4.14.2024

Por que ‘Bahia’ tem H?

 


Se a letra "agá" fosse um humano, certamente viveria uma grande crise de identidade. Na língua portuguesa, as demais letras representam sons e só o H que é mudo. Ele vive apenas como coadjuvante nos dígrafos CH, LH e NH, numas palavras derivadas de termos estrangeiros (como em ‘leishmaniose’), em interjeições (‘ah!’, ‘bah!’, ‘uh!’) e como inicial em vocábulos como ‘hospital’ e ‘hiena’.

Desde seu surgimento, ele é tema de debate entre os gramáticos, especialmente os ortógrafos. Muitos propuseram eliminá-lo e, depois de muito quebra-pau, o H perdeu uma de suas funções. ‘Hiato’ tem H, mas os hiatos o perderam. Olha ahi...

O H já teve som (“bons tempos!”, pensaria ele). Seu avô, ‘hete’, do alfabeto fenício, lá pelo século X a.C., representava o som aspirado que ouvimos no R de ‘Rafael’ ou no H do inglês ‘happy’. Seu pai, ‘he’, do alfabeto etrusco, no século VII a.C., também tinha o mesmo som.

No latim, o H se chamava ‘hacca’. Originalmente, honrava seus ancestrais hete e he, com o mesmo som, mas os romanos foram-no silenciando. No latim vulgar, o som aspirado não aparecia mais e várias palavras passaram a ser escritas sem ele. O verbo ‘havere’ (haver), por exemplo, era grafado ‘avere’. O italiano seguiu essa linha e, até hoje, não há palavras com H inicial nessa língua. Na Itália, o ‘uomo’ (homem) vai para o ‘ospedale’ (hospital).

Assim, no nosso português arcaico (século XII) chegamos a grafar várias palavras assim: ‘omem’, ‘aver’, ‘umor’, ‘ortelaã’. Foi nessa leva que o latim ‘herba’ nos ficou por ‘erva’. Era o fim do H?!

O H não chegou a sumir por completo. Era do gosto do freguês: uns o empregavam, outros não. Em 1536, o gramático português Fernão de Oliveira o restaurou de vez por causa dos “costumes ortográficos”.

Além de no início das palavras, Fernão justificou o uso H junto às vogais quando “muda sua voz”. O autor se referia aos hiatos, o encontro de vogais que pertencem a sílabas diferentes. Assim, ‘ai’ era uma interjeição de dor, de lamento, mas ‘ahi’ era um advérbio de lugar (aí); ‘saia’ é a vestimenta ou o verbo ‘sair’ no imperativo; ‘sahia’ é o verbo no pretérito imperfeito.

Os demais gramáticos que se seguiram concordaram com a regra. Então, escrevíamos ‘bahu’, ‘prohibido’, ‘attrahir’, ‘Cahim’. Nisso, era necessário grafar ‘bahia’ para que sua pronúncia não fosse /báia/.

De 1534 a 1821, portanto, havia no Brasil a ‘Capitania da Bahia de Todos os Santos’, com H. O nome vem do recôncavo de mesmo nome, batizado assim porque a expedição de Gaspar de Lemos e Américo Vespúcio chegou ali no dia 1º de novembro de 1501, Dia de Todos os Santos na tradição católica.

Após sua fusão com a Capitania de Ilhéus e a de Porto Seguro, a capitania se tornou Província da Bahia em 1821 e, depois, Estado da Bahia, em 1891. Até então, quem nascia na Bahia era ‘bahiano’.

Esse H anti-hiático seguiu firme por algum tempo. No século XIX, vários gramáticos já solicitavam a retirada dessa letra excedente. “H não letra”, afirmavam. (Coitado...)

O lexicógrafo brasileiro Antônio de Morais Silva, em 1816, sugeriu que fosse usado o trema nos hiatos. Teríamos, por exemplo, ‘saüde’, ‘hebraïsmo’ e ‘Baïa’. Outros gramáticos já se manifestavam pelo uso do acento agudo. O filólogo português Jerônimo Soares Barbosa recomendava a grafia ‘Baía’ quando um simples acento simplificaria a palavra.

Em Portugal, a Reforma Ortográfica de 1911 fez sumir o H anti-hiático. Era ‘sahida’ finalmente passando a ser ‘saída’. No Brasil, a guerra de foice continuou por mais um bom tempo. A contenda entre gramáticos brasileiros sobre a permanência da letra parecia briga de torcida organizada.

Coube à Academia Brasileira de Letras (ABL) estabelecer as mudanças em nossa ortografia com o Acordo Ortográfico de 1931. É aí que vimos forças políticas interferirem.

Os topônimos (nomes de lugar) brasileiros tiveram de seguir a regra. ‘Piauhi’ passou a ‘Piauí’; ‘Parahyba’ → ‘Paraíba’; ‘Jahu’ → ‘Jaú’; ‘Jundiahy’ → ‘Jundiaí’; ‘Pirahy’ → ‘Piraí’.

Sóóó que... O próprio governo da Bahia não gostou da proposta. Prezava pela tradição. Ainda em 1931, baixou um decreto em que dizia seguir a regras do Acordo, mas que ‘Bahia’ manteria o H e ponto final. Justificava-se o pedido por ser um estado de grande área e população, o que acarretaria um extenso prejuízo na alteração do nome em letreiros e materiais escolares.

Assim, a ABL se dobrou à intercessão da Bahia e abriu a ilustre exceção no Formulário Ortográfico de 1943. Teve quem acatasse, quem pestanejasse e quem não soubesse mais o que fazer. O filme “Você já foi à Bahia?” (1947), de Walt Disney, por exemplo, põe H no título, mas no mapa que aparece está escrito ‘Baía’.

Em 1947, Francisco Alves (o “Rei da Voz”) gravou o samba ‘Bahia com H’ ajudando a consolidar o nome que muitos jornalistas insistiam em grafar sem o H. Por fim, ‘Bahia’ manteve a grafia, mas as palavras dela derivadas tiveram que seguir a norma: ‘baiano’, ‘baianidade’, ‘abaianado’, ‘laranja-baía’, ‘jacarandá-da-baía’.

As cidades de Piumhi, em Minas Gerais, e ‘Anahy’, no Paraná, há tempos conseguiram recuperar seu H. Jaú, em São Paulo, segue na luta para voltar a ser ‘Jahu’. Na Paraíba, há um movimento que pede o nome da capital volte a ser ‘Parahyba’.

Se fosse gente, o H poderia se sentir chateado por ser mudo, mas por essa brigalhada toda, ficaria todo envaidecido.

Referência

‘Ortografia e norma: os efeitos das reformas ortográficas em alguns topônimos brasileiros’, maravilhosa dissertação de Patricia Andrea Borges (2020).


Texto de Nélia Nascimento - (Álbum da viagem) publicado no site Quora. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa. 


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