajarem para a Europa e os Estados Unidos, onde o desenvolvimento do sistema fabril havia sido latente no século XIX (HOBSBAWN, 1977). Além disso, esses mesmos homens estavam acostumados com a experiência desenvolvida em fábricas instaladas na cidade de São Paulo, onde residiam, tinham seus negócios e exerciam suas atividades políticas (TEIXEIRA, 1990;BLAY, 1985)
A discussão envolvendo o Frigorífico de Barretos quando pertencia ao grupo de capitalistas nacionais é limitada pela ausência de fontes. Sabe-se, porém, que sob domínio dos ingleses o referido estabelecimento vivenciou um aprofundamento das estratégias de controle dos funcionários, tendo em vista o avanço de pressupostos tayloristas: a especialização dos departamentos, a premiação pela produtividade, a impossibilidade de comunicação e a rotatividade de cargos entre os trabalhadores (MORAES NETO, 2002; BRAVERMAN,1977). Tais modificações são indicativas de que os novos diretores se apoiavam na ideia de que a produção industrial não deveria primar pela qualidade do trabalhador, mas sim pela maneira como estava organizada a linha de produção, ou seja, pela disposição física da fábrica e a distribuição dos serviços em seu interior. Este tipo de expediente oportunizava a contratação de mão-de-obra reduzida e menos qualificada, ou seja, resultava numa diminuição com os gastos salariais e trabalhistas (ZANETTI; VARGAS, 2007). A dominação e o controle sobre o trabalhador seriam intensos se considerarmos que o aprofundamento do taylorismo pelos ingleses não excluiu a violência e o paternalismo anteriormente empregados.
Num estudo realizado sobre os operários do Frigorífico de Barretos é possível identificar alguns efeitos do taylorismo (ARAÚJO, 2003: 48-59). Inicialmente, cabe notar a alta especialização promovida nessa empresa, que passou a contar com a existência de 66 cargos, divididos em 5 grupos: construção civil e manutenção dos prédios e das máquinas; resfriamento e conservação da carne: refrigeração (matança, descarnação e resfriamento da carne), conservação das carnes e sub-produtos; empacotamento dos produtos; cargos de chefia: capataz, apontador, fiscal, encarregado, etc; trabalhadores de escritório, manutenção da limpeza, transportes e vendas, bem como o grupo de trabalhadores sem função específica. Esta divisão em equipes de trabalho ilustra ainda mais o taylorismo se observarmos que a maior parte dos funcionários se ocupava da modificação da estrutura física desse estabelecimento: 11,8% estavam associados às atividades de construção e/ou manutenção dos prédios e das máquinas, enquanto 8,7% pertenciam ao setor da construção civil e os outros 3,1% ligavam-se aos setores metalúrgico e mecânico.
A especialização dos espaços que constituíam o frigorífico de Barretos deve ser entendida em conjugação com a observação dos “espaços vazios”. O olhar sobre a fábrica, por exemplo, revela a existência de vários pátios constituídos entre uma edificação e outra. Provavelmente, esses pátios eram atravessados por funcionários que circulavam pelos setores dessa empresa, segundo um movimento que impressionava, tendo em vista que gerava uma espécie de corpo integrado, formado a partir de gestos disciplinados, expressos por homens e mulheres apressados pelo ritmo de trabalho. Todavia, pode-se inferir também que tais espaços eram empregados de modo particular por esses mesmos funcionários, como provam os registros fotográficos que celebravam momentos de confraternização ou então que informam sobre as refeições ao ar livre e de modo improvisado. Conclui-se, portanto, que os “espaços vazios” da fábrica eram lugares de importância na construção da identidade do trabalhador desse estabelecimento, portanto, da consciência de classe (THOMPSON, 2001:269-281).
Os funcionários do frigorífico passavam a ter contato com tecnologias que interferiam na forma de enxergar a realidade (SANTOS, 1996).3 Na fábrica existiam máquinas a vapor e movidas por energia elétrica. Para garantir a conservação da carne e dos derivados eram empregadas máquinas de gelo e eram usados refrigeradores nas grandes câmaras frias, respectivamente. Para embalagem dos produtos a serem comercializados lançava-se mão de vidros, de latas e de plásticos. Para entregas de produtos em Barretos e região utilizavam-se automóveis. Sem levar em consideração o próprio espaço fabril e a maneira como era organizada a produção, todos os equipamentos somados e alguns outros não citados configuravam um ambiente diferente, fortemente marcado pelas conseqüências da Revolução Industrial (SEVCENKO, 1998; HOBSBAWN, 1977). Máquinas diversas, fontes de energia variadas, embalagens totalmente diferentes daquilo que até então existia anunciavam conjuntamente aos trabalhadores dessa empresa um novo modo de estar no mundo, de se enxergar e de tramar as relações sociais, fossem elas profissionais ou afetivas.
Mas, acima de tudo tinha-se contato com o trem.4 Um ramal especialmente construído pela Companhia Paulista havia gerado, inclusive, a construção de uma estação denominada, justamente, “Frigorífico”. O trem garantia o escoamento da produção e a entrega de matéria prima, produtos alimentícios e de maquinários, atividades que exigiam do frigorífico a disponibilidade de funcionários designados especialmente para o cumprimento dessas tarefas. O trem possibilitava ainda aos funcionários do frigorífico o deslocamento até Barretos ou outras cidades diretamente da estação que ladeava a empresa, facilitando desse modo a ida e o retorno dos trabalhadores que não residiam no próprio bairro da empresa. O trem ainda marcava o cotidiano dessa gente com seus silvos, tendo em vista que os trilhos cortavam boa parte da área do frigorífico, se aproximavam bastante do bairro de funcionários e estavam ligados diretamente à fábrica. Sinônimo de progresso, o trem marcava de modo indelével o cotidiano dessa gente, já que se fazia presente no tempo, no alimento, na saudade e no cumprimento das atividades diárias.
Todavia, as novas tecnologias conviviam com materiais e técnicas de trabalhos antigos. Nota-se que a composição dos cenários do Frigorífico de Barretos ganhava a madeira, sem sombra de dúvidas, relevância. Empregava-se madeira como lenha para alimentar a calderaria, como tábua que tornava possível a construção de várias edificações, daí constar a existência de uma serraria e de profissionais responsáveis pela derrubada de matas no conjunto de funcionários. A presença de uma olaria informa sobre a fabricação de tijolos e telhas para serem utilizados nas construções e reconstruções do bairro de funcionários e das edificações da fábrica. A criação de suínos era destinada para fornecimento de carne aos funcionários. Carros de bois conviviam com automóveis e locomotivas, tendo em vista a necessidade de transportar madeira e produtos entre setores do próprio frigorífico. Além disso, constava a presença de inúmeros varais destinados a secagem da carne-seca e de centenas de cartolas destinadas a abrigar gordura.5 Todos esses exemplos revelam a busca de uma certa auto-sustentabilidade da empresa por parte da diretoria, procedimento que lembra muito aquele adotado nas fazendas paulistas de café. O próprio bairro do Frigorífico era tratado por seus moradores como “colônia” (ARGOLLO, 2004).
As fotografias possibilitam também apreender um pouco sobre a estrutura do frigorífico. A maior parte das edificações era composta por paredes de alvenaria, erigidas sobre uma estrutura de concreto. A madeira era empregada em espaços específicos, caso dos currais e dos embarcadores de animais. Era uma constante a presença de grandes janelas protegidas por gradis nos edifícios, o que favorecia a obtenção de claridade e de ar circulante, embora muitos ambientes pareçam escuros e insalubres, talvez, porque situados no subsolo, normalmente reservado as atividades desempenhadas na calderaria, na graxaria, entre outros setores. Alguns objetos, inequivocamente, se repetem nas imagens: ganchos para suspender as partes dos bovinos, facas utilizadas no corte e retalhamento das carnes, mesas que se prestavam ao corte e/ou seleção da carne e carriolas destinadas a transportar partes dos animais de um setor a outro ou, então, providenciar o descarte daquilo que era considerado refutável. A pouca quantidade de registros fotográficos sobre as dependências internas do Frigorífico de Barretos parece transparecer a intenção de ocultar as condições de trabalho dos funcionários.
Determinados pontos do Frigorífico eram marcos referenciais.6 A entrada dessa empresa era caracterizada pela presença de um pontilhão (composta pela passagem ferroviária e a pista da vicinal que ligava essa empresa a Barretos), situado antes da guarita posicionada na entrada da área ocupada pelo bairro de funcionários e o complexo fabril e, muitas vezes, interditada pela ocorrência de enchentes. Pouco após o pontilhão e antes das instalações que formavam o complexo fabril propriamente dito, constava ainda uma plantação de eucaliptos, provavelmente cultivados por obra e vontade de Edmundo Navarro de Andrade, agrônomo que atuava na Companhia Paulista de Estradas de Ferro, introdutor dessa planta no país e figura muito próxima do velho conselheiro Antônio e da família Prado (MARTINI, 2004). Já os inúmeros currais constituíam um espaço em que os funcionários não apenas tratavam com os bovinos, como também mantinham convivência com peões, boiadeiros e invernistas, portanto, tinham acesso a informações, costumes e valores de outras regiões do Brasil Central Pecuário, trazidas pelos homens que transportavam o gado, inaugurando-se aí, portanto, uma ponte entre universos sócio culturais diferentes.
As fotografias ainda oportunizam reconhecer alguns aspectos envolvendo comportamentos dos funcionários. Parecia existir certa padronização das vestimentas utilizadas por aqueles que labutavam no interior da fábrica: camisas brancas e jalecos brancos destinados aos homens e mulheres, respectivamente, além de chapéu de tecido, acompanhados (na maioria dos casos) de um avental, procedimento que remete a constituição da imagem do operário e a eliminação das “pecualiariedades” dessa gente (THOMPSON, 2001). A ausência de sapatos específicos para o exercício do trabalho ganha destaque numa empresa associada ao discurso sanitarista, pois salienta uma indisfarçável precariedade. Em muitos casos, inclusive, funcionários aparecem descalços nos registros fotográficos, imagens que remetem aos escravos e, portanto, a infeliz permanência de certas condições e hábitos de trabalho (WISSENBACH, 1998: 49-130). Contudo, se os funcionários do interior da fábrica possuíam uma espécie de uniforme, o mesmo não ocorria com aqueles que desempenhavam serviços fora da fábrica, caso dos pedreiros, carregadores, vigilantes, etc. Havia uma liberdade maior na vestimenta desse segundo grupo, ressaltando-se que era formado, ao que tudo indica, apenas por homens.
As diferenças entre capital e trabalho também gerariam conflitos no Frigorífico de Barretos. De acordo com estudo baseado na mensuração e observação de fichas cadastrais dos funcionários organizadas entre 1927 e 1935, houve atritos entre operários e diretores no interior do próprio frigorífico, em boa medida, por conta de criticas motivadas pelas condições de trabalho, acusações de furtos de carne, reclamações envolvendo a arbitrariedade de certos encarregados por parte dos operários, entre outros fatores responsáveis por parcela considerável das demissões (ARAÚJO, 2003: 94-104). Tais diferenças motivaram, inclusive, a organização de uma greve, deflagrada em 1931, que acabou sendo controlada por agentes locais e nacionais da ordem, embora outras manifestações viessem a ocorrer em ocasiões posteriores. Depreende-se disso que, enquanto representação da modernidade, o espaço constituinte do Frigorífico de Barretos comportava também as lutas movidas pelas classes que se opunham nesse contexto histórico.
A interpretação do espaço pertencente à fábrica possibilita compreender traços elementares na composição desse lugar. O Frigorífico de Barretos expressava uma definição espacial ancorada na concepção herdada do século XVIII, ou seja, como sendo um organismo formado por um complexo sistema circulatório e a combinação igualmente complexa do funcionamento especifico de certos órgãos (SENNET, 2001). Explica-se, assim, a maneira de “organizar sistematicamente” cada um dos edifícios e setores da fábrica propriamente dita. Contudo, este modelo de intervenção espacial assumia contornos particulares, daí o corpo do frigorífico em questão expressar igualmente “marcas antigas”, visualizáveis no tratamento dispensado ao trabalhador, na busca de auto-sustentação, na presença de antigos códigos de sociabilidade, por exemplo. No interior paulista das primeiras décadas do século XX é que um grupo estrangeiro inglês levava a cabo seus projetos financeiros e, para isso, construía um espaço em que a temporalidade presente nas inúmeras experiências humanas ali registradas tornava o cotidiano local denso e intenso. Tratava-se de um certo tipo de modernidade...
Notas
1 O texto da lei é interessante, pois a Câmara concedia à Paulista: “o privilégio pelo prazo de 40 anos para o uso e gôzo, dentro do Municipio, de um grande matadouro em que se empregue o processo frigorífico para resfriamento de carne e exploração dos produtos derivados do gado abatido”. A expressão “em que se empregue o processo frigorífico” é bastante indicativa do fascínio pela indústria de refrigeração da carne. Lei municipal nº 56, de 31 de dezembro, prorrogou o prazo concedido à Companhia Frigorífica Pastoril. AMCMB - Sessão Ordinária da Câmara Municipal de Barretos. 31/12/1909. Atas da Câmara Municipal de Barretos: Livro 4 (02/01/1908 a 29/06/1910).
2 Conforme a definição de Renato Perissinotto, o "Grande Capital Cafeeiro" engloba os agentes econômicos que se caracterizavam por uma larga diversificação de seus investimentos: comércio de exportação e importação, atividade bancária, indústria, estradas de ferro, empresas de serviços públicos, etc (PERISSINOTTO, 1994:37-44).
3 Nicolau Sevcenko salienta que o “diferencial tecnológico altera não só as rotinas do cotidiano, mas, obviamente, os próprios quadros de valores. E ele é decisivo na elaboração de um certo imaginário, de uma certa ética, que se traveste na historiografia como a exaltação do moderno e dos seus signos, representado por valores associados a padrões de metrópoles dominantes”. (SEVCENKO, 1998: 347).
4 Poucas análises foram realizadas a respeito dos novos códigos de sociabilidade e novas vivências (que não apenas econômicas) provocadas pelo contato que a população passou a ter com o trem. Um dos poucos estudos é o que foi realizado por Lídia Possas, que ressalta: “Outro aspecto notável desse “arauto” da modernidade – o trem – exaltado por Sansot (1986, p. 185-6) foi a sensação que a velocidade provocava nas pessoas, o impacto que operava na percepção da paisagem, sem deixar de realçar o controle do tempo através da rígida utilização dos horários-relógio que confirmavam saídas e partidas e obrigavam os passageiros a ajustarem suas particularidades e o próprio cotidiano, o que leva a reforçar e complementar a disciplina que aceleração do processo produtivo exigia cada vez mais. Pode-se inferir, diante disso, como a presença do trem provocou mudanças na rotina das pessoas, com o trabalho disciplinador, cronometrado em horas, que surpreendia e subordinava a todos. O vínculo com o tempo da natureza se desfaz ainda mais e o tempo abstrato dividido em 24 horas, o “tempo relógio” que já era uma situação vivida desde o século XIV (Cf. Hale, 1978, p.9-10), passou a dominar todas as atividades humanas e também as aldeias e os espaços intermitentes. Os caminhos de ferro impunham o tempo mesmo no espaço inabitado, como a Sibéria” (POSSAS, 2001:58).
5 Produtos centenariamente fabricados no Brasil, ainda desfrutavam de importância no mercado interno brasileiro, em boa medida alheio aos embutidos e aos enlatados que eram exportados. Algumas obras ressaltam o quanto foi tardio a formação de mercado desses produtos (MELLO; NOVAIS, 1998: 559-658).
6 Estes marcos referenciais se aproximam do que Gaston Bachelard denominou por: “[...] espaços de posse, dos espaços defendidos contra forças adversas, dos espaços amados. Por razões não raro muito diversas e com as diferenças que as nuanças poéticas comportam, são espaços louvados. Ao seu valor de proteção, que pode ser positivo, ligam-se também valores imaginados, e que logo se tornam dominantes. O espaço percebido pela imaginação. Em especial, quase sempre ele atrai. Concentra o ser no interior dos limites que protegem” (BACHELARD, 1998: 19).
Fontes
1. Acervo fotográfico Pessoal de José Mesquita.
2. Planta Geral do Frigorífico e seus arredores”, 1972 - Acervo fotográfico Pessoal de José Mesquita.
3. Relatorio n. 59, da Companhia Paulista de vias ferreas e fluviaes para a sessão de assembléa geral de 30 de junho de 1909. São Paulo Typographia e Papelaria de Vanorden & Cia.
4. Relatório n.61, da directoria da Companhia Paulista de Vias Férreas e Fluviais, 30 de junho de 1910. São Paulo: Typographia e Papelaria de Vanorden & Cia, 1910, p.13-14.
5. Relatorio n. 62, da directoria da Companhia Paulista de vias férreas e fluviaes para a sessão de assembléa geral em 30 de junho de 1911. São Paulo Casa Vanorden, p.11.
6. Sessão Ordinária da Câmara Municipal de Barretos. 31/12/1909. Atas da Câmara Municipal de Barretos: Livro 4 (02/01/1908 a 29/06/191
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Texto de Humberto Perinelli Neto com o título de "Espaço(s) fabril(is) e tempos sociais diversos: etnografia histórica, particularidades da modernidade brasileira e o Frigorífico de Barretos (1909/1931)" apresentado no Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, campus de São José do Rio Preto SP. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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