1.04.2019

COMA E EMAGREÇA COM FICÇÃO CIENTÍFICA - GORDURA



Em geral, existem três variedades de matérias que precisam ser absorvidas pelo corpo para se manter a vida: gasosa (ar), líquida (água) e sólida (comida). Cada uma apresenta um problema diferente e é tratada de maneira diferente.

O ar está universal e continuamente presente na superfície da Terra.

Há condições excepcionais, é claro. O oxigênio pode se extinguir numa mina de carvão, num cofre fechado, no decorrer de um incêndio. No caso de um incêndio, fumaças, vapores venenosos ou o calor podem contaminar fatalmente o suprimento de ar. Essas situações, entretanto, não são um assunto do dia a dia e podem ser ignora-das. No todo, podemos assumir que o ar está sempre presente e que os seres humanos precisam simplesmente respirar, constante e automaticamente, por toda a vida.

(Isso também é verdadeiro para os demais animais de terra. No caso dos animais de água e das plantas, há diferenças em detalhes mas não na essência.) A consequência é que não há nenhum mecanismo verdadeiro para os animais de terra estocarem ar, notadamente o ser humano, pois não existe a necessidade de ser desenvolvido tal mecanismo. (Respiradores de ar que vivem no mar - particularmente as grandes baleias - podem permanecer submersos por longos períodos para os padrões humanos, mas, mesmo assim, o suprimento corporal de ar ou, mais especificamente, o oxigênio, só durará umas duas horas, se tanto.) Para os seres humanos, o suprimento corporal durará, no máximo, cinco minutos.

Se a respiração é evitada por tal tempo, o cérebro humano, faminto por oxigênio, sofrerá um dano irreversível e o ser humano morrerá. Nem pode o ser humano tornar-se menos suscetível à sufocação através de uma deliberada inspiração profunda com o propósito de saturar seu corpo com oxigênio. Como disse, não existe nenhum mecanismo razoável para armazenamento, e se você forçar a respiração, ficará tonto rapidamente e será forçado a parar.

A água é quase tão comum quanto o ar. Por certo, há regiões secas na Terra onde plantas e animais precisam conservar cuidadosamente a água que obtêm, mas os seres humanos se desenvolveram em condições de fartura de água e não são biologicamente adaptados à vida do deserto. O resultado é que sua habilidade para conservar água é limitada.

Precisamos, portanto, beber água a intervalos frequentes para substituir o que é inevitavelmente perdido através da urinação, defecação, transpiração e expiração.

Nem podemos esquecer de fazê-lo, pois a sensação de sede é motivo suficiente e nunca deixa de nos lembrar.

Mesmo assim, podemos estocar água muito mais do que podemos estocar ar. Um bom gole de água satisfará nossas necessidades por várias horas, normalmente; e quando a necessidade exige, um ser humano pode ficar várias horas sem água, embora venha a sofrer necessariamente as agonias da sede. Nem podemos nos proteger contra tal eventualidade tomando uma grande quantidade de água. Nós nos saturamos rapidamente e uma ingestão posterior tornar-se-á tão desagradável que nem o medo da sede conseguirá nos forçar a continuar; e a maior parte do excesso que ingerimos dessa maneira é perdida rapidamente através de copiosa urinação.

Resta-nos a comida. A comida é menos comum do que o ar ou a água. Quase todo animal se defronta com uma situação em que a comida torna-se difícil de ser encontrada por um período de tempo; ou por causa de uma seca, ou porque é inverno, ou simplesmente porque a competição é temporariamente muito intensa.

Se surgir uma ocasião, entretanto, onde o suprimento de comida é encontrado, é importante que seja comido o máximo possível, já que não se pode dizer quando se encontrará o próximo suprimento. Animais que se saturam facilmente e que satisfazem apenas suas necessidades imediatas, como no caso do ar e da água, estão propensos a morrer de fome entre refeições mais espaçadas.

(E, também, no caso dos carnívoros, uma grande caça não pode ser deixada muito tempo sem ser comida, pois ela se decomporá e tornar-se-á incomível. Os matadores, portanto, comem tudo que podem, enquanto podem - e isso também se aplica à humanidade pré-industrial.)

É claro, lautas refeições só funcionarão se o organismo tiver um meio eficiente de estocar comida - e a maior parte dos organismos tem. Se a comida é ingerida além das necessidades imediatas, pode ser estocada como amido (o caso comum das plantas) ou, mais eficientemente, como gordura (o caso comum dos animais). E mais ainda, a quantidade de comida que pode ser armazenada é surpreendentemente grande. O resultado é que os seres humanos podem passar sem comida, não apenas simples minutos (como no caso do ar), ou simples dias (como no caso da água), mas durante semanas, e até mesmo meses! (E podem ficar subnutridos - se não desnutridos - durante anos.)

Um armazenamento de comida incomum eventualmente torna-se difícil para um animal carregar por aí. Um grande suprimento de gordura limitará a mobilidade, difi-cultará o funcionamento dos órgãos e, em particular, acrescentará uma inaceitável carga a órgãos particularmente ativos como o coração e os rins.

Sob circunstâncias normais, entretanto, o armazenamento de comida não vem a se tornar um problema. Um animal que se torna moderadamente gordo sob condições de fartura de comida está fadado a encontrar uma época frugal pela frente e, então, emagrecerá.

Somente o ser humano pode controlar o ambiente para garantir uma contínua fartura de fornecimento de comida, e mesmo assim apenas para uns relativamente poucos. Na maioria das sociedades humanas, o grosso da população sempre teve que se debater por comida e comer pouco além do necessário para manter a vida. A maior parte das pessoas, portanto, é magra.

Assim que a civilização desenvolveu-se, porém, passou a haver geralmente uma casta dominante - aristocratas, padres, mercadores bem-sucedidos - cujo fornecimento de comida era garantido por um extenso período de tempo e que podia engordar e permanecer gorda. Como tratava-se de uma situação incomum e como a gordura portava uma evidência visível de alta posição e de sucesso na vida, ela era vista complacentemente.

Uma mulher rechonchuda era claramente uma das que tinham sido bem cuidadas e cuja família, portanto, podia arcar com um bom dote; então, a rechonchudez era um sinal de beleza. Era muito raro mesmo que qualquer coisa boa pudesse ser vista numa donzela esquelética e faminta. E um homem gordo era claramente um provedor substancial com quem qualquer mulher poderia prazerosamente se casar.

Após a Revolução Industrial, entretanto, algumas sociedades prosperaram de tal maneira que uma grande parte da população encontrava -se numa posição de armazenar comida e tornar-se flácida e pançuda. O caso mais notável é o dos Estados Unidos da América no século XX.

É tão fácil para a maior parte dos americanos engordar, que tal coisa não tem mais valor. Gordura entre os americanos é muito comum para ser um vestígio de sucesso, portanto também não há motivo econômico para provocar um sentimento de satisfação estética.

Na verdade, já que o crescente instinto de comer tudo que há à vista (no caso de tempos difíceis adiante) é tão grande, torna-se difícil manter-se uma silhueta delgada na sociedade americana. Se a esbeltez é mantida, então ela é um sinal de conquista, e se é combinada com outros sinais de sucesso que não a gordura - como joia ou um corpo musculoso e bronzeado, revelando bastante tempo de lazer - então a esbeltez torna-se um padrão de beleza.

E esta é a situação que temos agora nos Estados Unidos da América. Certamente não há espécies de organismos, a não ser o ser humano, que batalham para negar a si mesmas a comida disponível a fim de permanecer magra. Nem entre os seres humanos há qualquer outra sociedade, a não ser a dos Estados Unidos contemporânea, na qual isso é feito tão extensivamente. Em nenhuma outra sociedade a gordura é tão condenada, a quase inanição voluntária tão ansiosamente perseguida, e caras chupadas e membros macilentos tão idolatrados. É certo que a gordura faz mal à saúde. Uma pessoa magra é mais saudável, sente-se melhor e vive mais que uma gorda.

(...)

Texto de Isaac Asimov (tradução de Domingos Demasi) publicada em "Coma E Emagreça Com Ficção Científica", Editora Marco Zero,São Paulo. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

No comments:

Post a Comment

Thanks for your comments...