2.05.2018
SUMA TEOLÓGICA - AS CINCO VIAS DA PROVA DA EXISTÊNCIA DE DEUS
O texto que se segue representa uma das contribuições mais significativas de São Tomás à discussão da questão, central na filosofia cristã, da prova da existência de Deus pela razão. Ilustra assim um dos aspectos mais importantes do pensamento de São Tomás, a concepção segundo a qual a razão procura demonstrar racionalmente aquilo que a fé revela, sendo portanto um caminho para a fé.
As “cinco vias” consistem em cinco grandes linhas de argumentação por meio das quais se pode provar que Deus existe. Sua importância reside sobretudo em que supõe a possibilidade de se chegar ao entendimento de Deus, ainda que de forma parcial e indireta, a partir da consideração do mundo natural, do cosmo, entendido como criação divina. É possível assim reconhecer, pela razão, as marcas do Criador em sua Criação. Ora, enquanto obra de Deus e resultado da Criação divina, o mundo natural passa a ser assim objeto digno de conhecimento para o cristão.
É importante ressaltar a influência do pensamento de Aristóteles na filosofia de São Tomás, refletida aqui nas referências que São Tomás faz aos tratados aristotélicos de Física (na discussão sobre a natureza do movimento na primeira via) e de Metafísica (na discussão sobre a causa eficiente na segunda via), bem como seu emprego de conceitos aristotélicos como o de necessidade, existência, finalidade ou causa final (na quinta via, o argumento teleológico).
O texto revela também o estilo argumentativo de São Tomás, que busca examinar uma questão em todos os seus diferentes ângulos, dialeticamente antecipando e respondendo a possíveis objeções.
Três questões podem ser formuladas sobre a existência de Deus:
1. A existência de Deus é uma verdade evidente?
2. A existência de Deus pode ser demonstrada?
3. Deus existe?
1. Parece-nos que a existência de Deus é evidente. Com efeito, denominamos verdades evidentes aquelas cujo conhecimento está em nós naturalmente, como é o caso dos primeiros princípios. Ora, segundo diz Damasceno: “O conhecimento da existência de Deus é inato a todos os homens.” Portanto, a existência de Deus é evidente.
2. Por outro lado, denominamos evidentes as verdades que conhecemos desde que compreendemos o significado dos termos que as exprimem. É o que o Filósofo ('Segundos analíticos', I, 3) atribui aos primeiros princípios da demonstração. De fato, quando entendemos o significado do todo e o significado da parte, entendemos, de imediato, que o todo é maior que a parte. Ora, desde que tenhamos compreendido o significado da palavra “Deus”, sabemos, de imediato, que Deus existe. Com efeito, esta palavra designa uma coisa de tal ordem que não podemos conceber nada que lhe seja maior. Ora, o que existe na realidade e no pensamento é maior do que o que existe apenas no pensamento. Donde se segue que o objeto designado pela palavra “Deus”, que existe no pensamento, desde que se entenda esta palavra, também existe na realidade. Por conseguinte, a existência de Deus é evidente.
3. Além disso, a existência da verdade é evidente, pois aquele que nega a existência da verdade concorda que a verdade não existe. Mas, se a verdade não existe, a não existência da verdade é uma afirmação verdadeira. E se alguma coisa é verdadeira, então a verdade existe. Ora, Deus é a própria verdade, segundo São João, 14, 6: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.” Por conseguinte, a existência de Deus é evidente.
Por outro lado, ninguém pode pensar o oposto do que é evidente, conforme mostra o Filósofo ('Metafísica', IV; 'Segundos analíticos', I, 10) a propósito dos primeiros princípios da demonstração. Ora, o oposto da existência de Deus pode ser pensado, conforme diz o Salmo 52, 1: “Os insensatos dizem a si mesmos: Deus não há.” Logo, a existência de Deus não é evidente.
Resposta: Temos duas maneiras de dizer que uma coisa é evidente. Esta pode ser evidente em si mesma e não por nós; ou pode ser evidente em si mesma e por nós. Com efeito, uma proposição é evidente quando o atributo está contido no sujeito, por exemplo: o homem é um animal. Animal, realmente, pertence à noção de homem. Se, portanto, todos sabem o que são o sujeito e o atributo de uma proposição, esta proposição será conhecida por todos. É verdadeiro, pelos princípios das demonstrações, que o termo são coisas gerais que todos conhecem como o ser e o não-ser, o todo e a parte etc. Mas se alguns desconhecem o atributo e o sujeito de uma proposição, então a proposição será evidente em si mesma, mas não para aqueles que ignoram o que são sujeito e atributo. É neste sentido que Boécio afirma: “Certos juízos só são conhecidos pelos sábios; por exemplo, aquele segundo o qual os seres incorpóreos não estão em um mesmo lugar.” Por conseguinte, afirmo que a proposição “Deus é”, considerada em si mesma, é evidente por si mesma, já que o atributo é idêntico ao sujeito. Como veremos mais adiante, Deus, de fato, é o seu ser. Mas como não sabemos o que Deus é, esta proposição não é evidente para nós; precisa ser demonstrada por aquilo que é menos conhecido na realidade, mas mais conhecido para nós, isto é, pelos efeitos.
À primeira objeção devemos responder que, em estado vago e confuso, o conhecimento da existência é naturalmente inato em nós, uma vez que Deus é a felicidade do homem. De fato, o homem deseja naturalmente a felicidade, e, o que ele deseja naturalmente, ele conhece naturalmente. Mas isto não é, propriamente, conhecer a existência de Deus; da mesma maneira que não podemos saber quem chega sem conhecer Pedro, quando é o próprio Pedro que chega. Muitos, de fato, consideram o supremo bem para o ser humano a riqueza, outros os prazeres, e outros várias outras coisas.
À segunda, podemos responder que aqueles que ouvem a palavra “Deus” podem ignorar que essa palavra designa algo de que não se pode conceber nada que lhe seja maior. Alguns, com efeito, acreditaram que Deus fosse um corpo. Mesmo que defendamos que todos entendem a palavra “Deus” neste sentido, isto não significa que representem a existência desta coisa como real e não como apenas uma representação mental. E não se pode concluir que existe realmente, exceto caso se admita que essa coisa realmente existe. Ora, mas isso não é admitido por aqueles que rejeitam a existência de Deus.
À terceira devemos responder que a existência da verdade indeterminada é evidente por si mesma, mas que a existência da primeira verdade não é evidente em si mesma para nós.
Respondo dizendo que a existência de Deus pode ser demonstrada por cinco vias.
A primeira e mais evidente é a que toma por base o movimento. É certo, e está de acordo com nossa experiência, que algo se move no mundo. Tudo que se move é movido por outra coisa, pois nada se move se não estiver em potência para aquilo para o que se move; porém, o que move deve estar em ato para aquilo que move, já que mover não é senão fazer algo passar de potência para ato; ora, mas nada pode passar de potência para ato senão por meio de um ser que já está em ato; por exemplo, o quente em ato, como o fogo, torna a madeira, que é quente em potência, em quente em ato, movendo-a e alterando-a.
É impossível que a mesma coisa seja ao mesmo tempo em potência e em ato em relação ao mesmo, mas apenas em relação a diversas coisas: aquilo que é quente em ato não pode ser ao mesmo tempo quente em potência. É impossível que no mesmo sentido e do mesmo modo algo seja movente e movido, ou que se mova a si mesmo. Tudo que se move deve, portanto, ser movido por outra coisa. Mas, se aquilo pelo qual algo é movido também se move, é indispensável que seja movido por outra coisa e assim sucessivamente. Se não houvesse um primeiro movente cairíamos então em um processo indefinido ou, caso contrário, chegaríamos a algo que não seria movido, já que os segundos moventes só movem se forem movidos pelo primeiro movente, assim como uma bengala nada move, se não for ela própria movida pela mão. Portanto, é necessário chegar a um primeiro movente que não seja movido por nenhum outro: e este todos entendem ser Deus.
A segunda via baseia-se na causa eficiente. Encontramos nas coisas sensíveis uma ordem de causas eficientes, já que nada pode ser causa eficiente de si mesmo, pois se assim o fosse existiria antes de si mesmo, o que é impossível. Também não é possível proceder indefinidamente nas causas eficientes. Em todas as causas eficientes ordenadas, em primeiro lugar está a causa do que se encontra no meio, e o que se encontra no meio é causa do que está em último lugar, tanto se os intermediários forem muitos, quanto se for um só; tiradas as causas, tira-se o efeito; logo, se não for primeiro nas causas eficientes, não será nem em último, nem no meio. Se, porém, procedermos de forma indefinida nas causas eficientes, não haverá primeira causa eficiente, e portanto não haverá também nem efeito último nem causas intermediárias, o que é evidentemente falso. Logo é necessário admitir alguma causa eficiente primeira, à qual todos chamam de Deus.
A terceira via é baseada no possível e no necessário. Encontramos dentre as coisas algumas que podem ser ou não ser, já que encontramos algumas que são geradas e se corrompem, e por isso mesmo podem ser ou não ser. É impossível que todas essas coisas existam sempre, pois o que pode não ser alguma vez não é. Se todas as coisas podem não ser, alguma vez nada existiu. Se assim fosse na verdade, também agora nada existiria, pois o que não existe não começa a existir senão a partir de algo que existe; se, entretanto, nada existia, seria impossível que algo começasse a existir, e assim nada absolutamente existiria, o que é evidentemente falso. Portanto, nem todos os seres são possíveis, mas é indispensável que algum ser seja necessário. Todo ser necessário ou tem a causa de sua necessidade como externa ou não. É impossível, porém, que procedamos indefinidamente em relação aos seres necessários, que têm uma causa de sua necessidade, como também nas causas eficientes, da forma como provamos. Logo, é necessário admitir algo que seja necessário por si, não tendo fora dele a causa de sua necessidade, antes pelo contrário, que seja ele mesmo a causa da necessidade dos outros: a este ser todos chamam de Deus.
A quarta via tem por base os graus que se encontram nas coisas. Encontramos, com efeito, nas coisas, algo mais ou menos bom, verdadeiro, nobre, e assim por diante. O “mais” ou “menos” é dito acerca dos diversos seres conforme se aproximam de forma diferente daquilo que é o máximo, como o mais quente é aquilo que se aproxima do quentíssimo. Existe algo que é o verdadeiríssimo, ótimo, nobilíssimo e, por conseguinte, o ser máximo, pois as coisas que são verdadeiras ao máximo são os maiores seres, como é dito no livro II da Metafísica. O que é máximo em algum gênero é causa de tudo o que é daquele gênero, como o fogo, que é o máximo do quente, é a causa de todos os quentes, como é dito no mesmo livro. Logo, existe algo que é a causa da existência de todos os seres, e da bondade e de qualquer perfeição, e a este chamamos Deus.
A quinta via é derivada do governo das coisas. Vemos que as coisas que não têm inteligência, como, por exemplo, os corpos naturais, agem para uma finalidade, o que se mostra pelo fato de sempre ou frequentemente agirem da mesma forma, para conseguirem o máximo, donde se segue que não é por acaso, mas intencionalmente, que atingem seu objetivo. As coisas, entretanto, que não têm inteligência só podem procurar um objetivo dirigidas por alguém que conhece e é inteligente, como a flecha dirigida pelo arqueiro. Logo, existe algum ser inteligente que ordena todas as coisas da natureza para seu correspondente objetivo: a este ser chamamos Deus.
Texto de Danilo Marcondes em "Textos Básicas de Filosofia- Dos Pré-Socráticos a Wittgenstein", Zahar, Rio de Janeiro. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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