4.09.2016

A QUESTÃO AGRÁRIA E ALIMENTAR NA ANTIGUIDADE


A guerra permanente e a formação das cidades-Estado militarizadas.

O desflorestamento e o desenvolvimento dos sistemas com alqueive começaram no Oriente Médio há 2.000 a.C., para estender-se em seguida de leste a oeste e do sul ao norte, no entorno mediterrâneo e na Europa. Ora, é surpreendente constatarmos que nessa parte do mundo, palácios, cidades, Estados e impérios se desenvolveram paralelamente a essa vasta perturbação agroecológica. Os primeiros palácios de Creta (Cnossos) e do Peloponeso (Micenas), as primeiras cidades-estado da Ásia menor (Hatousa, na Anatólia) apareceram entre 2.000 a.C. e 1.500 a.C. Entre 1.000 a.C. e 500 a.C. foram formadas as cidades fenícias (Tiro, Sidon) e gregas (Atenas,Esparta etc.) bem como as cidades de suas colônias ocidentais: colônias fenícias do norte da África (Cartago), colônias gregas da Sicília e do sul da Itália (Siracusa, Tarento), colônias etruscas da Itália central (Volsini, Populônia, Volterra). Entre o ano 500 a.C. e o princípio da era cristã, Roma resplandeceu e constituiu um vasto império do perímetro mediterrâneo e europeu. Enfim, a partir do século V da era cristã, os reinos e os impérios germânicos, eslavos e escandinavos se formaram mais ao norte.

A colonização

Em todas essas sociedades, a crise do desflorestamento, a falta de terras cultiváveis e a falta de víveres se faziam sentir duramente. Estavam na origem das migrações dos povos à procura de novas terras para colonizar, expedições de pilhagem e guerras quase permanentes que levaram à militarização crescente das sociedades mediterrâneas e europeias da Antiguidade. Os locais de defesa naturais foram tomados por muralhas e cidades, abrigando e refugiando a população rural em caso de invasão. Na Grécia, por exemplo, no período arcaico, multiplicaram-se as guerras entre linhagens e tribos para pilhar colheitas, tomar terras e reduzir à servidão populações vizinhas, o que conduziu os chefes mais poderosos a se constituírem em aristocracias que concentraram nas mãos a maior parte das terras, as armas metálicas mais custosas e eficazes, os cavalos e os carros de combate. Essa aristocracia fundiária e militarizada encontrava-se na chefia da cidade fortificada e do Estado nascente. As cidades-estado militarizadas mais poderosas puderam prolongar suas expedições de pilhagem às cidades vizinhas, colonizando-as e resolvendo assim seus problemas de abastecimento impondo-lhes um tributo, ou ocupando-as e explorando suas terras. Como escreve P. Garnsey (op. cit.):

"os romanos alimentavam seus famintos graças às colheitas de seus vizinhos e cultivavam terras cedidas por seus inimigos conquistados. Os vencidos eram também obrigados a fornecer reservas (e mão de obra) a fim de permitir as etapas ulteriores da conquista. Com o tempo, os romanos pilharam e exploraram os recursos dos países de além-mar. Foi sobre o excedente extraído dos Estados-súditos que os soldados romanos e os civis não produtivos se alimentavam".

Todavia, a partir do momento em que as cidades-Estado permanentes, relativamente importantes, foram constituídas, uma fração importante da população (nobres, guerreiros, magistrados, artesãos, comerciantes, servidores etc.) foi retirada do trabalho agrícola. Ora, como vimos, a produtividade agrícola da época era geralmente suficiente apenas para alimentar os agricultores e suas famílias. Desde então, para abastecer-se, a cidade antiga dominante e em crescimento tinha não apenas necessidade de colônias, de cada vez mais colônias, mas também necessidade de escravos.

Escravidão “necessária”?

Conforme ressalta Meillassoux (1986), o escravo, a quem a reprodução era geralmente proibida, não tinha família a seu encargo. Suas necessidades se reduziam a sua própria ração de manutenção e, nessas condições, o escravo trabalhando na produção agrícola podia garantir um “excedente” exatamente no qual um homem livre, chefe de família, não poderia fazê-lo. E, claro, esse “excedente” era quase ilusório, pois foram na verdade as sociedades periféricas, submetidas à pilhagem de sua própria mão de obra, que produziram essa força de trabalho capturada e reduzida à escravidão. Para a cidade escravista, o custo de renovação do escravo se limitava ao custo de sua captura e de seu comércio e, quanto maior a superioridade militar da cidade conquistadora, mais fácil a captura, além do fato de que o custo de manutenção se reduzia apenas à sua alimentação e à sua vigilância.

Essa análise é bem diferente daquela feita por Engels (1983), segundo a qual a escravidão teria se desenvolvido historicamente a partir do momento em que a produção de um ativo tornando-se superior às suas próprias necessidades, era mais vantajoso manter cativos de guerra como escravos em vez de exterminá-los como antigamente. Esse ponto de vista não é mais defensável. Na verdade, para que uma sociedade, qualquer que fosse, pudesse se reproduzir, segundo seus próprios meios, era necessário que a produção de um ativo fosse superior às suas próprias necessidades, ainda que fosse para alimentar suas crianças, seus doentes, os inválidos momentâneos etc. Essa regra vale para todas as sociedades, inclusive aquelas anteriores ao desenvolvimento da escravidão.

Para nós, o desenvolvimento da escravidão antiga no Ocidente, e sua perpetuação durante mais de um milênio pode ser explicada de outra forma. A escravidão, que se tornou “necessária” quando do surgimento da cidade antiga, devia-se ao fato de que a produtividade agrícola da época era muito insuficiente para garantir simultaneamente a renovação das gerações e excedentes capazes de abastecer a cidade. O que tornava, portanto, a escravidão possível, além da superioridade militar da cidade escravista, era a existência na periferia desta, de povos menos poderosos constituindo uma vasta reserva de mão de obra. Esse era, aliás, o ponto de vista dos Antigos sobre a questão:

"a utilidade de animais domésticos e de escravos era mais ou menos a mesma; tanto uns como os outros nos ajudam por meio de sua força física a satisfazer as necessidades da existência [...]. A escravidão é portanto um modo de aquisição natural que faz parte da economia doméstica. Nessa, tudo está feito ou deve ser criado, sob pena de não conseguirmos os meios de subsistência indispensáveis à associação do Estado e aquela da família [...]. Assim, a guerra é de certa maneira um meio natural, já que compreende esta caça que se deve fazer às bestas selvagens e aos escravos que, nascidos para obedecer, recusam a submeter-se [...]. (Aristóteles, Política)"

De resto, a escravidão por motivo de dívida sempre foi precedida pelo desenvolvimento da escravidão pela guerra. Na verdade, desde que a cidade antiga e os grupos sociais improdutivos se constituíram, desde que o imposto adquiriu uma certa importância, muitos agricultores que, já anteriormente, mal conseguiam suprir suas próprias necessidades e a de suas famílias, precisaram entrar na engrenagem de um endividamento crescente, que levou muitos deles a perder ao mesmo tempo seus bens e sua independência.O mecanismo dessa servidão por dívida é bem-conhecido: um camponês autossuficiente, que devia vender uma parte muito importante de sua colheita para pagar o imposto, era obrigado a endividar-se para adquirir os alimentos necessários, até a colheita seguinte, período em que os grãos apresentavam um valor elevado. Para reembolsar sua dívida, deveria vender a preço baixo uma parte dessa colheita. Isso o levava a pedir dinheiro emprestado por alguns meses a uma taxa de juros bastante elevada. De ano em ano, cada vez mais empobrecido pelos juros de sua dívida, o agricultor devia se endividar cada vez mais pesadamente, hipotecando partes cada vez maiores de sua terra, de seu trabalho futuro e de sua família. Chegava um momento em que o valor de sua colheita anual se tornava inferior ao montante de sua dívida, e ele se via forçado a entregar ao seu credor todos os seus meios de produção hipotecados, inclusive ele mesmo e sua família. Dessa maneira, ele se encontrava reduzido a um estado de servidão por dívida em proveito de seu credor, que se torna proprietário de suas terras, de sua pessoa e de sua família.

Nas sociedades antigas, a amplitude que esse mecanismo ganhou, a abundância de todas as formas de servidão e o desenvolvimento ulterior da guerra escravista mostram bem que, nas condições da época, a escravidão tornara-se, como disse Aristóteles, uma necessidade “natural” para suprir, ao mesmo tempo, as necessidades da família e as do Estado.

O caso da Grécia

Nas sociedades “ocidentais” do entorno mediterrâneo e da Europa, as terras cultiváveis não eram, como nas sociedades hidráulicas “orientais” (Egito, Mesopotâmia, Indo), o fruto de grandes obras realizadas sob a égide de um soberano todo-poderoso, que concedia terras a particulares ou a comunidades vizinhas pouco diferenciadas. No “Ocidente”, as terras cultiváveis do ager eram objeto de apropriação ou usufruto privado, geralmente bastante desiguais.

Colonização e servidão

Dessa maneira, desde o século VIII a.C., em muitas regiões gregas, a concentração de terras nas mãos de uma minoria de grandes proprietários ampliou-se, sobretudo nas regiões férteis. Vítimas dessa concentração, mas também talvez de um certo superpovoamento, muitos agricultores foram confinados em lotes muito pequenos ou expulsos para as zonas mais inóspitas e aqueles – cada vez mais numerosos – incapazes de pagar o impostos e obrigados a endividar-se não tiveram outra escolha senão a servidão por dívida ou a emigração. A colonização grega para o oeste (Itália do Sul, Sicília), depois para o leste (Ásia Menor, Ponto Euxino) e ao sul (norte da África) foi se organizando. Dela participou a aristocracia, os artesãos, os comerciantes e os camponeses arruinados, mercenários ou servos.

Essa colonização foi a princípio agrária, exercida nas planícies geralmente mais extensas, mais férteis e menos superpovoadas que as da Grécia. Era baseada, em grande medida, na exploração de uma mão de obra local ou imigrante reduzida a diversas formas de servidão, proporcionando excedentes que contribuíam ao abastecimento da metrópole.

Reforma agrária e democracia

No entanto, a ruína e a servidão de uma parte da classe camponesa empobreceram os campos, reduziram a demanda de produtos artesanais e enfraqueceram a atividade econômica geral. O agravamento constante das desigualdades alimentou movimentos revolucionários que exigiam, de maneira recorrente ao longo da Antiguidade, a abolição de dívidas e a partilha das terras. Esses movimentos trouxeram ao poder ou legisladores reformistas democraticamente eleitos, ou tiranos que se impuseram pela violência.

Assim, em Atenas, no início do século VI a.C, o legislador Sólon exonerou os camponeses servos de seus pesados encargos e proibiu a servidão por dívida e a venda de crianças como escravos. Todo cidadão ateniense foi tido como livre aos olhos do Estado. Sólon tomou também uma série de medidas para distribuir as terras indivisas do saltus e para repartir mais justamente os impostos e as obrigações de diferentes categorias de cidadãos em função dos bens de cada um. Mas essas reformas descontentaram a oligarquia, que as achava muito radicais, e os camponeses, que reclamavam a redistribuição de terras. Em 524, Pisístrato, representando uma facção aristocrática que havia tomado o comando do movimento dos “Diácrios” (movimento de camponeses expropriados e expulsos para as montanhas inférteis da periferia da Ática, principalmente no planalto da Diácria) tomou Atenas e o poder. Impôs, então, reformas radicais. Distribuiu os domínios confiscados pela aristocracia e as terras em pousio, constituindo, assim, uma classe vigorosa de pequenos e médios camponeses, aos quais encorajou a investir em plantações de vinha e árvores frutíferas com créditos do Estado, com baixas taxas de juros. Ao contrário de Sólon, que representava o povo das cidades, Pisístrato apoiou-se nos camponeses empobrecidos e marginalizados e, redistribuindo terras em proveito dos camponeses, realizou uma das primeiras reformas agrárias da história. Todavia, se as reformas de Sólon e de Pisístrato, e depois as de Clísteno, fundaram a democracia e protegeram os cidadãos atenienses da servidão, elas, contudo, não aboliram a escravidão dos estrangeiros, nem na metrópole, nem nas colônias (Glotz, 1948).

A questão do abastecimento da cidade

Em sequência às reformas do século VI, a economia rural refloresceu na Ática. Foi a idade de ouro dos pequenos e médios proprietários independentes, que produziam o próprio grão, vendiam os produtos de suas vinhas e de seus pomares, trabalhavam em família e com alguns escravos, viviam frugalmente e limitavam a descendência a um ou dois filhos. Xenofonte, em A Economia, exalta esse ideal de vida. Todavia, essa agricultura produzia poucos excedentes, e diversos sinais mostram claramente que a penúria crônica de grãos continuava. A restrição dos nascimentos era uma regra; o aborto e o infanticídio, frequentes: os recém-nascidos, principalmente as mulheres, eram “expostos” na via pública, e assim abandonados aos caçadores de escravos e, frequentemente, à morte. O regime alimentar continuava muito moderado, a fome não era rara, assim como as epidemias (peste) e as doenças endêmicas (paludismo, tuberculose).

Certamente, do século VI a.C. ao século IV a.C., a população ateniense, da cidade e do campo, teria mais que dobrado, passando de uma centena de milhar de habitantes a mais de 200 mil. No entanto, é preciso dizer que no século V, a cidade ateniense, mestra dos mares, certamente importava pelo menos a metade de seu trigo de Ponto Euxino, sobretudo, e também, mais tarde, da Sicília, do sul da Itália, do Egito e da Trácia (Finley, 1975; Garnsey, op. cit.). Já no século IV, tendo a cidade perdido o domínio dos mares, o seu abastecimento tornou-se uma preocupação constante do governo: a lei proibiu, sob pena de morte, as exportações de trigo, e que qualquer habitante financiasse navios que não transportasse trigo a Atenas, obrigando os mercadores a entregarem à cidade pelo menos dois terços de seus carregamentos de trigo. Os preços do grão, da farinha e do pão foram fixados pelas autoridades; as compras de cereais pelos mercadores e seus lucros foram limitados, a fim de evitar o açambarcamento, a especulação e a penúria. Magistrados (sitofílacos) foram designados especialmente para verificar a aplicação de todos os regulamentos. Mas mesmo em Atenas estas disposições legais não duraram muito. E na maioria das cidades gregas não dominantes, a segurança alimentar da população não era responsabilidade das autoridades: era deixada aos bons cuidados das benesses ostentadoras dos ricos (evergetismo) que, se por um lado aliviavam a fome de alguns famintos, por outro não conseguiam resolver esse problema de fundo.

A crise e a queda de Atenas

Desde o fim do século V a.C., a situação do campo ateniense se degradou novamente. Na verdade, pelo jogo de divisões sucessórias, os estabelecimentos agrícolas se tornaram cada vez menores: o tamanho da maioria dentre eles era compreendida entre 2 e 4 ha, ou seja, uma dimensão bem inferior ao mínimo necessário para alimentar uma família. O endividamento e a ruína estenderam-se e chegaram, por um lado, a formar massas indigentes prontas a se engajar como mercenários – inclusive a serviço do próprio inimigo – e, por outro lado, a desenvolver a grande propriedade. As guerras civis recomeçaram e mesmo com o governo recusando as reformas, elas continuaram até a conquista macedônica. A colonização dos territórios do leste, sob a égide de Alexandre da Macedônia, permitiu um ganho passageiro de prosperidade. Em seguida, Atenas foi esvaziada e entrou em uma fase de grave crise no final do século II a.C, uma crise que se agravou até a conquista romana.

O caso da Itália

Colonização

A cidade romana empreendeu, em uma escala cada vez maior ampla, um processo de colonização essencialmente motivado pela pilhagem, o confisco de terras cultiváveis e a captura de mão de obra escrava. A princípio limitada à Itália, a colonização romana se estendeu, após a vitória sobre sua rival cartaginesa, a todo o entorno mediterrâneo, o centro-sul e o noroeste da Europa. Essas conquistas estavam na origem de uma enorme transferência de riquezas das regiões vencidas para a península italiana e para Roma, em particular: produtos agrícolas, mercadorias diversas, prata e escravos a baixo preço afluíam. Tratava-se essencialmente do butim de guerra, tributos pagos pelas regiões que se tornaram províncias romanas, produtos de exploração do ager publicus (conjunto de domínios privados, minas, florestas, salinas etc. confiscados pelo Estado romano nas regiões vencidas) e ganhos das sociedades e pessoas físicas que exploravam os recursos das províncias. A receita do Estado se tornou tão importante que, em 167 a.C., o governo republicano decidiu suprimir toda contribuição direta sobre os cidadãos na Itália.

Não obstante, a chegada maciça de cereais a baixo preço provenientes das colônias provocou uma forte redução dos preços agrícolas: nos dois anos que se seguiram ao fim das Guerras Púnicas, por exemplo, o preço do trigo em Roma foi dividido por quatro e depois por oito (Aymard &Auboyer, 1980). Mais tarde, a concorrência dos produtos coloniais aplicou-se ao vinho e ao azeite de oliva e também aos animais. As frutas e os legumes frescos, difíceis de transportar, continuaram protegidos dessa concorrência. Nas regiões abertas para o mar e atingidas pela concorrência dos produtos importados, os grandes proprietários converteram suas propriedades para a criação, e às vezes também para plantações frutíferas. Entre os camponeses, apenas aqueles que dispunham de capital, graças ao butim que haviam conseguido durante a guerra, puderam reconverter suas propriedades. Nessas regiões, a paisagem rural se transformou: o saltus e o hortus estenderam-se, às custas do ager. Para os camponeses pobres, a única e mais frequente saída era vender suas terras e unir-se à plebe romana mais ou menos ociosa. A propriedade se concentrou em um número reduzido de mãos. Nesse momento se formaram grandes domínios, os latifúndios, cultivados por escravos que chegavam em grande número e a tão baixo preço que substituíam os assalariados e os rendeiros livres. Todavia, nas regiões férteis como a Planícies do Pó, onde a cultura cerealífera era bastante produtiva, e nas regiões interiores, aonde os cereais importados não chegavam, a importância do cultivo de cereais não diminuiu.

As leis agrárias

Essa evolução, que agravava a dependência alimentar de Roma em relação a suas colônias e que inflava a plebe romana, não deixou de inquietar certos senadores. No princípio do século II a.C., o Senado decidiu atribuir aos cidadãos romanos, ou aos aliados latinos despojados, lotes de terras tomadas do ager publicus, de modo a reforçar a classe dos pequenos e médios proprietários em forte regressão. Mas essa medida não foi aplicada, pois confrontava os interesses dos grandes proprietários, das sociedades de publicanos (encarregados pelo Estado de assegurar diversas funções administrativas e gerar bens e fundos públicos) e dos próprios senadores que, além dos domínios que já possuíam em propriedade plena, eram os beneficiários privilegiados de vastas porções do ager publicus.

Essa ideia ganhou força e, em 133 a.C., Tibério Graco, tribuno do povo, colocou em votação pela Assembleia uma lei agrária. O objetivo dessa lei era reconstituir uma camada numerosa de explorações agrícolas familiares, suscetíveis de restaurar a economia dos campos italianos e devolver ao Estado uma base social mais ampla. Com essa finalidade, a lei limitou primeiramente em 125 ha por chefe de família, mais 62,5 ha por criança, a superfície do ager publicus que uma família poderia possuir. Além desse teto, as terras públicas deviam voltar ao Estado. Em contrapartida, a lei agrária concedia aos ocupantes do ager publicus a total propriedade das terras que conservavam. Enfim, o Estado deveria redistribuir ao maior número de cidadãos desprovidos as terras assim recuperadas, em lotes de 7,5 ha, inalienáveis e submetidos ao pagamento de prestações regulares, o que garantia que essas terras fossem efetivamente cultivadas.

Essa lei suscitou uma forte oposição da nobreza senatorial, que usou de todo seu poder para tentar suspendê-la e depois para frear sua aplicação e limitá-la às regiões marginais. Tibério Graco foi assassinado no mesmo ano em que a lei foi votada, mas a bandeira da reforma foi retomada por seu irmão Caio Graco, também assassinado alguns anos depois.

Apesar dessa oposição, a lei agrária, expressão da vontade popular, foi parcialmente aplicada e em seguida sofreu numerosas modificações. O Estado cedeu uma compensação financeira aos concessionários que vendessem partes do ager publicus. As terras foram redistribuídas em lotes de 50 ha, em vez de 7,5 ha, e os novos agricultores não foram mais obrigados a pagar as prestações. Enfim, a lei foi aplicada principalmente nas províncias conquistadas, traduzindo-se pela fundação de verdadeiras colônias agrárias romanas. Mas a principal mudança adveio do fato que, pouco a pouco, os lotes só foram atribuídos a veteranos de guerra. Foi somente no consulado de César (59 a.C.) que as atribuições de terras a cidadãos pobres recomeçaram. Apesar dessas modificações sucessivas, a “reforma dos Graco”, do nome de seus inspiradores, se solidificou ao cabo de um século, por meio da reconstituição de uma classe de pequenos e médios proprietários camponeses, explorando algumas dezenas de hectares, residindo em seus domínios e conhecendo uma prosperidade relativa graças à vinha e à oliveira. Mas, no fim das contas, essas reformas tiveram alcance limitado: as grandes propriedades não só não desapareceram como aumentaram sua parte sobre o ager publicus dado generosamente aos latifundiários, em prejuízo da parte do ager publicus retomado pelo Estado.

As leis frumentárias

A aplicação das leis agrárias foi, portanto, insuficiente para impedir o êxodo rural e o crescimento da plebe romana. Até a metade do século II a.C., essa plebe era ainda relativamente pouco numerosa e as refeições ofertadas pelas grandes famílias romanas às suas clientelas eram suficientes para alimentá-la. Aliás, o Estado também oferecia grandes banquetes públicos, mas, como a plebe aumentou, essas prodigalidades dos ricos não foram mais suficientes para alimentar os pobres. Em 123 a.C., Caio Graco colocou em votação uma “lei frumentária” segundo a qual o Estado deveria vender aos cidadãos uma certa quantia de cereais a preço bem-reduzido. Essa lei, posteriormente, foi modificada várias vezes, assumindo um sentido mais restritivo (menos beneficiários, preços mais elevados) ou, então, ao contrário, mais liberal, conforme a relação de força entre o Senado e o povo romano. Atingiu um máximo de liberalidade com a lei Claudia em 58 a.C., que estendeu a distribuição pública dos cereais aos cidadãos pobres. O número de beneficiários passou o limite de 300.000, o que fez supor que para cada milhão (aproximadamente) de pessoas que moravam em Roma, mais da metade vivia dessas distribuições. Sob o regime ditatorial de César, esse número foi reduzido à metade.

A crise militar e econômica

Porém, nem as leis agrárias nem as leis frumentárias, que visavam a reduzir a crise social dos campos e da cidade reerguendo os médios agricultores e alimentando o povo de Roma, não podiam resolver o impasse militar e, consequentemente, econômico, no qual se afundava o Império. A cada triunfo, o Império atingia limites não ultrapassáveis: devido ao afastamento e o prolongamento de suas linhas de fronte; à multiplicação e ao reforço dos povos que combatia, o Império romano não podia mais se estender e conquistar riquezas, terras novas e homens jovens, cada vez mais necessários ao Estado e à economia romana. Atacado de todos os lados – inclusive internamente pelos povos famintos e pelas revoltas de escravos – e ameaçado pelo povo da cidade, o Estado romano encontrava-se depauperado pelo custo crescente da guerra, da manutenção da ordem e das políticas públicas, enquanto suas receitas eram cada vez mais limitadas. Como paliativo para seu deficit, o Estado recorreu à alteração da moeda: mantendo o mesmo valor fixado, o peso e o teor em metal precioso das moedas baixaram.

A crise militar e orçamentária do Estado explica, em parte, a crise da economia. A guerra, trazendo cada vez menos escravos, encareceu e fez faltar mão de obra. A multiplicação das perturbações acentuou o declínio da produção agrícola e artesanal. Privados de mão de obra escrava de baixo preço, a agricultura da península italiana mergulhou na crise, os domínios se mantiveram em pousio e o abastecimento do país em cereais dependia cada vez mais de importações provenientes dos impérios orientais. Penúrias não eram raras. Confrontados com essa evolução desastrosa, alguns imperadores tentaram freá-la. Domiciano proibiu plantar novas vinhas na Itália e obrigou a arrancar a metade das vinhas existentes nas províncias; sob o império de Trajano, caixas de crédito agrícola, que mesclavam fundos públicos e fundos privados, fizeram empréstimos a juros baixos aos agricultores que voltaram a investir. Adriano concedeu condições cada vez mais liberais àqueles que aceitassem valorizar uma parte, ainda que pequena, do domínio imperial. Privilégios foram concedidos às corporações de artesãos que contribuíam para a alimentação de Roma (padeiros, açougueiros, transportadores marítimos de trigo etc.) em troca de serviços prestados.

Essas medidas disparatadas e de aplicação desigual estavam longe de estancar a queda da produção agrícola e o aumento das tensões sociais. Desde o fim do Alto Império, as primeiras invasões bárbaras conjugaram-se à fome e às guerras civis para disseminar por todo o Império o terror, as epidemias, a desolação e a morte. A isso se seguiu uma queda dramática da produção, da população e das receitas fiscais, enquanto o Estado tinha necessidade de recursos suplementares para banir os bárbaros e tentar manter a ordem interna. A inflação se tornou galopante, resultante ao mesmo tempo da insuficiência da produção e da criação desenfreada de moeda desvalorizada. Desconcertado por esse fenômeno ainda desconhecido na época, o Estado tentou intervir diretamente na economia: em 301, o imperador Diocleciano assinou o “Edito do Maximum” que fixava um teto para mil gêneros e previa a pena de morte para qualquer um que pagasse ou exigisse um preço superior, assim como para todo especulador que escondesse estoques. Essa tentativa de controle de preços num território tão extenso quanto o do Império foi um fracasso total. Na verdade, esse édito, que não previa claramente as variações regionais necessárias de preço resultantes dos custos de transporte, acabou por dissimular produtos e encarecê-los. A partir de 304, o próprio Estado comprava no Egito mercadorias pagando dez vezes mais caro que o preço-teto fixado pelo édito. Entre 294 e 344, o preço do trigo egípcio foi multiplicado por quase 6.700! O mesmo tipo de édito, assinado em 362 pelo imperador Juliano, também fracassou. Enfim, até o final do Império, a estabilidade dos preços nunca mais foi realmente estabelecida (Aymard & Auboyer, 1980).

Antigamente, o Estado romano fazia a guerra, mantinha a ordem, construía infraestruturas necessárias para as forças armadas e para o comércio, e praticava geralmente uma política econômica que consistia em deixar agir os agentes privados, como agricultores, artesãos, comerciantes, sociedades de publicanos etc. Porém, por meio das leis agrárias e frumentárias, o Estado interveio na economia agrícola e na distribuição de produtos alimentares. Porém, no final do Baixo Império, para tentar remediar as penúrias cada vez mais numerosas e graves, o Estado romano interveio ainda mais pesadamente no comércio e, diretamente, tomou as rédeas de uma parte crescente da produção: administração direta, monopólios de Estado, entregas obrigatórias, impostos diversos, fornecimento a preços fixos etc. suplantaram qualquer outra forma de economia.

O surgimento da servidão

Para remediar a falta de mão de obra, o Estado tentou encorajar a difusão de meios técnicos mais produtivos (ceifa gaulesa, moinhos de água etc.), e a “servidão” se tornou lei. Com efeito, o colonato deixou de ser, como no tempo do Alto Império, um contrato livremente estabelecido e rescindido. A partir de então, os colonos passaram a ser ligados juridicamente à terra que exploravam, e até mesmo ligados ao proprietário da terra por um laço de dependência pessoal própria da servidão (no sentido moderno da palavra).

Nos estertores do Império, os grandes proprietários se refugiaram cada vez mais em suas vilegiaturas no campo, ao abrigo das massas urbanas que lhes pareciam cada vez mais exigentes e ameaçadoras. Organizando em razão da própria defesa de seus domínios face aos ataques das legiões em debandada, dos bandos de bárbaros e de ladrões, eles se liberaram progressivamente da autoridade em declínio do poder central e instauraram suas próprias leis. Recolheram escravos e camponeses em fuga que, para encontrar um modo de existir e se beneficiar de sua proteção, colocaram-se sob sua autoridade. O proprietário atribuía, então, a cada família um lote de terra que ela podia explorar, mediante o pagamento de uma parte da colheita e com a prestação de trabalhos importantes destinados a cultivar as terras reservadas ao mestre do domínio. Na medida em que não podiam mais escapar ao seu novo mestre, esses agricultores dependentes, chefes de família, já não se distinguiam mais dos antigos escravos, ou seja, tinham se tornado servos.

Com a servidão, a renovação da mão de obra dos grandes domínios não ocorria mais pela compra de homens e mulheres roubados de povos vizinhos, mas era feita pelas próprias famílias servas que geravam e criavam crianças. Crianças que nasciam servas e que assim permaneciam, assim como os seus descendentes.

O Estado romano, provedor de terras, de escravos, de subsistência e outras riquezas, terminando por sucumbir, Roma e as outras cidades do Império definharam. Um senhorio militar e fundiário de várias origens (romano, germânico, gaulês etc.) começou a organizar, em seus próprios “feudos”, a produção e a proteção das subsistências e dos homens. Mas essa nova ordem política, econômica e social dos campos, baseada na “reserva dominial” e nas “tenências camponesas” servis ou livres, levou séculos para impor-se no Ocidente. Séculos durante os quais os grupos armados de todos os tipos continuaram a percorrer a Europa, pilhando, destruindo, dizimando o gado e os homens, mesmo quando a formação dos reinos germânicos e nórdicos (os reinos bárbaros) e o renascimento de um Império cristão do Ocidente (império Carolíngio) impuseram passageiramente uma certa ordem. Vários séculos durante os quais a escravidão (escravos capturados e vendidos) certamente conheceu altos e baixos, mas mesmo assim continuou a existir.

Segundo Marc Bloch (1947), a escravidão deixou de existir no Ocidente a partir do momento em que a guerra não permitiu mais a renovação, por meio da captura, do estoque de escravos (cativos vendidos) e de servos (instalados e chefes de família) sobre os quais se baseava a economia antiga. Isso explicaria o esgotamento progressivo desse estoque, que aumentou com a alforria, que se tornou mais intensa e comum por volta do ano 1000. Podemos concluir que a guerra escravista passou a não ser mais rentável para o Ocidente? Difícil dizer.

De nossa parte achamos que, na economia agrária da alta Idade Média, a criação de filhos pelas famílias servas não era suficiente para renovar inteiramente a população agrícola ativa, pois a produtividade dos sistemas com alqueive e tração leve era, sem dúvida, insuficiente para simultaneamente garantir a reprodução da família camponesa e manter o tributo in natura (parte da colheita) e em trabalho braçal (corveias na reserva dominial). Porém, a partir do ano 1000, conforme veremos no próximo capítulo, vastos investimentos produtivos (novos instrumentos, rebanho vivo, desmatamento, moinhos etc.) se tornaram possíveis e vieram tirar a economia agrária do Ocidente de sua indigência antiga. Com a revolução agrícola da Idade Média, a produção e a população tomaram um novo impulso, a produtividade do trabalho agrícola aumentou, o que fez com que as antigas formas de servilismo (escravidão, servidão) fossem cada vez menos “necessárias”. No Ocidente pelo menos... Parece-nos plausível pensar que a guerra escravista, cada vez menos rentável, tenha ficado ainda menos rentável que os novos investimentos produtivos.

Texto de Marcel Mazoyer e Laurence Roudart (tradução de Cláudia F. Falluh Balduino Ferreira e revisão técnica de Magda Zanoni, Lovois de Andrade Miguel e Maria Regina Pilla) no livro "História das Agriculturas no Mundo", Editora Unesp,São Paulo, 2008, excertos pp.283-295. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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